Este trabalho parte de duas afirmações feitas pelo filósofo contemporâneo esloveno, Slavoj Zizek que tem como referencial teórico básico as ideias de Marx, Lacan e Hegel.
A primeira afirmação, que se nos apresenta como bastante equilibrada e realista, é a de que a filosofia não perde seu papel no mundo contemporâneo, antes se agiganta e invade avassaladoramente o cotidiano das pessoas comuns com muitas questões provocadas pela vida moderna e pelos desenvolvimentos das ciências (especialmente na biologia e na informática). Em suas palavras:
“Não só não creio que o tempo da filosofia tenha passado, como penso que, mais do que nunca, a filosofia tem um papel a exercer. (...). Sim, a era da filosofia, de novo, no sentido de que deparamos cada vez mais com problemas filosóficos no cotidiano. Não é que você se retire da vida cotidiana para um mundo de contemplação filosófica. Ao contrário, não há como achar o caminho, na própria vida cotidiana, sem responder a certas perguntas filosóficas. Trata-se de uma época singular, na qual, de certo modo, todos somos forçados a ser uma espécie de filósofos”. [1]
O autor em destaque tem plena razão em sua afirmação. Aqueles que apregoam a inutilidade da Filosofia no mundo moderno, de modo que teria sido substituída totalmente pelos saberes científico-tecnológicos estão redondamente enganados. Se a Filosofia sempre esteve entremeada no cotidiano de todo homem em todos os tempos, o que ocorre hoje não é tanto que esta se agigante. Ora, as questões filosóficas sobre o sentido da vida, a origem do universo, as indagações metafísicas, a ideia de Deus nunca, em nenhum momento histórico, deixaram de ser relevantes para toda conduta ou pensamento humano. O que cresceu, não foi a importância da Filosofia e suas questões perenes, mas sim o potencial lesivo e benéfico do próprio ser humano com o desenvolvimento científico. O homem hoje pode simplesmente destruir o planeta, eliminar milhões de pessoas num piscar de olhos e, concomitantemente, pode realizar prodígios comunicativos em prol da aproximação de pessoas separadas por grandes distâncias culturais e geográficas, pode curar e prevenir muitas doenças etc. Esse aumento de poder do homem é que faz com que as questões que sempre foram cotidianas e importantes e que são a base de qualquer reflexão filosófica, ganhem uma maior visibilidade, inclusive pelo homem comum, não versado ao menos formal e teoricamente nessa área do saber.
No seguimento, porém, Zizek tece uma crítica, a nosso ver despropositada, à posição de outro filósofo contemporâneo alemão, Jürgen Habermas, tendo em vista sua adesão a um pensamento marcado por um prisma bioético de prudência. Sendo fiel ao que Zizek afirma:
“Recentemente, Habermas fez uma conferência sobre como a biogenética afetará as questões éticas e alguns temas cruciais do Iluminismo. Creio que sua postura aponta para preocupações importantes, mas é também profundamente falha. A tese de Habermas é que, se vier a ser possível intervir diretamente nas fórmulas da herança biológica de uma pessoa, modificar suas características psíquicas ou físicas, isso terá o potencial de minar nosso próprio senso de autonomia, liberdade, responsabilidade pessoal e assim por diante.
Habermas tem toda razão em assinalar que a ideia tradicional de educação, como influência civilizadora, poderia ser derrubada. Quando alguém não é educado, não no sentido de não saber ler, mas de ser rebelde e incivilizado demais, toda a ideia da luta moral é que, pelo esforço pessoal, ele aprenderá a se controlar, a se civilizar. Mas, se os cientistas interferirem no código genético de um indivíduo e o tornarem menos violento e mais dócil, a educação, como processo moral de desenvolvimento pessoal, será simplesmente contornada – tornar-se-á redundante. Por isso, a primeira colocação de Habermas é que a ideia do indivíduo como agente autônomo fica minada. Sua segunda afirmação é que as relações intersubjetivas também ficariam comprometidas, e poderíamos ter duas classes de seres humanos: os que são plenamente ‘humanos’, no sentido tradicional, e aqueles cujo código genético foi manipulado e que passam a ser percebidos como sub – humanos ou super – humanos. Para Habermas, isso destruiria as próprias condições de igualdade social e simetria efetiva que são necessárias a uma relação ética adequada. Consequentemente, a ideia de coletividade humana e do potencial de se chegar a uma comunidade humana de iguais, através da comunicação não distorcida, seria invalidada. Essa é a ameaça.
Concordo com Habermas em que a biogenética traz uma ameaça, porque, como todos sabemos, ela significa o fim da natureza. Em outras palavras, a própria natureza é vivida como algo que segue certos mecanismos passíveis de modificação. A natureza passa a ser um produto técnico, que perde seu caráter natural espontâneo. E Habermas está certo ao assinalar que foi somente tendo por pano de fundo essa espontaneidade natural que as ideias modernas de liberdade e dignidade humana tenderam a funcionar. Basicamente, no entanto, a solução de Habermas é a morte: é a ideia de que, como a perspectiva de manipulação biogenética afeta nossos sensos de autonomia e liberdade, devemos proibi-la, cerceá-la.
Penso que essa solução simplesmente não funciona, não só pela razão vulgar de que as pessoas farão isso de qualquer maneira, mas porque, depois de sabermos que os genes podem ser manipulados, é impossível desfazer esse desconhecimento. Isso seria uma impostura, uma espécie de cisão fetichista, na qual teríamos a situação de sabermos manipular os genes, mas, ao mesmo tempo, fingirmos não saber, para salvar a liberdade. Portanto, o paradoxo aí é que Habermas, o grande iluminista, adota basicamente a velha estratégia católica do ‘é melhor não saber’ para salvar a dignidade humana, não esmiucemos demais. Paradoxalmente, ele é obrigado a adotar uma postura anti – iluminista”. [2]
É bem verdade que Habermas se situa “orgulhosamente” entre os que se autoproclamam “iluministas” e que, mais ou menos, direta ou indiretamente influenciados pela chamada “Escola Crítica de Frankfurt”, acabam embarcando numa alegação absurda de que os valores humanos e o próprio conceito de pessoa humana deriva das chamadas “luzes” do século XVIII. Mas, nesse ponto parece que Zizek não destoa da cantilena, embora negue qualquer influência da Escola de Frankfurt. [3]
Então aí está um primeiro ponto digno da mais ferrenha crítica, seja em relação a Habermas, seja em relação a Zizek e outros papagaios de repetição assemelhados:
Os valores humanos e o conceito de “pessoa humana”, donde deriva a base antropológico – filosófica para a ereção dos chamados “Direitos Humanos” ou “Direitos Fundamentais da Pessoa Humana”, não tem origem no período histórico denominado de “Iluminismo”, mas sim muitos séculos antes com o surgimento da doutrina Cristã. O que os proclamados “iluministas” fazem, seja no século XVIII, seja hoje, é apropriar-se como num plágio, desses conceitos, procurando um caminho para sua laicização ou secularização, nada mais que isso. [4]
Dessa maneira, a afirmação tresloucada de Zizek de que Habermas teria aderido a uma suposta “estratégia católica” (sic) constitui uma gritante inversão de valores e da história. Se há alguma “estratégia” (sic) esta deve ser atribuída aos proclamados “iluministas” que atuam como se ideais como os de liberdade, igualdade e fraternidade fossem obras suas, fazendo de conta que não sabem da existência de séculos de história que os antecede e que fundamenta com muito mais propriedade aquilo que afirmam defender.
Além do mais, a suposta “estratégia católica” (sic) alardeada por Zizek consistiria, segundo suas palavras, em fingir ignorar algo “para salvar a dignidade humana” (sic). Ora, em termos de fingimento e mentira já de cara se constata que a técnica ou “estratégia” não pertence tanto à Igreja Católica ou qualquer outro setor, senão ao esquerdismo militante muito dado às inversões, perversões e “esquecimentos” de inteiros períodos e fatos históricos, conforme acima já bem demonstrado.
A questão é literal e deliberadamente desviada por Zizek vez que jamais se tratou de fingir não saber de algo para “salvar a dignidade humana” (sic). Aliás, a dignidade humana não precisa ser “salva” ou “protegida” como algo que não se sustenta, como uma mentira que precisa constantemente ser ocultada por artifícios que se sobrepõem (veremos mais adiante o que leva Zizek e outros a sofrerem dessa distorção mental). Não, a dignidade humana é um dado concreto cujo olvidar ou desprezar já demonstrou e demonstra historicamente as catástrofes de que é capaz. Portanto, a dignidade humana precisa somente ser respeitada e preservada como um valor inalienável que é em substância ou essência.
A Bioética e o Biodireito não têm como temática a simulação de ignorância ou o obscurantismo intervencionista que pretende paralisar as pesquisas científicas. Esses saberes e instrumentos visam à busca de balizas que proporcionem um equilíbrio entre o “poder – fazer” e o “dever – fazer”. A metáfora sugerida pelo termo “Iluminismo” costuma atrair a imagem oposta da venda sobre os olhos e da imposição de trevas. Como toda ideologia exacerbada, com essas metáforas se pretende erigir uma realidade em que a conduta humana é absolutamente desembaraçada de vínculos morais e estes passam a ser encarados como obstáculos ao desenvolvimento humano sempre bom em si mesmo, sempre indicativo de “progresso”, esse outro fetiche do materialismo histórico e das utopias. Propomos então outra metáfora: aquela que nos lembra que luz demais também cega. E aqui recordemos que nem tudo que podemos fazer, inclusive com as novas tecnologias biológicas, informáticas etc., deve, só por isso, ser feito, sem maiores considerações. Não é de hoje que temos poderes e capacidades que não devem ser utilizados e que já o foram para nosso perene lamento. Sempre pudemos escravizar outros seres humanos e o fizemos ao longo de toda história, o fazemos ainda hoje oficial ou clandestinamente. Ora, esse poder – fazer significa “ipso facto” um “dever – fazer”? A resposta mais do que óbvia é que não.
Em sua fala Zizek menciona ser impossível “desfazer o conhecimento” (sic). Ficamos pensando se o autor pretende que essa sua “constatação” seja tomada como um “grande insight”, mesmo porque tudo indica isso, já que logo antes ele fala de uma motivação “vulgar” para negar o pensamento de Habermas, que seria o fato de que de qualquer forma as pessoas irão manipular os genes a partir do momento que detém o conhecimento para tanto. Ora, se isso é “vulgar”, então a “maravilhosa” descoberta zizekiana de que não se pode “desfazer o conhecimento” parece ser apresentada como uma grande coisa. Seja intencional ou acidentalmente Zizek acaba fazendo uso de uma figura retórica conhecida como “metonímia”, consistente em designar “uma coisa pelo nome de outra que lhe está habitualmente associada”, de forma a ressaltar “o aspecto da coisa que interessa ao orador”. [5] Nesse caso a dupla de contrários vulgar/sofisticado, acaba, em meio ao discurso, atribuindo retoricamente um matiz “sofisticado” à sua conclusão de que não é possível “desfazer o conhecimento”. Além disso, também é conhecida dentre as “técnicas argumentativas” a chamada “dissociação das noções” em que o orador se vale de um “par” complementar ou contraditório. [6] Com a argumentação retórica uma afirmação absolutamente inescapável da obviedade é apresentada como uma descoberta tão extraordinária que talvez merecesse o grito de “Eureka” atribuído ao matemático da Antiguidade grega, Arquimedes (287 – 211 a.C.)[7]
Contudo, a verdade é que a noção de que o passado é imutável e, consequentemente, que não se pode apagar um conhecimento ou, nas palavras de Zizek, “desfazê-lo”, é algo hoje totalmente vulgar. Não há qualquer originalidade na fala do autor em destaque. A aparente originalidade deriva tão somente de um artifício retórico.
Essa noção mais que básica já nos é exposta pelo poeta trágico ateniense Agathon (448 – 400 a.C.) com sua afirmação de que “nem Deus pode mudar o passado”. E tal tradição segue com outros pensadores mais recentes como Bergson e Husserl com suas noções de “duração” e de “tempo fenomenológico” como somatórias de experiências vividas que não se apagam. [8]
Nada mais óbvio, portanto, que nem o pensamento cristão, nem o habermasiano poderia cogitar “desfazer o conhecimento”. Aqui então se percebe mais uma tática retórica, qual seja, a da criação de espantalhos para refutação e vitória. Zizek emerge com a suposta “descoberta” de que é impossível “desfazer o conhecimento”, como se alguém, seja Habermas, seja o pensamento cristão ou qualquer um tenha sido estúpido o suficiente para pretender isso. O resultado desse embate simulado é uma inevitável vitória do argumento zizekiano que, afinal, derrota um espantalho por ele mesmo criado.
Outra crítica despropositada de Zizek é a (já mencionada de passagem) de que, detendo a humanidade o poder de manipular os genes isso irá ser feito de qualquer maneira. Zizek pretende com isso deslegitimar toda e qualquer iniciativa, mesmo intelectual, no sentido de pensar e agir criticamente sobre o efetivo uso desse poder e dos limites que podem e devem a ele serem impostos. Nada mais do que uma postura conformista e fatalista que apregoa que já que tudo vai ser assim, que o seja. A seguir esse pensamento já há uma série de outras coisas que podemos então admitir ou deveríamos ter deixado fluir sem qualquer intervenção ao longo do tempo histórico. Já foi mencionada a instituição da escravidão. Se o homem tende a escravizar outros homens, então vai escravizar e não há nada que se possa fazer, proibir isso deve ser ineficaz, deixemos como está. Também já detemos há bastante tempo o poder de uma destruição nuclear da Terra. Zizek tem muito apreço pelo conceito de “pulsão de morte” em Freud e Lacan. Uma hecatombe talvez seja inevitável, por que não então apertar logo os botões e explodir o mundo? Afinal, tudo isso é inevitável, constitui um devir histórico inexorável...
Zizek fala ainda da legitimidade de intervenções para tornar o homem menos “rebelde” ou “incivilizado”. Ele separa muito bem isso da questão da educação enquanto mera transmissão de informações (matemática, gramática etc.). Seu alvo é a personalidade do indivíduo. Indaga o autor: “por que seria mais livre, se está ciente de que é uma pura contingência natural estúpida que determina quem você é”? Sugere então que ser determinado por outros homens, ou por uma burocracia qualquer não difere muito ou nada de ser determinado por um acaso, uma loteria natural. [9]
Pois é, o grande problema que Zizek não enxerga, possivelmente motivado por sua ideologia materialista e coletivista, ainda que marcado por alguns vislumbres críticos, é que não pode haver legitimidade para que um homem determine outro homem ou uma burocracia despersonalizada pela diluição de atribuições determine a personalidade de quem quer que seja. Se a Natureza faz isso, isso é um fato contra o qual a rebeldia não liberta de modo algum, mas cria elos de dominação do homem pelo homem. Bastar pensar um só momento em questões tais como: Quem seria responsável ou deteria legitimamente o poder de determinação? Uma burocracia faria isso ou algum “iluminado” (sic)? Quem determinaria o “novo homem”? O que seria um homem “rebelde” ou “incivilizado” como diz Zizek? Seria aquele que discorda de alguma ideologia ou política? Talvez Zizek gostasse do modelo de Che Guevara que afirmava que não tinha amigos, que seus amigos o eram enquanto com ele concordavam politicamente. [10] Certamente Zizek discorda de Arendt quando esta abomina regimes totalitários que vão além das meras ditaduras para invadirem não somente o agir das pessoas, mas o próprio “ser”. [11] É visível que com sua tranquila admissão de intervenção humana na personalidade de seres humanos o autor sob comento se alinha àqueles que Arendt denuncia em sua obra magistral:
“O que une esses homens é uma firme crença na onipotência humana. O seu cinismo moral e a sua crença de que tudo é permitido repousam na sólida convicção de que tudo é possível. (....) iludidos pela ideia impudente e presunçosa de que se pode fazer tudo, e pela insolente convicção de que tudo que existe é apenas um obstáculo temporário a ser certamente vencido pela organização superior”. [12]
Zizek termina sua invectiva contra a postura prudente de Habermas com a inusitada afirmação de que este apresenta a “morte como solução” (sic) ao sequer cogitar limites para a manipulação genética. De onde Zizek tirou a conclusão de que limitar a manipulação genética é um caminho para a morte? Ainda que “ad argumentandum tantum”, de onde ele tirou que mesmo a proibição total da manipulação genética é um caminho para a morte? O mundo e a humanidade existiram e são plenos de vida há tanto tempo antes que sequer se cogitasse dos sofisticados conhecimentos biológicos hoje disponíveis. Não fosse claramente um recurso sensacionalista, a única qualificação para essa argumentação de Zizek seria a de histeria.
Mas, afinal o que diz efetivamente Habermas?
Vejamos um trecho do autor:
“É nessa situação que nos encontramos hoje. O progresso das ciências biológicas e o desenvolvimento das biotecnologias ampliam não apenas as possibilidades de ação já conhecidas, mas também possibilitam um novo tipo de intervenção. O que antes era ‘dado’ como natureza orgânica e podia quando muito ser ‘cultivado’, move-se atualmente na campo da intervenção orientada para um objetivo”. [13]
Essa é uma simples descrição do “status quo” da ciência biogenética contemporânea. Mais adiante Habermas mergulha na temática da ilegitimidade e dos problemas oriundos de uma determinação do homem por outros homens, sejam eles seus pais ou, pior, alguma forma de Estado ou burocracia:
“Com efeito, um dia quando os adultos passarem a considerar a composição genética desejável dos seus descendentes como um produto que pode ser moldado e, para tanto, elaborarem um design que lhes pareça apropriado, eles estarão exercendo sobre seus produtos geneticamente manipulados uma espécie de disposição que interfere nos fundamentos somáticos da autocompreensão espontânea e da liberdade ética de uma outra pessoa e que, conforme pareceu até agora, só poderia ser exercida sobre objetos, e não sobre pessoas. (...). Essa nova estrutura de imputação resulta da confusão entre pessoas e coisas”. [14]
Habermas denuncia com correção a reificação do humano que parece não abalar Zizek, mas que deve abalar toda a humanidade interessada em preservar sua condição de sujeito e não de objeto.
Zizek se mantém aferrado a um materialismo naturalista em que efetivamente entre um homem, um animal ou outro ser qualquer não há muita diferença, já que todos não passam de conglomerados de células e, dessa forma, nada pode impedir racionalmente sua manipulação por quem quer que seja. Ademais, como já visto, Zizek é contaminado pela falsa crença de que os ideais humanistas, ou melhor, humanitários, derivam da chamada “Idade das Luzes”, são criação revolucionária e não compõem uma tradição secular oriunda do cristianismo. Assim sendo, a colocação de Habermas ao lado da prudência apontada pela Bioética seria uma espécie de “traição aos ideais iluministas” ou uma “postura anti – iluminista” (sic). Por seu turno Habermas, embora seja um autor secular, reconhece literalmente essa raiz histórica ao asseverar que “a história da teologia cristã da Idade Média, em especial a escolástica espanhola tardia, faz parte naturalmente da genealogia dos direitos humanos”. [15] É triste perceber a limitação provocada pela ideologia em um intelectual tão prestigiado pela chamada “intelligentia” contemporânea e até midiática como Zizek. Ele não tem alcance para perceber que, longe de ser uma atitude anti – iluminista ou uma traição a esse pensamento no que tange aos direitos fundamentais, Habermas nada mais faz do que reconhecer a raiz de todo esse movimento e aderir aos seus mais sólidos fundamentos.
A verdade é que dos “ideais” revolucionários o que brotou, como bem informa Illich, foram exatamente dois mitos na área da saúde pública: a profissão médica organizada como uma espécie de sacerdócio investido de poderes praticamente absolutos e a crença na “desaparição total da doença em uma sociedade sem distúrbios e sem paixões”. A diferença é que nessa época não havia o conhecimento biogenético atual e ao invés de se ter a pretensão de alterar a Natureza, se acreditava piamente em uma falácia naturalista embalada por pensadores como Jean Jacques Rousseau, de forma que então a sociedade poderia, com os devidos procedimentos impostos a fórceps, “ser restituída à sua saúde de origem”. [16] Note-se que o contexto e os recursos científicos são diversos, mas a pretensão totalitária de engendrar um “novo homem” mais “saudável” é a mesma. Illich descreve a situação no final do século XVIII com base na narrativa de Michel Foucault:
“Os dois sonhos são isomorfos – um traçando de forma positiva a medicalização rigorosa, militante, dogmática, da sociedade, por uma conversão quase religiosa, e a implantação de um clero de terapeutas; outra traçando a mesma medicalização, mas de um modo triunfante e negativo, isto é, a volatização da doença em um meio corrigido, organizado e ininterruptamente vigiado, onde finalmente a própria medicina desapareceria com seu objeto e sua razão de ser”. [17]
E nessa sociedade totalitária,
“a primeira tarefa do médico é portanto política: a luta contra a doença deve começar pela guerra aos maus governos; o homem só será totalmente e definitivamente curado se for antes libertado. Um Serviço Nacional de Saúde velará por essa libertação; formará os cidadãos para a frugalidade e os fará conhecer os prazeres sadios; promulgará leis alimentares que seus oficiais médicos farão observar; magistrados médicos presidirão tribunais de saúde instituídos para proteger os cidadãos dos charlatães e dos exploradores”. [18]
É incrível o uso das palavras “liberdade” e “proteção” quando o que se está projetando é uma nítida dominação totalitária e invasora do indivíduo. Com os recursos e instrumentos daquela época se sabe que tudo deu em nada, mas que os resultados foram bastante lesivos à dignidade humana.
Nada mais animador para ao pensamento utópico do que a esperança de que novos instrumentos biogenéticos possam hoje criar o “mundo melhor” que não foi possível alcançar em dado momento histórico, isso é típico da dialética hegeliana e do utopismo marxista, sempre apontando para um futuro brilhante por mais misérias e brutalidades que se deva cometer no presente e se tenha cometido no passado. E Zizek ama muito tudo isso. [19]
Se não podemos crer em um progresso histórico linear no qual o novo é sempre melhor e por isso o velho deve ser desconstruído continuamente, podemos e devemos aprender com os erros passados. Na época revolucionária a que fazemos alusão acima havia a mesma contaminação por uma esperança difusa numa salvação mágica pela ciência que não tinha sido viável no campo político, e foi isso que permitiu aquela situação esdrúxula acima descrita:
“Se o médico de repente emerge simultaneamente salvador, heroi da civilização e taumaturgo, não é porque a nova tecnologia médica tenha provado sua eficácia, mas porque as pessoas sentem necessidade de um ritual mágico que dê credibilidade a uma busca em que a revolução política havia fracassado”. [20]
Naqueles tempos o fracasso da revolução francesa em seus desideratos de igualdade, liberdade e fraternidade. Hoje, o fracasso fragoroso dos regimes socialistas ou comunistas sob o ponto de vista econômico, social e político. Naquela época a medicalização clínica da sociedade. Atualmente a crença desvairada numa biogenética cheia de promessas que reclama para si um estatuto de absoluta liberdade e ausência de freios morais e legais. O “sonho” (pesadelo) totalitário de um “mundo melhor” é mutante, mas parece nunca desaparecer do seio da humanidade. Para esse vírus mutante e maléfico não há vacina nem manipulação genética eficaz. O trabalho é preventivo, de detecção precoce da patologia político – social em seu estado embrionário, o que se faz por meio do estudo da “ponerologia” ou da gênese do mal, impedindo a implantação do que se pode chamar de “patocracia” (governos psicopáticos), conforme bem orienta Lobaczewski em sua obra. [21]
É interessante como Zizek é um amante do cinema e parece que não se sensibiliza com romances distópicos convertidos em excelentes filmes tais como “Divergente”, “Não me abandone jamais” entre muitos outros. E, sendo um intelectual, nem com livros, como “A Fábrica de Robôs”, “A Infância de Jesus” [22] e muitos outros que lhe seriam inspiradores e esclarecedores, que demonstrariam pelas letras, pelos sons e pelas imagens como uma intervenção arbitrária humana na própria natureza humana é catastrófica e precisa de limites éticos.
Ocorre que a ideologia entranhada em determinados indivíduos lhes retira o bom senso. Somente pode ser esta a explicação para a atuação de um sujeito claramente inteligente, dotado até de uma inteligência superior, mas que se submete a rastejar por métodos gramscianos [23] de claro e escuro, ocultação e revelação, acenando com certo liberalismo, mas mantendo sua matriz marxista de modo a adorná-la com atrativos que não tem. Como é comum nesses caso, uma hora ou outra alguma coisa bem clara escapa como, por exemplo, no caso de Zizek, sua declaração de amor e fascínio por uma figura tão abjeta como Lênin. Em suas palavras:
“Admiro pessoas que se dispõem a assumir o poder e fazer o trabalho sujo, e talvez isso faça parte de meu fascínio por Lênin. (...). Tenho um respeito considerável pelas pessoas que não perdem o sangue – frio, pelas pessoas que sabem que não há saída para elas” (grifo nosso). [24]
Como em sã consciência uma pessoa informada pode admirar alguém como Lênin ou similares (Hitler, Mao, Fidel e tantos outros facínoras). Certamente isso explica por que Zizek não tem qualquer aversão ao totalitarismo genético ou certamente a qualquer totalitarismo, já que seu ídolo Lênin destruiu por procedimentos breves e brutais a democracia parlamentar da Rússia sem nenhum escrúpulo em fazer o “trabalho sujo”. [25] Sob o tacão desse ídolo também milhares de pessoas foram executadas e presas arbitrariamente, submetidas à tortura e invasões de suas intimidades e vidas privadas, só que nesse caso, ao menos com relação a toda a história, o “maravilhoso” Lênin, disposto a “por a mão na massa”, a “fazer o trabalho sujo”, providenciou para que a historiografia soviética sepultasse suas ações e ordens desprezíveis sob uma verdadeira “montanha de mentiras”. [26] De modo que não é com a mesma desenvoltura com que são capazes de “fazer o trabalho sujo” que deixam rastros para sua responsabilização por tudo que fizeram sujeitos como Lênin e “tuti quanti”. Também não é com essa mesma desenvoltura que confessam sinceramente suas intenções aos idiotas úteis que os seguem até o abismo.
Enfim, o “sonho” (pesadelo) vislumbrado por Zizek quanto a um mundo onde a manipulação genética será capaz de engendrar um “novo homem” “civilizado” e “sem rebeldia”, dominado totalitariamente por outros homens que compõem um sistema qualquer, sequer é uma construção inovadora. Como já dito, esse mal está no mundo desde sempre. Data do século IV a controvérsia então ensejada por Pelágio (360 – 435 d.C.) que, com sua doutrina ulteriormente denominada de “Pelagianismo” contestou o ensinamento agostiniano [27] do “pecado original”, afirmando que o homem se faz a si mesmo por seus atos sem necessidade da graça Divina para sua salvação. Embora isso se dê num contexto teológico e a disputa tenha sido vencida por Santo Agostinho, fato é que o pelagianismo é o embrião de um humanismo que defende a crença de um homem que é criador de si mesmo. E mais, que poderia, por suas forças, chegar à perfeição, chegar a ser como um deus. Daí surgem então as iniciais afirmações de autonomia em que o homem pode, sem risco algum, moldar-se a si mesmo e ao mundo. Pico della Mirandola (1463 – 1494) já no século XV afirma sem pestanejar que “dotado, por assim dizer, do poder arbitral e honorífico de te modelares e de te plasmares por conta própria, deves dar a ti mesmo a forma que tiver tua preferência”. Na mesma senda segue Descartes (1596 – 1650) no século XVII com grande destaque para o “livre arbítrio” do homem para dirigir seu destino. Embora não de forma homogênea, pode-se dizer que o pensamento iluminista do século XVIII, tão caro a Zizek, se aproxima das teses pelagianas na medida em que, como já demonstrado neste trabalho, crê numa capacidade humana de reencontrar-se na Natureza por suas próprias forças, erigindo um “novo homem e um novo mundo”. Não obstante, diversamente de Pelágio, os iluministas não creem no encontro de uma perfeição humana ou mundana. No entanto, não renunciam a melhorar a condição humana e terrena. [28] Frise-se que nada há de ruim em pretender, de forma equilibrada, paciente e humilde, a melhoria das condições humanas no mundo e inclusive o progresso moral da humanidade. Não obstante, não se pode ceder à tentação demiúrgica e, em especial à tentação da legitimação do domínio profundo do homem sobre o homem. Eis onde Zizek peca pela “hybris” [29] e Habermas atinge um secularismo iluminado pela virtude prudência ou da “phronesis” grega.
É imprescindível notar que a exacerbação do humanismo com sua pretensão de refazer o homem e o mundo somente simula uma conquista de autonomia humana. Se antes havia uma heteronomia provinda de Deus, da Natureza ou de forças Cósmicas ou Caóticas incognoscíveis, o que agora nos é festivamente exibido não é uma libertação gerada por uma suposta autonomia humana e sim uma nova heteronomia em que uns homens ou burocracias humanas reinarão absolutas sobre outros homens ou, talvez, simulacros de homens. Não há conquista, não há progresso, há submissão e amesquinhamento, indignidade e ilusão típica de estúpidos arrogantes.