ROMA
Em Roma, a família era totalmente paternalista, tinha na figura masculina a concentração do poder familiar (“paterfamilias”). Até o século III d.C., o chefe de família, detentor do pátrio poder, era quem tinha o poder de vida, de morte e de venda sobre seus filhos. Uniam-se pela consanguinidade e tinham objetivo patrimonial. O afeto não era um fundamento para a constituição da família, a qual tinha como base o princípio da autoridade[1].
A família em Roma não compreendia apenas parentes, mas também animais e escravos sob o poder do pater familias (pai de família). Não havia o conceito de família nuclear, a família era composta por todos que estivesse sob o mando do pai de família.[2]
De 149 e 126 a. C. até 303 d.C. os filhos eram classificados como: iusti ou legitimi (filhos havidos do casamento e adotivos) e os uulgo quaesitii, uulgo concepti ou spurii (havidos de uma união ilegítima). De 303 d.C. até 565 d.C., surgiram mais duas classificações: naturales liberi (filhos havidos de um concubinato) e os legitimados (equiparados aos iusti ou legitimi).[3]
Os filhos iusti ou legitimi deviam respeitar e reverenciar o chefe de família e, por consequência disso, eram proibidos de ajuizarem qualquer ação contra seu pai.[4]
Os filhos uulgo quaesitii, havidos de uma relação não matrimonial, não podiam, de forma alguma, ser reconhecidos por seu genitor, e, portanto, não havia direitos e deveres entre eles. Assim, eles ingressavam na família materna, adquirindo todos os direitos e deveres em relação à genitora.[5]
Os filhos naturales liberi reconhecidos apenas no período pós-clássico do direito romano, eram resultantes de uma relação de concubinato. Entre genitor e filho havia o direito de alimentos entre si e sucessão legítima.[6]
Os filhos legitimados eram aqueles anteriormente naturales liberi que passaram a ser filhos legitimi ou iusti por um dos três motivos: posterior casamento entre os pais, por rescrito do príncipe (ordem do imperador) ou oblação (oferecimento) à cúria.
BRASIL
No Brasil em 1.500, em razão da colonização portuguesa, vigoraram as Ordenações Afonsinas, Manuelinas e as Filipinas.
As Ordenações Filipinas, promulgada pelo Rei Filipe I da Espanha em 1.603, vigoraram até 31 de dezembro de 1.916 (dia anterior ao início da vigência do Código Civil de 1.916). Nelas continha duas classificações para os filhos: legítimos e ilegítimos. Os filhos ilegítimos podiam ser espúrios, ou seja, aqueles incestuosos, adulterinos e sacrílegos ou naturais.
Os filhos ilegítimos espúrios (incestuosos, adulterinos ou sacrílegos) podiam ingressar com ação de investigação de paternidade, apenas para obter o direito aos alimentos. Aos filhos ilegítimos naturais era apenas reconhecido o direito a sucessão legítima. Nesse sentido:
Os filhos ilegítimos espúrios (incestuosos, adulterinos e sacrílegos) podiam, no máximo, promover ação de investigação de paternidade, visando apenas à obtenção de alimentos, porquanto não lhes era reconhecido o direito à sucessão causa mortis. Já para os filhos ilegítimos naturais, embora fosse reconhecida a sucessão testamentária, era proibida a sucessão legítima. Ademais, mesmo entre os filhos ilegítimos naturais, as Ordenações faziam uma diferenciação entre os filhos de pessoas da nobreza e os filhos de pessoas plebeias.[7]
Até o ano de 1.808 (chegada da Corte Portuguesa), o Brasil vivia de forma isolada, tendo como chefe de família o pai protetor, que na maioria das vezes era fazendeiro, agricultor ou tropeiro. Assim, para auxiliar no sustento do lar familiar, os filhos começavam a trabalhar logo cedo.[8]
Com a Lei nº 463 de 1.847 foi extinta a diferença jurídica entre filhos da nobreza e filhos plebeus, apenas para efeito de sucessão. Os filhos ilegítimos espúrios e naturais passaram a ter os mesmos direitos, inclusive à sucessão, podendo concorrer com os filhos legítimos, desde que reconhecidos por escritura pública ou testamento.
Em 1.858 houve a publicação da Consolidação das Leis Civis de autoria de Augusto Teixeira de Freitas[9], que estabelecia:
na constância do casamento, a criação e a alimentação dos filhos eram incumbência do pai e da mãe (art. 166). Na hipótese de separação, o pai assumia, isoladamente, o dever de concorrer com todas as despesas necessárias para a criação dos filhos (art. 167), mesmo em qualquer idade, se ‘por defeito da natureza, ou por outro motivo, forem tão inertes, que não se possam alimentar a si mesmos’ (art. 168). Em contrapartida, fixava a regra da reciprocidade, dando aos pais o direito a alimentos junto aos filhos, ‘quando se vejam reduzidos à tão extrema miséria, que não tenham de que vivam’ (art. 171).[10]
Nesta Consolidação das Leis Civis ainda havia a distinção entre os tipos de filhos, sendo eles legítimos ou ilegítimos, da mesma forma que havia nas Ordenações Filipinas. Admitindo-se, tão-somente a sucessão legítima para os filhos legítimos e ilegítimos naturais (os genitores não possuíam qualquer impedimento para se casarem), desde que reconhecidos pelo pai.
Ressalta-se que até mesmo entre os filhos legítimos havia distinções de ordem sucessória.
Após a Proclamação da República em 15 de novembro de 1889, foi promulgado em 1.890 o Decreto nº 181 (Estatuto do Casamento), que, em seu artigo 7º, § 1º, ficou estabelecido que o pai poderia reconhecer o filho no ato do nascimento ou mediante escritura de notas, e, ainda, poderia ser objeto de prova pela confissão espontânea.
Os aspectos estabelecidos por leis esparsas ficaram concretizados e reunidos no Código Civil de 1916. Assim, as distinções entre a filiação legítima (havida dentro do casamento) e a ilegítima (fora do casamento) continuaram a existir. Àquela época, a distinção era muito importante, visto que cada “tipo” de filho receberia tratamento jurídico diferente, acarretando, portanto, consequências jurídicas também distintas.
No Código Civil de 1916, tal como nas Ordenações Filipinas, os filhos eram diferenciados, sendo chamados de legítimos, ilegítimos ou legitimados.
Os ilegítimos eram divididos em naturais e espúrios. E, por sua vez, os espúrios eram divididos em incestuosos e adulterinos. A redação original do Código Civil de 1916 vedava o reconhecimento de filhos incestuosos e adulterinos (“Art. 358. Os filhos incestuosos e os adulterinos não podem ser reconhecidos”) e apenas autorizava o reconhecimento voluntário (no termo de nascimento, escritura pública ou testamento) dos filhos ilegítimos naturais. “[...] os filhos incestuosos e os adulterinos não podiam ser objeto de reconhecimento voluntário ou forçado (artigos 358 e 363), impedindo-os de concorrer à sucessão hereditária e, até mesmo, aos alimentos.” [11]
Ainda, a investigação de maternidade de filho ilegítimo era proibida, conforme o artigo 364 do Código Civil de 1.916: “Art. 364. A investigação da maternidade só se não permite, quando tenha por fim atribuir prole ilegítima à mulher casada, ou incestuosa à solteira (art. 358).”
Os filhos legitimados eram aqueles anteriormente tidos como ilegítimos (advindos fora do casamento) que passaram a ser legítimos pelo posterior casamento dos pais. Esses só seriam considerados legítimos após o matrimônio, adquirindo todos os efeitos jurídicos decorrentes desta legitimação.
Os filhos legítimos eram tão somente aqueles havidos dentro da relação matrimonial. Únicos que desde logo recebiam proteção do Estado, reflexo da idealização do matrimônio como instituto sagrado da família.
Os filhos adotivos eram tratados de forma igualitária aos filhos legítimos, adquirindo direitos e deveres recíprocos. A adoção, nessa época, poderia ser feita por meio de escritura pública.
O artigo 358 do Código Civil de 1916 preceituava que os filhos incestuosos e adulterinos não poderiam ser reconhecidos. Artigo que seria um absurdo na contemporaneidade, com os filhos respondendo por erros praticados pelos pais. À época, o adultério era crime no Brasil, portanto, quem deveria ser punido era o genitor e não o filho concebido dessa relação. Era a lei escondendo a realidade, protegendo o casamento e segregando os filhos ilegítimos.
Observa-se que nem o critério biológico era levado em conta. Era apenas tutelada a instituição do casamento, na qual os filhos havidos da relação conjugal eram os únicos merecedores de proteção do Estado.
A necessidade de preservação do núcleo familiar – leia-se, preservação do patrimônio da família – autorizava que os filhos fossem catalogados de forma absolutamente cruel. Fazendo uso de uma terminologia plena de discriminação, os filhos se classificavam em legítimos, legitimados e ilegítimos. Os ilegítimos, por sua vez, eram divididos em naturais ou espúrios. Os filhos espúrios se subdividiam em incestuosos e adulterinos. Essa classificação tinha como único critério a circunstância de o filho ter sido gerado dentro ou fora do casamento, isto é, a prole proceder ou não de genitores casados entre si. Assim, a situação conjugal do pai e da mãe refletia-se na identificação dos filhos: conferia-lhes ou subtraía-lhes não só o direito a identidade, mas também o direito à sobrevivência.[12]
A Constituição de 1.937 igualou de forma definitiva os filhos ilegítimos naturais aos filhos legítimos, vejamos: “Art. 126. Aos filhos naturais, facilitando-lhes o reconhecimento, a lei assegurará igualdade com os legítimos, extensivos àqueles os direitos e deveres que em relação a estes incumbem aos pais”.
Com o Decreto-lei nº 3.200 de 19 de abril de 1.941, ficou proibido constar na certidão de nascimento se a referida pessoa é filho legítimo ou ilegítimo, só sendo possível com o pedido do interessado ou por determinação judicial.[13]
Em 24 de setembro de 1942 foi promulgado o Decreto-Lei nº 4.737 e em 21 de outubro de 1949 foi promulgada a Lei nº 883, nas quais foi permitido o reconhecimento voluntário ou forçado dos filhos havidos fora do casamento, porém, apenas depois da dissolução do matrimônio e com a condição de que teriam direito apenas de metade da herança que receberia o filho legítimo.
Porém, só foi com a Lei do Divórcio (Lei nº 6.515 de 26 de dezembro de 1977) foi dado o direito à igualdade na herança entre os filhos havidos ou não na constância do casamento, a possibilidade de o filho ilegítimo ser reconhecido em testamento cerrado, o direito aos alimentos. No entanto, o registro com o nome paterno só poderia ser feito após a dissolução do casamento e poderia ser impugnado por quem tivesse interesse.
A Constituição de 1988 trouxe o princípio da dignidade da pessoa humana e da igualdade de forma expressa, e, consequentemente, em 17 de outubro de 1989 foi aprovada a Lei nº 7.841 que revogou o artigo 358 do Código Civil, permitindo, então, o reconhecimento dos filhos espúrios (os adulterinos já haviam sido objeto do Decreto-Lei nº 4.737/42 e da Lei nº 883/49, só podiam ser reconhecidos quando dissolvida a sociedade conjugal).
Um dos temas, no ramo do Direito de Família, que mais sofreu influência dos valores consagrados pela Constituição Federal de 1988 foi, indubitavelmente, o da filiação, que consiste, em síntese conceitual, na situação de descendência direta, em primeiro grau.[14]
Na atual Constituição Federal de 1988 (artigo 227, §6º) e Código Civil de 2002 (artigo 1.596) foi vedada a distinção entre os filhos, concretizando o princípio da igualdade entre os filhos:
Art. 1.596, Código Civil. Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.
Art. 227, Constituição Federal§ 6º - Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.
Complementando tais dispositivos, o artigo 1.593 do Código Civil de 2002 possibilita o parentesco resultante de outra origem sem nenhuma especificação: “Art. 1.593. O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”.
Dessa forma, pela análise conjuntural do sistema jurídico, entende-se que qualquer origem de filiação também será objeto de proteção do Estado, com a vedação às formas de discriminação entre filhos e baseado no princípio da dignidade da pessoa humana, pois deverão possuir os mesmos direitos:
No estágio em que se encontram as relações familiares e o desenvolvimento científico, tende-se a encontrar a harmonização entre o direito de personalidade ao conhecimento da origem genética, até como necessidade de concretização do direito à saúde e prevenção de doenças, e o direito à relação de parentesco, fundado no princípio jurídico da afetividade.[15]
Ainda, grande conquista foi o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069 de 13 de julho de1990), o qual dá proteção à eles, além dos direitos fundamentais, tais como o direito à vida, à saúde, liberdade, à convivência familiar, entre outros. Ainda, enfatizou em seu artigo 26 a igualdade no reconhecimento entre os filhos:
Art. 26. Os filhos havidos fora do casamento poderão ser reconhecidos pelos pais, conjunta ou separadamente, no próprio termo de nascimento, por testamento, mediante escritura ou outro documento público, qualquer que seja a origem da filiação.
Parágrafo único. O reconhecimento pode preceder o nascimento do filho ou suceder-lhe ao falecimento, se deixar descendentes.
Nessa mesma Lei, foi reconhecida a posse do estado de filho como sendo direito indisponível, imprescritível e personalíssimo:
Art. 27. O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de Justiça.
Assim, verifica-se a evolução social e normativa da sociedade brasileira, dando respaldo para a promulgação do Código Civil de 2002, o qual segue os fundamentos da Constituição Federal de 1988 e elimina as discriminações ocorridas durante os anos anteriores. Houve, assim, uma desvinculação entre o tipo de filiação e a relação mantida pelos genitores.[16]
[1] FUJITA, Jorge Shiguemitsu. Filiação. São Paulo: Atlas, 2009. p.13.
[2] FUNARI, Pedro. Direito de família: de Roma para os tempos atuais. Revista IBDFAM, Belo Horizonte, ed. 5, p. 8, nov. 2013.
[3] FUJITA, op.cit., p.14.
[4] FUJITA, op. cit., p.14.
[5] FUJITA, loc. cit.
[6] FUJITA, loc. cit.
[7] FUJITA, op. cit., p.18.
[8] GOMES, Laurentino. A família na história do Brasil. Revista IBDFAM, Belo Horizonte, ed. 5, p. 6, nov. 2013.
[9] Cf. FREITAS, Augusto Teixeira de. Consolidação das Leis Civis. Ed. Fac-sim. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorias, 2003, v. I, p. 157-158.
[10] FUJITA, op. cit., p.18.
[11] FUJITA, op. cit., p. 20.
[12] FARIAS, Cristiano Chaves de; SIMÕES, Thiago Felipe Vargas. Reconhecimento de filhos e a ação de investigação de paternidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 6.
[13] FUJITA, op. cit., p.21.
[14] FILHO, Rodolfo Pamplona; GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo Curso de Direito Civil, volume 6. São Paulo: Saraiva, 3º ed., 2013. p. 617.
[15] LÔBO, Paulo Luiz Netto. Princípio jurídico da afetividade na filiação. Disponível em https://jus.com.br/artigos/527
[16] FARIAS; SIMÕES, op. cit., p. 09.