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O princípio da insignificância e os crimes contra o meio ambiente

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25/01/2015 às 10:59
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4  DO CRIME

A definição de crime não é tarefa simples e o exaurimento do tema não se dará no presente artigo, diante do escopo central.

O ordenamento jurídico nos fornece o conceito legal de crime, na Lei de Introdução ao Código Penal (Decreto-Lei 3.914/41):

Art 1º. Considera-se crime a infração penal que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração penal a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas alternativas ou cumulativamente.

Diante do referido texto legal, foram elaboradas diversas classificações. Uma delas foi analisada no item supra, mesmo que de forma indireta. A explanação sobre a definição de Direito Penal tratou do conceito material.

O mesmo raciocínio aplica-se à definição de crime. Crime, no sentido material, é toda ação ou omissão humana (ato de vontade, isto é, conduta) que lesa ou expõe a lesão (de forma abstrata ou concreta) bens jurídicos relevantes para a sociedade ou ao indivíduo. Note-se que esse conceito apresenta a mesma essência do conceito material de Direito Penal.

O conceito formal de crime envolve, somente, a subsunção da conduta à norma legal. Ou seja, circunscreve-se à coincidência do ato voluntário (incluída a omissão) à descrição legal, que implicará a imputação da pena cominada.

Fernando Capez, com o poder da síntese, define crime formal:

O conceito de crime resulta da mera subsunção da conduta ao tipo legal e, portanto, considera-se infração penal tudo aquilo que o legislador descrever como tal, pouco importando seu conteúdo[11].

Ressalte-se, contudo, que o conceito formal de crime não pode ser utilizado isoladamente. Vale dizer, a definição de crime somente estará completa, com a aplicação simultânea do conceito formal e do conceito material, sob pena de, ao se adotar somente o conceito formal, gerar inconstitucionalidade.

Fernando Capez, mais uma vez, ressalta a necessidade de coordenação do conceito material e do conceito formal de crime: “Considerar a existência de um crime sem levar em conta a sua essência ou lesividade material afronta o princípio constitucional da dignidade humana[12]”.

Por fim, resta o conceito analítico que, para o presente artigo, apresenta a maior relevância, na medida em que estabelece os elementos estruturais do crime. O estudo desses elementos é fundamental para compreensão do princípio da insignificância e, sobretudo, o momento de sua aplicação.

Diante da precisão técnica, mais uma vez, utiliza-se as palavras de Fernando Capez:

É aquele que busca, sob um prisma jurídico, estabelecer os elementos estruturais do crime. A finalidade desse enfoque é proporcionar a correta e mais justa decisão sobre a infração penal e seu autor, fazendo com que o julgador ou intérprete desenvolva o seu raciocínio em etapas. Sob esse ângulo, crime é todo fato típico e ilícito. Dessa maneira, em primeiro lugar deve ser observada a tipicidade da conduta. Em caso positivo, e só neste caso, verifica-se se a mesma é ilícita ou não. Sendo o fato típico e ilícito, já surge a infração penal. A partir daí, é só verificar se o autor foi ou não culpado pela sua prática, isto é, se deve ou não sofrer um juízo de reprovação pelo crime que cometeu. Para a existência da infração penal, portanto, é preciso que o fato seja típico e ilícito[13].

A explanação nos revela que o crime é formado pelo fato típico e ilicitude. Trata-se do conceito bipartido de crime, adotado também pelo Código Penal Brasileiro, segundo entendimento de Fernando Capez, cuja orientação é seguida no presente artigo.

É preciso afirmar que este tema gera muita divergência. Basileu Garcia sustentava que os elementos do crime eram: fato típico, ilicitude, culpabilidade e punibilidade.

A posição de Basileu Garcia restou minoritária, pois a punibilidade é consequência da prática do crime e não seu requisito. Vale dizer, o crime existe independente da punibilidade. Logo, a posição do mestre resta somente para fins acadêmicos.

Mas existe uma terceira orientação. Nelson Hungria, Aníbal Bruno, E. Magalhães Noronha e Luiz Regis Prado adotam a posição tripartida. Crime é formado pelo fato típico, ilicitude e culpabilidade.

A discussão sobre qual teoria do crime foi adotada pelo Código Penal Brasileiro, apesar de possuir ricos argumentos, não influencia diretamente no presente artigo.

O foco do presente artigo é o princípio da insignificância. Assim, como será demonstrado, o ponto de ligação entre esse princípio e o conceito de crime se dá no fato típico. A culpabilidade, ponto de divergência entre a teoria bipartida e tripartida, não influencia no princípio da insignificância.

Assim, para o presente artigo, são suficientes as considerações sobre o conceito de crime desenvolvidas até o momento. Porém, é preciso elaborar com mais profundidade o conceito de fato típico.


5  DO FATO TÍPICO

Conforme exposto no item supra, o fato típico é, pela classificação analítica, elemento do conceito de crime. Luiz Regis Prado conceitua fato típico e faz importante diferenciação entre fato típico e tipicidade:

Assim, stricto sensu, o tipo penal consiste na descrição da conduta contrária à proibição ou ao mandato, a que se refere a cominação penal. O tipo é a descrição abstrata de um fato real que a lei proíbe (tipo incriminador). Como efeito, para que uma ação ou omissão constituam delito, devem estar compreendidas num tipo de injusto do Código Penal ou de uma lei especial. Essa necessidade é derivada do princípio da legalidade, e implica a função de garantia do tipo. Desse modo, o tipo legal vem a ser o modelo, imagem ou esquema conceitual da ação ou da omissão vedada, dolosa ou culposa. É a expressão concreta dos específicos bens jurídicos amparados pela lei penal. O tipo – como tipo de injusto – compreende todos os elementos e/ou circunstâncias que fundamentam o injusto penal específico de uma figura delitiva (= de uma conduta). Serve de base à ilicitude particular de uma ação ou omissão típica. Tipo de injusto é a ação ou omissão típica e ilícita. Está implícita a valoração da conduta típica como ilícita ou antijurídica. Ao tipo penal cabe delimitar um injusto específico penal, como injusto qualificado em especial medida, e, ao mesmo tempo, um injusto penal específico, diante do injusto genérico. De seu turno, a tipicidade é a subsunção ou adequação do fato ao modelo previsto no tipo legal. É um predicado, um atributo da ação, que a considera típica (juízo de tipicidade positivo) ou atípica (juízo de tipicidade negativo). Daí ser a ação típica um substantivo, isto é, a ação já qualificada ou predicada como típica (subsumida ao tipo legal). A tipicidade é a base do injusto penal. Mais tecnicamente, averba-se que a tipicidade penal se apresenta como resultado de uma concreção da norma mediante a lei penal, e ainda que é a tipicidade penal que atribui a um injusto o caráter específico de injusto penal ou punível. Com a tipicidade, delimita-se, portanto, o âmbito do jurídico-penalmente relevante – o âmbito do punível -, em que se estabelecem as fronteiras e os contornos da intervenção penal[14].

Verifica-se, portanto, que o tipo penal veicula o núcleo material, ou seja, a conduta (ação ou omissão), que, se praticada, implica a imputação da pena cominada.

É o fato humano (conduta – ação ou omissão), que se enquadra com perfeição aos elementos descritos no tipo penal.

Por exemplo, o artigo 121 do Código Penal estabelece: “Matar alguém: Pena - reclusão, de seis a vinte anos”. O fato típico é consubstanciado pelo verbo matar. Essa é a conduta eleita pelo legislador como capaz de imputar a aplicação da pena.

Importante destacar, desde já, um aspecto importante quanto ao fato típico. Conforme explicitado por Luiz Regis Prado, o fato típico tem profunda função de garantia, na medida em que deve descrever, com precisão, a conduta que imputa a pena cominada. Dessa forma, somente com a perfeita subsunção do fato à norma (tipicidade) é que haverá a incidência da norma penal.

Neste contexto, não se pode falar em interpretação ampliativa da norma penal incriminadora. Não cabe analogia para aumentar o âmbito de incidência da norma penal incriminadora. Afinal, entendimento contrário, violaria o princípio da legalidade e o princípio da anterioridade, que estabelecem que o fato típico deve ser anterior à conduta e estar previsto em lei.

Os elementos apresentados até o momento são suficientes para a análise do escopo principal do artigo. Contudo, ainda é preciso uma última observação sobre o fato típico.

Nos crimes materiais (que demandam a realização de resultado naturalístico para sua consumação), o fato típico é decomposto nos seguintes elementos: (i) conduta, (ii) resultado naturalístico, (iii) relação de causalidade e (iv) tipicidade.

Os elementos mais relevantes (conduta e tipicidade), já foram abordados no presente item. Por sua vez, o resultado naturalístico é a modificação do mundo exterior causada pela conduta do agente. O nexo de causalidade é a implicação entre a conduta praticada e o resultado gerado.

Como exemplo de crime material podemos, mais uma vez, citar o artigo 121 do Código Penal, na qual a conduta do agente gera a morte de um ser humano.

Nos crimes formais e de mera conduta, o fato típico é decomposto nos seguintes elementos: (i) conduta e (ii) tipicidade. Não há que se falar em resultado naturalístico e nexo de causalidade. Isso porque, nos crimes formais, o resultado naturalístico, apesar de possível, não é exigido pela norma penal para consumação. Por sua vez, nos crimes de mera conduta, o resultado naturalístico é impossível.

Após essa explanação podemos adentrar ao princípio da insignificância ou bagatela.


6  DOS CRIMES AMBIENTAIS

A leitura do artigo 225 da Constituição Federal revela que há comando do constituinte originário para que o legislador ordinário estabeleça sanções penais em caso de violação ao meio ambiente (potencial ou efetiva).

Há, no Brasil, diversas normas que estabelecem sanções penais por violações ao meio ambiente. Cabe destacar a Lei 9.605/98.

É evidente que o presente artigo não pretende fazer um estudo exaustivo da Lei 9.605/98. Na verdade, para os fins do presente artigo, é necessário, somente, alertar o leitor sobre os dispositivos inseridos na lei em comento, bem como destacar os crimes contra a flora.

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O destaque aos crimes quanto à flora se justifica pela complexidade da incidência do princípio da bagatela nos referidos crimes. A Lei 9.605/98 estabelece os crimes contra a flora nos artigos 38 a 53. Dentre eles, cabe destaque para os seguintes tipos penais:

Art. 38. Destruir ou danificar floresta considerada de preservação permanente, mesmo que em formação, ou utilizá-la com infringência das normas de proteção:

Pena - detenção, de um a três anos, ou multa, ou ambas as penas cumulativamente.

Parágrafo único. Se o crime for culposo, a pena será reduzida à metade.

Art. 38-A.  Destruir ou danificar vegetação primária ou secundária, em estágio avançado ou médio de regeneração, do Bioma Mata Atlântica, ou utilizá-la com infringência das normas de proteção: (Incluído pela Lei nº 11.428, de 2006).

Pena - detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, ou multa, ou ambas as penas cumulativamente. (Incluído pela Lei nº 11.428, de 2006).

Parágrafo único.  Se o crime for culposo, a pena será reduzida à metade. (Incluído pela Lei nº 11.428, de 2006).

Art. 39. Cortar árvores em floresta considerada de preservação permanente, sem permissão da autoridade competente:

Pena - detenção, de um a três anos, ou multa, ou ambas as penas cumulativamente.

Art. 40. Causar dano direto ou indireto às Unidades de Conservação e às áreas de que trata o art. 27 do Decreto nº 99.274, de 6 de junho de 1990, independentemente de sua localização:

§ 1o Entende-se por Unidades de Conservação de Proteção Integral as Estações Ecológicas, as Reservas Biológicas, os Parques Nacionais, os Monumentos Naturais e os Refúgios de Vida Silvestre. (Redação dada pela Lei nº 9.985, de 18.7.2000)

§ 2o A ocorrência de dano afetando espécies ameaçadas de extinção no interior das Unidades de Conservação de Proteção Integral será considerada circunstância agravante para a fixação da pena. (Redação dada pela Lei nº 9.985, de 18.7.2000)

§ 3º Se o crime for culposo, a pena será reduzida à metade.

Os referidos dispositivos legais demandariam, para sua completa análise, um amplo estudo sobre o fato típico, circunstâncias objetivas, materialidade, dentre outros aspectos que podem ser extraídos do conceito analítico de crime.

No que tange ao presente artigo, é importante destacar o objeto material dos crimes em questão.

O artigo 38 tem por objeto material as florestas de proteção permanente, mesmo que em formação. O artigo 38-A fala em vegetação primária ou secundária, em estágio avançado ou médio de regeneração, do Bioma Mata Atlântica. O artigo 39 tem, por objeto material, árvores em florestas consideradas de preservação permanente e o artigo 40 tem como objeto material as Unidades de Conservação e áreas de que trata o art. 27 do Decreto nº 99.274, de 6 de junho de 1990, independentemente de sua localização.

As áreas mencionadas no Decreto nº 99.274, de 6 de junho de 1990, são as áreas localizadas em um raio de 10 km das Unidades de Conservação.

Pode-se concluir que o foco dos referidos tipos penais é a preservação da flora e dos ecossistemas específicos, como a Mata Atlântica e as Unidades de Conservação.


7  DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA (OU BAGATELA)

Conforme visto nos itens supra, só é possível falar em crime quando existir a efetiva violação ao bem jurídico tutelado e que esse bem seja relevante para o indivíduo ou sociedade. Trata-se, como visto, da consagração do conceito material de crime.

A violação de bem jurídico relevante é fundamental para a elaboração, pelo legislador ordinário, do tipo penal.

Mas não é só. Quando da subsunção do fato à norma, é necessário que a conduta praticada tenha, no caso concreto, violado o bem jurídico tutelado.

Diante dessas premissas, houve o questionamento sobre a incidência do direito penal perante condutas que, apesar de abstratamente corresponderem ao tipo penal, não apresentam, no caso concreto, efetiva violação ao bem jurídico.

É nesse contexto que nasce o princípio da insignificância penal (ou bagatela). Cleber Masson faz explanação que sintetiza o princípio da bagatela e seus principais aspectos:

O princípio da insignificância ou da criminalidade de bagatela surgiu no Direito Civil, derivado do brocado de minimus no curat praetor. Em outras palavras, o Direito Penal não deve se ocupar de assuntos irrelevantes, incapazes de lesar o bem jurídico legalmente tutelado. Na década de 70 do século passado, foi incorporada ao Direito Penal pelos estudos de Claus Roxin. Este princípio, calcado em valores de política criminal, funciona como causa de exclusão da tipicidade, desempenhando uma interpretação restritiva do tipo penal. Para o Supremo Tribunal Federal, a mínima ofensividade da conduta, a ausência de periculosidade social da ação, o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica constituem os requisitos de ordem objetiva autorizadores da aplicação desse princípio.

[...]

Com a caracterização desse princípio, opera-se tão somente a tipicidade formal, isto é, adequação entre o fato praticado pelo agente e a lei penal incriminadora. Não há, entretanto, tipicidade material, compreendida como o juízo de subsunção capaz de lesar ou ao menos colocar em perigo o bem jurídico penalmente tutelado.

[...]

Em síntese, o princípio da insignificância tem força suficiente para descaracterizar, no plano material, a própria tipicidade penal, autorizando inclusive a concessão de ofício de habeas corpus pelo Poder Judiciário.

[...]

O princípio da insignificância tem aplicação a qualquer espécie de delito como que ele seja compatível, e não apenas aos crimes contra o patrimônio[15].

É preciso destacar que o princípio da insignificância é causa de exclusão da tipicidade. Ou seja, quando da incidência do referido princípio, não há que se falar em fato típico.

Note-se que, com suporte no entendimento do STF, destacado por Cleber Masson, é possível afirmar que os requisitos objetivos para aplicação do princípio em tela são: a mínima ofensividade da conduta, a ausência de periculosidade social da ação, o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica.

Todos os requisitos possuem uma premissa comum, a ausência de violação (ou irrisória violação) ao bem jurídico. Exemplo clássico é o furto de um clips para papel.

Se o princípio da insignificância funciona como causa de exclusão da tipicidade, é de rigor a conclusão de que somente requisitos objetivos são necessários para sua aplicação. Ou seja, por se tratar de princípio com aplicação ligada ao fato típico, circunstâncias não relacionadas à materialidade (reincidência, profissão do agente, etc.) não podem ser consideradas para afastar a aplicação do princípio.

Admitir raciocínio distinto é considerar que a ocorrência do fato típico e a incidência da norma penal dependem das características pessoais do agente acusado; o que não se coaduna com a estrutura de crime acima demonstrada e com os princípios básicos do Direito Constitucional vigente (Princípio Republicano, Princípio da Igualdade e Princípio da Dignidade da Pessoa Humana)[16].

Portanto, a melhor técnica aponta para a irrelevância dos fatos pessoais do agente para fins de aplicação do princípio da insignificância. Logo, não se pode negar a incidência do princípio da insignificância diante, por exemplo, da reincidência do agente.

Contudo, cabe destacar que esse não é o entendimento que prevalece no STF, conforme se constata do voto do Ministro Gilmar Mendes, em recente julgado:

Da leitura do trecho acima transcrito, verifica-se que os pacientes tiveram suas penas agravadas por serem reincidentes na prática de crime contra o patrimônio. No ponto, registro que, na Turma, tenho-me posicionado, juntamente com Sua Excelência o Ministro Celso de Mello, no sentido da possibilidade de aplicação do princípio da bagatela em casos a envolver reincidentes. Nesse sentido, cito os HC 112.400/RS de minha relatoria, DJe 8.8.2012, e 116.218/MG, Relator originário Min. Gilmar Mendes, Redator p/ o acórdão Min. Teori Zavaski. É que, para aplicação do princípio em comento, somente aspectos de ordem objetiva do fato devem ser analisados. E não poderia ser diferente. Isso porque, levando em conta que o princípio da insignificância atua como verdadeira causa de exclusão da própria tipicidade, equivocado é afastar-lhe a incidência tão somente pelo fato de o paciente possuir antecedentes criminais. Partindo-se do raciocínio de que crime é fato típico, antijurídico ou, para outros, fato típico, antijurídico e culpável, é certo que, uma vez excluído o fato típico, não há que se falar em crime. É por isso que reputo mais coerente a linha de entendimento segundo a qual, para incidência do princípio da bagatela, devem ser analisadas as circunstâncias objetivas em que se deu a prática delituosa, o fato em si, não os atributos inerentes ao agente, sob pena de, ao proceder-se à análise subjetiva, dar-se prioridade ao contestado e ultraprassado direito penal do autor em detrimento do direito penal do fato. No entanto, as turmas do STF já se posicionaram no sentido de afastar a aplicação do princípio da insignificância aos acusados reincidentes ou de habitualidade delitiva comprovada: HC 97.007/SP, rel. Min. Joaquim Barbosa, Segunda Turma, DJe 31.03.2011; HC 101.998/MG, rel. Min. Dias Toffoli, Primeira Turma, DJe 22.03.2011; HC 103.359/RS, rel. Min. Cármen Lúcia, Primeira Turma, DJe 6.8.2010, e HC 112.597/PR, rel. Min. Cármen Lúcia, Segunda Turma, DJe 10.12.2012. Desse modo, ressalvo minha posição pessoal, mas, em homenagem ao princípio do colegiado, adoto a orientação no sentido de afastar o princípio da insignificância quando os autos sinalizam a reiteração delitiva, o que se verifica na espécie. Nesses termos meu voto é no sentido de denegar a ordem[17].

Portanto, diante do entendimento do STF, para aplicação do princípio da insignificância, é preciso considerar, além dos aspectos objetivos já aventados, os aspectos pessoais do agente, tais como a ausência de reincidência e ausência de habitualidade criminal.

Outro aspecto fundamental para o presente artigo é o seguinte: se o princípio da insignificância funciona como exclusão da tipicidade do crime, quem pode reconhecer sua aplicação e em que momento deve ser aplicado?

Se o princípio da insignificância exclui o fato típico e o próprio crime, por consequência lógica, qualquer aplicador do direito (delegado de polícia, consultoria jurídica da administração, etc.) pode, ao analisar o caso concreto, reconhecer a aplicação do princípio.

Cite-se o exemplo do furto de um clips de papel. Nesse caso, é evidente a total incidência do princípio da insignificância e a ausência de materialidade da conduta. Logo, se não há crime, é perfeitamente plausível que a autoridade policial (delegado de polícia, por exemplo), ao tomar conhecimento do fato, registre a ocorrência e elabore portaria para não instauração de inquérito policial, na medida em que evidente a ausência de crime.

A conclusão acima exposta, apesar de mais adequada, não encontra respaldo na jurisprudência. Prevalece o entendimento de que somente o Poder Judiciário pode aplicar o princípio da insignificância. Cleber Masson, apesar de ter posicionamento consoante ao aqui exposto, afirma:

A quem compete valorar a incidência do princípio da insignificância? Em outros termos, a autoridade policial pode deixar de efetuar a prisão em flagrante, por reputar presente a criminalidade de bagatela? O Superior Tribunal de Justiça entende que somente o Poder Judiciário é dotado de poderes para efetuar o reconhecimento do princípio da insignificância. Destarte, a autoridade policial está obrigada a efetuar a prisão em flagrante, cabendo-lhe submeter imediatamente a questão à autoridade judiciária competente. Como já se decidiu, no momento em que toma conhecimento de um delito, surge para a autoridade policial o dever legal de agir e efetuar o ato prisional. O juízo acerca da incidência do princípio da insignificância é realizado apenas em momento posterior pelo Poder Judiciário, de acordo com as circunstâncias atinentes ao caso concreto. Com o devido respeito, ousamos discordar dessa linha de pensamento, por uma simples razão: o princípio da insignificância afasta a tipicidade do fato. Logo, se o fato é atípico para a autoridade judiciária, também apresenta igual natureza para a autoridade policial. Não se pode conceber, exemplificativamente, a obrigatoriedade da prisão em flagrante no tocante à conduta de subtrair um único pãozinho, avaliado em poucos centavos, do balcão de uma padaria, sob pena de banalização do Direito Penal e do esquecimento de outros relevantes princípios, tais como o da intervenção mínima, da subsidiariedade, da proporcionalidade e da lesividade. Para nós, o mais correto é agir com prudência no caso concreto, acolhendo o princípio da insignificância quando a situação fática efetivamente comportar sua incidência[18].

No sentido da exclusividade do Poder Judiciário na apreciação do princípio da insignificância, vale o destaque do seguinte julgado do STJ:

Logo, a declaração de atipicidade do crime de furto por esta Corte não retira a legalidade da ordem de prisão efetuada pelos policiais militares, pois, no momento da prisão em flagrante do paciente, havia a presunção de cometimento do crime contra o patrimônio. Cumpre asseverar que a observância do princípio da insignificância no caso concreto é realizada a posterior, pelo Poder Judiciário, analisando as circunstâncias peculiares de cada caso[19].

Apesar do princípio da insignificância ser uma causa de exclusão da tipicidade e, consequentemente, afastar a existência de crime, a jurisprudência afirma que somente a autoridade judiciária pode apreciar a aplicação do referido princípio.

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Sobre o autor
Marcelo Carita Correra

Procurador Federal,<br>exerceu a advocacia privada em São Paulo/SP<br>Bacharel em Direito pela PUC-SP<br>Especialista em Direito Tributário pela PUC-SP<br>

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CORRERA, Marcelo Carita. O princípio da insignificância e os crimes contra o meio ambiente. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4225, 25 jan. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31352. Acesso em: 2 nov. 2024.

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