A verdade é que a filiação socioafetiva sempre existiu na realidade do Brasil, porém só há pouco tempo ela tomou decisivo lugar na esfera jurídica, mesmo não havendo norma especial que a regule. Mesmo antes da instituição do divórcio - quando surgiram novas relações como padrasto e madrasta, o que desencadeou vínculos paternos e maternos afetivos - já ocorria a chamada adoção à brasileira.
A adoção à brasileira ocorre quando há o reconhecimento voluntário da paternidade, de modo que alguém registra uma criança como se fosse seu filho, configurando crime de registro de filho alheio como próprio (“Art. 242. Código Penal. Dar parto alheio como próprio; registrar como seu o filho de outrem; ocultar recém-nascido ou substituí-lo, suprimindo ou alterando direito inerente ao estado civil”). Leciona Paulo Lôbo:
Dá-se com a declaração falsa e consciente de paternidade e maternidade [...] sem observância das exigências legais para adoção. O declarante ou os declarantes são movidos por intuito generoso e elevado de integrar a criança à sua família, como se a tivessem gerado. Contrariamente á lei, a sociedade não repele tal conduta. A “adoção à brasileira”, fundada no “crime nobre” da falsificação do registro de nascimento, é um fato social amplamente aprovado, por suas razões solidárias [...].[1]
Jorge Shiguemitsu Fujita[2] e Fernanda Aparecida Corrêa Otoni[3] concluem que a adoção à brasileira é uma espécie de filiação socioafetiva. Há razão, porém, a adoção à brasileira se configura, normalmente, anteriormente ao vínculo afetivo. Por exemplo, o companheiro registra filho da genitora com antigo namorado, em razão do vínculo afetivo com a própria mãe e, ainda, não com o filho.
Ocorre que a adoção à brasileira gera efeitos jurídicos, além de psicológicos, como toda paternidade. Ainda, mesmo que configure crime, é praticado por motivo de nobreza, a fim de acolher uma criança que está ou que pode vir a sofrer perigo de vida. Assim, se comprovada a nobreza do ato poderá o juiz conceder o perdão judicial ou então aplicar a forma privilegiada (“Art. 242. Código Penal. Parágrafo único - Se o crime é praticado por motivo de reconhecida nobreza: Pena - detenção, de um a dois anos, podendo o juiz deixar de aplicar a pena”). Nesse sentido:
AÇÃO PENAL. REGISTRO DE FILHO ALHEIO COMO PRÓPRIO. GENITORA SEM CONDIÇÕES DE PROVER O SUSTENTO DA CRIANÇA E QUE CONCORDA COM A ENTREGA ÀQUELE QUE FIGURA COMO PAI. MOTIVO NOBRE EVIDENCIADO. APLICAÇÃO DO ART. 242, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CÓDIGO PENAL. CONCESSÃO DO PERDÃO JUDICIAL. DECISÃO ACERTADA. RECURSO DESPROVIDO. Se a conduta definida como crime no caput art. 242 do Código Penal é perpetrada por motivo de reconhecida nobreza, pode o juiz, autorizado pelo parágrafo único da aludida norma, deixar de aplicar a pena e conceder ao acusado o perdão judicial, forma de extinção da punibilidade que abrange tanto os efeitos primários, quanto os secundários da sentença.[4]
Ainda, ressalta-se que o fato de ser crime não exonera de deveres e efeitos jurídicos próprios da filiação socioafetiva, não sendo possível pleitear a desconstituição da paternidade sob tal fundamento. Os direitos decorrentes da adoção à brasileira são próprios da posse do estado de filho, que foi constituída por vontade própria do pai registral e socioafetivo, pois sabia que não era seu filho, mas mesmo assim quis registrar como se o fosse. No mesmo sentido:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO ANULATÓRIA DE INEXISTÊNCIA DE FILIAÇÃO. ADOÇÃO À BRASILEIRA. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. IMPROCEDÊNCIA DA AÇÃO. A adoção à brasileira, a exemplo da adoção legal, é irrevogável. É a regra. Ausente qualquer nulidade no ato e demonstrado nos autos a filiação socioafetiva existente entre as partes, admitida pelo próprio demandado, não cabendo desconstituir o registro de nascimento válido. Improcedência da negatória de paternidade mantida. Precedentes jurisprudenciais. APELAÇÃO DESPROVIDA.[5]
O reconhecimento voluntário é irrevogável, porém, o Código Civil em seu artigo 1.604 preceitua que “Ninguém pode vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do registro”. Assim, o Código abre a possibilidade de se efetuar a desconstituição do reconhecimento, sendo necessária a comprovação de erro ou falsidade e, também, conforme jurisprudência moderna, a comprovação de inexistência de vínculo afetivo.
Assim, a jurisprudência dominante vem introduzindo a proibição da desconstituição da filiação após o reconhecimento voluntário e a presença do vínculo socioafetivo, também caracterizado com a posse do estado de filho:
NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. REVELIA DO MENOR DEMANDADO. EFEITOS DO ART. 319, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. INCIDÊNCIA, ENTRETANTO, DO DISPOSTO NO ART. 320, INCISO II, DO MESMO ESTATUTO. FORTES DÚVIDAS, DO AUTOR, ACERCA DA PATERNIDADE DO MENOR. RECONHECIMENTO VOLUNTÁRIO, AINDA ASSIM, DA PATERNIDADE EM ANTERIOR DEMANDA JUDICIAL. COAÇÃO POR PARTE DA AUTORIDADE JUDICIÁRIA. ALEGAÇÃO NÃO COMPROVADA. EXAME DE DNA. VINCULAÇÃO GENÉTICA AFASTADA. HIPÓTESES DO ART. 1.604 DO CÓDIGO CIVIL, NO ENTANTO, NÃO DELINEADAS NOS AUTOS. VINCULAÇÃO SOCIOFETIVA. AUSÊNCIA OU RUPTURA NÃO COMPROVADAS. SOBREPOSIÇÃO DA VERDADE REGISTRAL À VERDADE BIOLÓGICA. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. CONFIRMAÇÃO. RECLAMO RECURSAL DESATENDIDO.
1 Ação negatória de paternidade é típica ação de estado, versando sobre direitos indisponíveis. Disso resulta que, ainda que não conteste o demandado a ação, não se operam, quanto a ele, os efeitos da revelia - CPC, art. 319 -, não havendo como se reputar verdadeiros os fatos afirmados pelo autor, conforme claramente previsto no art. 320, inc. II, do Código de Processo Civil.
2 No moderno Direito de Família, a paternidade tem como traço essencialmente preponderante a socioafetividade. Disso resulta que, na atualidade, a paternidade socioafetiva assumiu o 'status' de gênero, do qual são espécies a paternidade biológica e a não biológica. A desbioligização da paternidade, identifica pais e filhos não consanguíneos, mas que, unidos por vínculos de afeto, solidificaram ou formaram uma verdadeira filiação psicológica, que se sobrepõe à filiação biológica.
3 De conformidade com o que dispõem o art. 1.609 do Código Civil e o art. 1.º da Lei n.º 8.560/1992, o ato de reconhecimento da paternidade é timbrado pela irrevogabilidade. A anulação do assento civil de nascimento, com supressão do nome que dele consta como sendo pai do registrando, só se viabiliza quando cabalmente provada a ocorrência de vício de consentimento no ato registral. Não é o que ocorre quando o registrante, mesmo com fortíssimas dúvidas acerca da existência efetiva de elos biológicos entre ele e o menor registrado, dúvidas essas que beiravam a uma quase certeza, já que estimadas por ele próprio em aproximadamente 90%, ainda assim o registrou como se filho seu fosse. Nessa contextualização, mormente quando não provada nos autos a alegada coação judiciária havida para que registrasse ele o menor, desimporta que o exame de DNA tenha concluído pela exclusão da paternidade por ele assumida registralmente, de forma espontânea.
4 Ao autor da negatória de paternidade incumbe, com exclusividade, comprovar a ausência de liame socioafetivo entre ele e o menor que registrou voluntariamente como filho, prova essa que não decorre do simples ajuizamento da ação promovida, como implicação lógica e irrefutável desta. Não produzida essa prova, a presunção de socioafetividade subsiste, prevalecendo sobre a verdade biológica.[6]
Para ser determinada a desconstituição registral da filiação com fundamento biológico, será necessário comprovar que nunca houve vínculo afetivo, e, portanto, que não tenha sido constituída a posse do estado de filho. Além disso, será necessária a comprovação de que no momento do registro houve vício de consentimento, seja erro ou falsidade, conforme artigo 1.604 do Código Civil. Caso a paternidade registral for assumida de forma espontânea, quando sabia que não era seu genitor, sem ocorrer erro ou falsidade, terá a adoção à brasileira, impedindo o pai registral de pleitear a desconstituição da paternidade, com a alegação de não haver vínculo biológico.
O artigo 1.609 do Código Civil veda a revogação voluntária do reconhecimento da paternidade, mas não a sua anulação em razão de vício. Quando evidente que o pai registral foi induzido a erro substancial e essencial, ou seja, erro que “tem papel decisivo na determinação da vontade do declarante, de modo que, se conhecesse o verdadeiro estado das coisas, não teria desejado, de modo nenhum, concluir o negócio” [7], o registro deve ser anulado.
Nesse sentido, segue decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul abaixo:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE CONVERTIDA PARA AÇÃO ANULATÓRIA DE REGISTRO CIVIL. Em respeito aos princípios da economia e celeridade processuais, atentando-se que a demanda está apta para julgamento e que os pedidos da ação, as razões de contestação, bem como os fundamentos da sentença são pertinentes à demanda anulatória de paternidade, entendo que a conversão da ação é medida que se impõe. PROVA DO ERRO. IRRELEVÂNCIA DA DENOMINADA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. Comprovado nos autos que o autor registrou a requerida como sua filha biológica, porque induzido em erro pela então namorada, e não havendo vínculo de afetividade entre os envolvidos, o que é confirmado pela conduta processual da demandada, inclusive, comparecendo para o exame de DNA, mas não apresentando qualquer resposta às alegações do recorrente, cumpre julgar procedente a ação negatória de paternidade. DERAM PROVIMENTO AO APELO.[8]
Ainda, o registro de nascimento deverá ser anulado em caso de sequestro de criança e registro falso, no qual não se pode dizer que houve adoção à brasileira, pois não foi realizada por motivo nobre. Nesse sentido:
APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE ANULAÇÃO DE REGISTRO CIVIL - SENTENÇA QUE EXTINGUIU O PROCESSO SEM RESOLUÇÃO DE MÉRITO - AUSÊNCIA DE INTIMAÇÃO PESSOAL - INTELIGÊNCIA DO ART. 267, §1º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL - SENTENÇA ANULADA - ANÁLISE DO MÉRITO COM BASE NO ART. 515, §3º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL - MENOR SEQUESTRADA PELA TIA - EXISTÊNCIA DE DUAS CERTIDÕES DE NASCIMENTO DA MESMA PESSOA, COM NOMES DIFERENTES - COMPROVADO O REGISTRO DE FILHA ILEGÍTIMA, QUE JÁ HAVIA SIDO REGISTRADA POR SEUS PAIS LEGÍTIMOS - FALSIDADE IDEOLÓGICA RECURSO CONHECIDO - DESCONSTITUIR SENTENÇA - ANULAR REGISTROS EM NOME DE S. A. C. - MANTIDO INCÓLUME O REGISTRO REALIZADO PELA MÃE BIOLÓGICA
"Nos termos do art. 267, §1º do Código de Processo Civil, a extinção do processo com base nos incisos II e III, somente poderá ser declarada pelo magistrado se o autor intimado pessoalmente não suprir a falta em 48 (quarenta e oito) horas" (AC n. 2007.025787-5, de Joaçaba, Rel Des. Salim Schead dos Santos).
O art. 113 da Lei de Registros Públicos reza que: "As questões de filiação legítima ou ilegítima serão decididas em processo contencioso para anulação ou reforma de assento."Acerca da referida ação, Arnaldo Rizzardo anota que: "É ela admitida sempre que se verificar a desconformidade do reconhecimento com a verdadeira filiação biológica. Justifica-se, ademais, a ação porque o estado civil das pessoas deve sustentar-se na realidade, ou na verdade, e não em dados falsos, somente em aparência verdadeiros." (Direito de Família. 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 445).[9]
Pelo mesmo entendimento, é comum estrangeiro proceder ao registro de filho alheio para conseguir visto de permanência no Brasil. Neste caso, não está presente a adoção à brasileira, e, portando há apenas o interesse em conseguir o visto e não em criar a criança por motivo de nobreza. Segue abaixo acórdão que decidiu nesse sentido:
PENAL. PROCESSUAL PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME DE REGISTRO DE FILHO ALHEIO. DECLARAÇÃO FALSA PARA REGULARIZAÇÃO DE PERMANÊNCIA NO BRASIL. TRANSAÇÃO. PRELIMINAR AFASTADA. MATERIALIDADE E AUTORIA DELITIVAS COMPROVADAS. CONDUTA DOLOSA. AUSÊNCIA DE MOTIVO DE RECONHECIDA NOBREZA. 1. O instituto da transação penal, previsto no art. 76 da Lei nº 9.099/95, somente é cabível quando a pena máxima não ultrapassa o limite de dois anos (art. 2º, parágrafo único, da Lei 10.259/2001).Preliminar afastada. 2. A materialidade delitiva está comprovada pelo assento de nascimento da menor, pela Declaração de Nascido Vivo e pelo requerimento de permanência definitiva no país, apresentado pelo co-denunciado perante a autoridade Policial Federal. 3. A autoria está devidamente comprovada pelo exame da prova testemunhal, corroborada pela prova documental, que demonstra terem os co-denunciados efetivamente praticado os fatos descritos na denúncia. 4. Reconhecimento do dolo direto porquanto os co-denunciados praticaram a conduta delitiva para garantir a permanência de estrangeiro no Brasil, burlando a legislação pátria, mediante utilização de certidão de nascimento ideologicamente falsa. 5. Em relação ao delito previsto no art. 125, XIII, da lei nº 6.815/80 - "fazer declaração falsa em processo de transformação de visto" - o dolo restou caracterizado pelo fato de fazer o réu afirmação de conteúdo ideologicamente falso, perante a autoridade competente, apresentando inclusive documento ideologicamente falso. 6. Afastadas as alegações de participação de menor importância, estado de necessidade e reconhecida nobreza (parágrafo único do art. 242 do CP). 7. Aplica-se a figura privilegiada do parágrafo único do art. 242 do CP quando estreme de dúvidas que há nobreza de sentimentos dos acusados em proceder de tal forma, situação essa que inocorreu no caso dos autos. 8. Os delitos dos arts. 242, caput, do CP e 125, inciso XIII, da Lei nº 6.815/80 foram cometidos em concurso formal, pois o falso registro de nascimento não esgota seu potencial lesivo no processo irregular de visto de estrangeiro.[10]
Pelo exposto, conclui-se que a jurisprudência entende que na adoção à brasileira, em que pese a falsidade do registro, prevalecerá se houver socioafetividade. Nesses casos, em relação ao processo criminal, há a aplicação do parágrafo único do artigo 242 do Código Penal. Porém, quando este registro for feito para interesse externo à relação paterno-filial, como nos exemplos acima (caso de sequestro ou com o fim de requerer o visto de permanência no Brasil), não haverá a adoção à brasileira e, portanto, o registro será falso e deverá ser anulado.
[1] LÔBO, Paulo. Direito Civil: Famílias. São Paulo: Saraiva, 4º ed., 2012. p. 250.
[2] FUJITA, Jorge Shiguemitsu. Filiação. São Paulo: Atlas, 2009, passim.
[3] OTONI, Fernanda Aparecida Corrêa. A filiação socioafetiva no direito brasileiro e a impossibilidade de sua desconstituição posterior. Disponível em http://www.ibdfam.org.br/artigos/680/A+filia%C3%A7%C3%A3o+socioafetiva+no+direito+brasileiro+e+a+impossibilidade+de+sua+desconstitui%C3%A7%C3%A3o+posterior. Acesso em 06 de março de 2014.
[4] SANTA CATARINA, Tribunal de Justiça. Recurso Criminal nº 2010.016767-9, Segunda Câmara Criminal, Relator: Sérgio Paladino. Data de Julgamento: 02/06/2010.
[5] RIO GRANDE DO SUL, Tribunal de Justiça. Apelação Cível nº 70041393901, Sétima Câmara Cível, Relator: André Luiz Planella Villarinho. Data de Julgamento: 24/08/2011.
[6] RIO GRANDE DO SUL, Tribunal de Justiça. Apelação Cível nº 2012.064587-0, Segunda Câmara de Direito Civil, Relator: Trindade dos Santos. Julgado em 19/05/2013.
[7] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. v. 1. 3 ed. São Paulo: Atlas, 2003.
[8] RIO GRANDE DO SUL, Tribunal de Justiça. Apelação Cível nº 70049481336, Oitava Câmara Cível, Relator Alzie Felippe Schmitz. Julgado em 09/08/2012.
[9] SANTA CATARINA, Tribunal de Justiça. Apelação Cível nº 2008.001437-1, Primeira Câmara de Direito Civil, Relatora Adriana Mendes Bertoncini. Julgado em 08/09/2009.
[10] BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Apelação Cível nº 7862 SC 2002.72.00.007862-4, Sétima Turma, Relator Décio José da Silva. Julgado em 01/08/2006.