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Comércio internacional e meio ambiente:

uma relação desequilibrada

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3. Comércio e meio ambiente nas organizações econômicas internacionais: o caso dos pneus recauchutados

Por causa da multiplicidade de regimes e de aspectos peculiares ao tema, o meio ambiente tem sido tratado, nas instâncias internacionais diversas, somente de forma incidental. No âmbito da OMC/GATT, nos casos decididos pelo órgão de solução de controvérsias, nota-se a importância secundária que se dispensa ao tema. Em regra, a medida de proteção ambiental, ainda que amparada no art. XX do GATT, só é aceita como último recurso: apenas se não houver nenhuma outra forma disponível de alcançar o objetivo, a restrição comercial/proteção ambiental é juridicamente admissível. Com freqüência, os painelistas do OSC sugerem medidas alternativas que, a despeito de serem menos favoráveis ao meio ambiente, prejudiquem menos o livre-comércio. Este, por conseguinte, é o valor fundamental que deve ser protegido pela organização.

Fábio Morisini, ao estudar a jurisprudência das organizações comerciais, classifica os casos pertinentes à relação entre comércio e meio ambiente em quatro categorias (Morosini, 2007, p. 4), baseadas no tipo de medida ambiental que afeta o livre-comércio. A situação mais comum é aquela na qual determinada política ambiental doméstica, destinada à proteção do meio ambiente nacional, implica restrições comerciais. Em segundo lugar, Morisini cita os casos em que os Estados adotam medidas unilaterais para resguardar o meio ambiente externo à sua jurisdição. Constituem a terceira categoria os casos nos quais a medida protetiva, criadora de barreira para as trocas comerciais, é fundamentada em tratado multilateral. Quando a barreira ao intercâmbio mercantil decorre da regulação de processos produtivos estrangeiros, o caso enquadra-se, finalmente, na última categoria citada por Morosini.

O caso no qual Morosini mais aprofunda sua análise, referente à importação de pneus recauchutados, situa-se na primeira categoria de relação comércio/meio ambiente. Nessa controvérsia, cujo início ocorre no âmbito do Mercosul, concerne às medidas proibitivas, adotadas por Brasil e pela Argentina, contra importação de pneus recauchutados do Uruguai. Na fase em que a disputa ocorreu no Mercosul, a decisão favorável ao Uruguai reconheceu, inclusive em instância recursal, no caso argentino, que as medidas adotadas pelos demandados eram arbitrárias e discriminatórias, e que, por isso, contrariavam os princípios do bloco (Morosini, 2008, pp. 73-90). A despeito das normas ambientais existentes em diversos instrumentos regionais (Art. 50 do Tratado de Montevidéu[ix], Preâmbulo do Tratado de Assunção[x], Declaração de Canela[xi]), a decisão claramente destacou o livre-comércio como principal valor a ser protegido pelo órgão de solução de controvérsia.

Quando levado à OMC, o caso – que envolveu o Brasil como parte demandada e a Comunidade Europeia como demandante - foi tratado de maneira similar, e os resultados foram semelhantes aos das decisões do Mercosul. De forma resumida, os fatos e as discussões subjacentes a disputa podem ser assim descritos (Morosini, 2008, pp. 91-93): no ano de 2000, o Brasil criou restrição à importação de pneus recauchutados de países não membros da Mercosul. Em 2004, a Comunidade Europeia, após consultas, requereu instauração de painel na OMC, no qual o Brasil argumentou que ação tomada teve como intenção proteger a vida animal, vegetal e humana dentro de seu território (o país citou problemas de doenças contagiosas (e.g. dengue). A essa explicação, a Comunidade Europeia contrapôs a tese segundo a qual a ação brasileira teve como objetivo proteger a indústria doméstica, medida que estaria em desacordo com as normas multilaterais de comércio e que, por consequência, acarretaria grande prejuízo aos produtores europeus.

Juridicamente, o OSC da OMC analisou, com fulcro no art. XX do GATT, o caso mediante formulação de três questionamentos, cujas respostas seriam as bases da decisão: 1) há discriminação arbitrária entre países onde prevalecem as mesmas condições? 2) há discriminação injustificável entre países onde prevalecem as mesmas condições? 3) há uma restrição disfarçada ao comércio internacional? Na decisão final, favorável à União Europeia, concluiu-se que as medidas administrativas e políticas adotadas pelo Brasil implicaram discriminação arbitrária ou injustificável ao produto europeu, e uma restrição disfarçada ao comércio internacional, uma vez que o país sul-americano estaria impedindo a importação para ajudar a indústria doméstica de pneus.

A interpretação do artigo XX do GATT formulada pelo OSC é o modelo de decisão nos litígios que envolvem comércio e meio ambiente na OMC. Em síntese, esse padrão pode ser assim descrito: o Estado demandante contesta alguma medida de proteção ambiental adotada pelo demandado. O primeiro, que litiga em nome livre comércio, obtém solução favorável, em detrimento da medida de proteção ambiental. As posições de demandante e de demandado independem do grau de desenvolvimento Estado: países desenvolvidos e países em desenvolvimento figuram, indiscriminadamente, em ambas as posições. O resultado, de igual maneira, depende menos do poder do Estado do que da posição que ele defende: o Estado defensor de medidas ambientais tende a ser derrotado na controvérsia. A OMC, dessa forma, por meio de seu órgão de solução de controvérsia, considera que o aspecto ambiental deve ser tolerado em situações muito restritas, dificilmente observáveis na realidade.

Uma organização centralizadora do regime do ambiental, cuja existência, na atualidade, é bastante improvável, poderia alterar essa situação das seguintes formas: a organização poderia sistematizar o discurso ambiental e, dessa forma, pronunciar-se em nome de todos os atores (stakeholders) envolvidos no tema, o que garantiria maior força política ao discurso e influenciaria todas as outras instâncias decisórias da sociedade internacional, inclusive os organismos econômicos. Além disso, a organização, caso tivesse mecanismo de solução de controvérsias próprio, poderia avocar, prioritariamente, casos relacionados ao meio ambiente para sua esfera decisória. A organização teria, portanto, competência privilegiada no julgamento de casos que evolvessem aspectos ambientais, atributo que deslocaria as controvérsias - como, por exemplo, o dos pneus recauchutados – para sua jurisdição, em detrimento de outras OIs.


 4. Conclusão

Ao longo dos últimos anos, as relações entre comércio internacional e meio ambiente têm apresentado desequilíbrio. Ainda que ambos constem da agenda política dos principais atores internacionais, apenas o comércio internacional tem sido tratado de forma prioritária e verdadeiramente coordenada pelos atores estatais. No âmbito internacional, os arranjos institucionais pertinentes ao comércio são mais bem organizados, centralizados e efetivos, enquanto, no tema ambiental, predominam a descentralização decisória, a multiplicidade de regimes e a dificuldade de cooperação entre os Estados. Da comparação entre as características referentes aos dois temas, resulta a preponderância dos princípios regentes do livre-comércio, em detrimento das normas de proteção ambiental, que se tornam mais vulneráveis no âmbito de instâncias internacionais dedicadas precipuamente à temática econômica, como, por exemplo, a OMC.

Em razão das condições políticas contemporâneas, em que predomina dissenso sobre aspectos fundamentais relativos ao meio ambiente, a criação de organização internacional especializada no tema – que facilitaria a cooperação, conforme explicado por Keohane, e incrementaria a relevância do tema - parece distante e improvável. A própria natureza do tema ambiental, que envolve interesses múltiplos e aspectos diversos, como evidenciado na discussão sobre os bens públicos globais, dificulta a cooperação mínima necessária para concepção desse novo e amplo regime, o qual possibilitaria a reversão do desequilíbrio existente entre meio ambiente e os temas econômicos em geral.

No curto prazo, a tendência, portanto, é que o meio ambiente, no plano internacional, seja caracterizado pela diversidade de regimes - compostos por múltiplos tratados, normas, princípios e práticas -, o que impossibilita a maior coordenação dos atores interessados (stakeholders) e enfraquece a posição do tema perante outros regimes internacionais. Da mesma forma, o meio ambiente continuará a ser referenciado, de forma incidental, em organizações internacionais diversas. No âmbito destas, em especial nas organizações econômicas, a tendência é que o meio ambiente seja considerado matéria secundária, que deve ser observada apenas se o objeto principal da organização não for prejudicado. Os aspectos verificados na jurisprudência do OSC da OMC, portanto, devem perdurar - como padrão e como precedente - no futuro imediato, mesmo em decisões de outras organizações dedicadas ao comércio e às finanças internacionais.


Referências bibliográficas:

AMARAL JR, Alberto do. Introdução ao Direito Internacional Público. São Paulo: Atlas, 2008.

CARBONE, Maurizio. “Supporting or Resisting Global Public Goods” in Global Governance, n.º 13, 2007, pp. 179-198.

DUFFIELD, John. “What are International Institutions” in International Studies Review, Vol. 9, 2007, pp. 1-22.

KAUL, Inge; GRUNBERG, Isabelle e STERN, Marc A. “Defining Global Public Goods”.

KEOHANE, Robert. “International Institutions: Two Approach” in International Studies Quarterly, vol. 32, n.º 4, pp. 379-396, 1988.

LAFER, Celso. Comércio, desarmamento de direitos humanos: reflexões sobre uma experiência diplomática. São Paulo: Paz e Terra, 2006.

MOROSINI, Fábio. The Mercosur and WTO Retreated Tires Dispute: Rehabilitating Regulatory Competition in International Trade and Environmental Regulation (Dissertação de Mestrado defendida pelo autor na Universidade do Texas, Austin, dezembro de 2007)

NARLIKAR, Amrita. The World Trade Organization: a very short introduction. Oxford: Oxford University Press, 2005.

RIBEIRO, Wagner Costa. A ordem ambiental internacional. São Paulo: Contexto, 2008.

STEINBERG, R. H. “In the Shadow of Law or Power? Consensus-Based Bargaining and Outcomes in the GATT/WTO”. International Organization, V. 56, N.º 2, 2002, pp. 339-374.

VEIGA, José Eli da. A desgovernança mundial da sustentabilidade. São Paulo, Editora 34, 2013.


Notas

[i] John Duffield, ao discorrer sobre o construtivismo, afirma que essa inter-subjetividade é o compartilhamento de modelos mentais entre os atores (What Are International Institutions?, 2007, p. 8)  

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[ii] Idem, p. 380.

[iii] Idem, p. 386.

[iv] Idem, p. 37.

[v] O professor José Eli da Veiga, em obra recente, enumera os diversos problemas da ordem ambiental, a qual se caracterizaria pela ausência de governança e por êxitos frágeis aparentes ou vitórias de Pirro (A desgovernança mundial da sustentabilidade, 2007, p. 62)

[vi] “Global public goods must meet two criteria. The first is that their benefits have strong qualities of publicness—that is, they are marked by non rivalry in consumption and non excludability. These features place them in the general category of public goods. The second criterion is that their benefits are quasi universal in terms of countries (covering more than one group of countries), people (accruing to several, preferably all, population groups), and generations (extending to both current and future generations, or at least meeting the needs of current generations without foreclosing development options for future generations). This property makes humanity as a whole the publicum, or beneficiary of global public goods”. (Kaul, Inge; Grunberg, Isabelle e Stern, Marc A. Defining Global Public Goods, pp. 2 e 3).

[vii] Conforme explicitado por Maurizio Carbone, na lista de bens públicos globais, o meio ambiente foi representado por três itens: camada de ozônio, clima e sustentabilidade ambiental (Carbone, Maurizio. Supporting or Resisting Global Public Goods? The Policy Dimension of a Contested Concept, p. 182)

[viii] Nessa parábola, em volta de um lago, vive uma comunidade baseada na pesca. Eles conseguem do lago o que precisam para sobreviver até que se desenvolvem novas tecnologias, e os mecanismos de pesca melhoram. Com isso, eles passam a pescar mais peixes do que deveriam, e os peixes no lago não conseguem mais se reproduzir no ritmo em que seria necessário para manter o volume de pesca. Os pescadores sabem que estão pescando mais do que deveriam, mas decidem continuar pescando, porque é melhor pra eles. Mesmo que um pescador pare de pescar os outros continuarão a fazer errado. Finalmente os peixes do lago acabam, e toda a sociedade que se baseava na pesca quebra.

[ix] “Artigo 50:  Nenhuma disposição do presente Tratado será interpretada como impedimento à adoção e no cumprimento de medidas destinadas à: d) Proteção da vida e saúde das pessoas, dos animais e dos vegetais;”

[x] “Entendendo que esse objetivo deve ser alcançado mediante o aproveitamento mais eficaz dos recursos disponíveis, a preservação do meio ambiente, o melhoramento das interconexões físicas, a coordenação de políticas macroeconômicas e a complementação dos diferentes setores da economia, com base nos princípios de gradualidade, flexibilidade e equilíbrio...”.

[xi] No item I da Declaração de Canela, de 1992, assevera-se “La crisis ambiental amenaza la sobrevivencia em la Tierra. Vivimos en un ecosistema cuyo equilibrio es esencial para toda la humanidad, la protección del ambiente y la conservación racional de los recursos naturales requiere el firme compromiso de todos los Estados del mundo en la realización de una tarea concertada, que asegure a las generaciones futuras la subsistencia de las condiciones qua hacen posible la vida en nuestro planeta”.

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Sobre os autores
Afonso Andre de Paiva Cavalcante

Graduando do bacharelado de Relações Internacionais do IRI da Universidade de São Paulo.

Mauro Kiithi Arima Junior

Bacharel em Direito e Relações Internacionais pela USP. Especialista em Direito Político, Administrativo e Financeiro pela FD USP. Especialista em Política Internacional pela FESPSP. Mestre em Direito Internacional pela USP. Doutor em Direito Internacional pela USP. Advogado, professor e consultor jurídico.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAVALCANTE, Afonso Andre Paiva ; KIITHI, Mauro Arima Junior. Comércio internacional e meio ambiente:: uma relação desequilibrada. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4214, 14 jan. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31916. Acesso em: 28 mar. 2024.

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