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Agências reguladoras.

Constituição, transformações do Estado e legitimidade democrática

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01/10/2002 às 00:00
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Sumário: Parte I. Constituição e ordem econômica. I. Breve notícia histórica. A decadência do Estado-empresário. II. A reforma do Estado no Brasil. III. Modalidades de intervenção do Estado no domínio econômico. IV. O novo perfil do Estado e o surgimento das agências reguladoras no Brasil. Parte II. V. A estrutura jurídica das agências reguladoras. VI. Função reguladora e as diferentes atividades das agências. a) Atividade executiva e os limites do controle exercido pelo Poder Executivo e pelo Tribunal de Contas; b) Função decisória e limites do controle exercido pelo Poder Judiciário; c) Função normativa: algumas controvérsias. Conclusão. Transformações do Estado, desregulação e legitimidade democrática.


Parte 1: Constituição e ordem econômica

I- Breve notícia histórica : A decadência do Estado- Empresário

O Estado atravessou, ao longo do século que vem de se encerrar, três fases diversas e razoavelmente bem definidas. A primeira delas, identificada como pré-modernidade [2] ou Estado liberal, exibe um Estado de funções reduzidas, confinadas à segurança, justiça e serviços essenciais. É o Estado da virada do século XIX para o XX. [3] Nele vivia-se a afirmação, ao lado dos direitos de participação política, dos direitos individuais, cujo objeto precípuo era o de traçar uma esfera de proteção das pessoas em face do Poder Público. Estes direitos, em sua expressão econômica mais nítida, traduziam-se na liberdade de contrato, na propriedade privada e na livre iniciativa.

Na segunda fase, referida como modernidade ou Estado social (welfare state), iniciada na segunda década do século que se encerrou, o Estado assume diretamente alguns papéis econômicos, tanto como condutor do desenvolvimento como outros de cunho distributivista, destinados a atenuar certas distorções do mercado e a amparar os contingentes que ficavam à margem do progresso econômico. Novos e importantes conceitos são introduzidos, como os de função social da propriedade e da empresa, assim como se consolidam os chamados direitos sociais, tendo por objeto o emprego, as condições de trabalho e certas garantias aos trabalhadores.

A quadra final do século XX corresponde à terceira e última fase, a pós-modernidade, que encontra o Estado sob crítica cerrada, densamente identificado com a idéia de ineficiência, desperdício de recursos, morosidade, burocracia e corrupção. Mesmo junto a setores que o vislumbravam outrora como protagonista do processo econômico, político e social, o Estado perdeu o charme redentor, passando-se a encarar com ceticismo o seu potencial como instrumento do progresso e da transformação. O discurso deste novo tempo é o da desregulamentação, da privatização e das organizações não-governamentais. No plano da cidadania, desenvolvem-se os direitos ditos difusos, caracterizados pela pluralidade indeterminada de seus titulares e pela indivisibilidade de seu objeto. Neles se inclui a proteção ao meio ambiente, ao consumidor e aos bens e valores históricos, artísticos e paisagísticos.

Não se deve encobrir, artificialmente, a circunstância de que o Brasil chega à pós-modernidade sem ter conseguido ser nem liberal nem moderno. De fato, no período liberal, jamais nos livramos da onipresença do Estado. A sociedade brasileira, historicamente, sempre gravitou em torno do oficialismo. As bênçãos do poder estatal sempre foram – ressalvadas as exceções que confirmam a regra – a razão do êxito ou do fracasso de qualquer projeto político, social ou empresarial que se pretendesse implantar. Este é um traço marcante do caráter nacional, com raízes na colônia, e que atravessou o Império, exacerbou-se na República Velha e ainda foi além. [4]

A modernidade teria começado com a Revolução de 30, institucionalizando-se com a Constituição de 1934 – que abriu um título para a ordem econômica e social – e se pervertido no golpe do Estado Novo, de 1937. Reviveu, fugazmente, no período entre 1946-1964, mas sofreu o desfecho melancólico do golpe militar de 1964. Findo o ciclo ditatorial, que teve ainda como apêndice o período entre 1985-1990, chegou-se à pós-modernidade, que enfrentou, logo na origem, a crise existencial de ter nascido associada ao primeiro governo constitucionalmente deposto da história do país.

Passa-se ao largo, por imperativo das circunstâncias, da discussão sobre as razões que levaram à ampliação da atuação empresarial do Estado brasileiro, notadamente como alternativa importante à concessão de setores estratégicos à exploração da iniciativa privada estrangeira [5]. Cabe o registro, contudo, de que o inchamento do Estado brasileiro é um processo contínuo de muitas décadas. A atuação econômica estatal, no Brasil, começa na década de 40, sob a inspiração da substituição das importações. Com uma iniciativa privada frágil, a economia era impulsionada substancialmente por iniciativa oficial. Essa década assistiu à criação das primeiras grandes empresas estatais, a Companhia Siderúrgica Nacional, a Fábrica Nacional de Motores, a Companhia Vale do Rio Doce e a Companhia Hidrelétrica do São Francisco.

A década de 50 viveu a discussão ideológica acerca do papel do Estado. Era a época da guerra fria, da bipolarização das doutrinas econômicas. Nesse período convulsionado surgiram apenas duas empresas estatais merecedoras de destaque: o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico – BNDE (depois BNDES) e a Petróleo Brasileiro S.A. – Petrobrás, que foi criada simbolicamente, após uma ampla mobilização popular. Curiosa e paradoxalmente, o avanço e o agigantamento do Estado Econômico brasileiro se deu a partir da década de 60, sobretudo após o movimento militar de 1964, e ao longo de toda a década de 70, quando foram criadas mais de 300 empresas estatais: Eletrobrás, Nuclebrás, Siderbrás etc. Foi a era das empresas "brás". Em setembro de 1981, recenseamento oficial arrolava a existência, apenas no plano federal, de 530 pessoas jurídicas públicas, de teor econômico, inclusive autarquias, fundações e entidades paraestatais. [6]

Após a Constituição de 1988 e, sobretudo, ao longo da década de 90, o tamanho e o papel do Estado passaram para o centro do debate institucional. E a verdade é que o intervencionismo estatal não resistiu à onda mundial de esvaziamento do modelo no qual o Poder Público e as entidades por ele controladas atuavam como protagonistas do processo econômico [7]. Sem embargo de outras cogitações mais complexas e polêmicas, é fora de dúvida que a sociedade brasileira exibia insatisfação com o Estado no qual se inseria e não desejava vê-lo em um papel onipotente, arbitrário e ativo – desastradamente ativo – no campo econômico.

O modelo dos últimos vinte e cinco anos se exaurira. O Estado brasileiro chegou ao fim do século XX grande, ineficiente, com bolsões endêmicos de corrupção e sem conseguir vencer a luta contra a pobreza. Um Estado da direita, do atraso social, da concentração de renda. Um Estado que tomava dinheiro emprestado no exterior para emprestar internamente, a juros baixos, para a burguesia industrial e financeira brasileira. Esse Estado, portanto, que a classe dominante brasileira agora abandona e do qual quer se livrar, foi aquele que a serviu durante toda a sua existência. Parece, então, equivocada a suposição de que a defesa desse Estado perverso, injusto e que não conseguiu elevar o patamar social no Brasil seja uma opção avançada, progressista, e que o alinhamento com o discurso por sua desconstrução seja a postura reacionária.

A privatização de serviços e atividades empresariais, por paradoxal que possa parecer, foi, em muitos domínios, a alternativa possível de publicização de um Estado apropriado privadamente, embora, é verdade, o modelo escolhido não tenha sido o da democratização do capital. Ao fim desse exercício de desconstrução, será preciso então repensar qual o projeto de país que se pretende concretizar sobre as ruínas de um Estado que, infelizmente, não cumpriu adequadamente o seu papel.

II- A reforma do Estado no Brasil

As recentes reformas econômicas brasileiras envolveram três transformações estruturais que se complementam, mas não se confundem. Duas delas tiveram de ser precedidas de emendas à Constituição, ao passo que a terceira se fez mediante a edição de legislação infraconstitucional e a prática de atos administrativos. Confira-se, a seguir, cada uma delas.

A primeira transformação substantiva da ordem econômica brasileira foi a extinção de determinadas restrições ao capital estrangeiro. A Emenda Constitucional n° 6, de 15.08.95, suprimiu o art. 171 da Constituição, que trazia a conceituação de empresa brasileira de capital nacional e admitia a outorga a elas de proteção, benefícios especiais e preferências. A mesma emenda modificou a redação do art. 176, caput, para permitir que a pesquisa e lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciais de energia elétrica sejam concedidos ou autorizados a empresas constituídas sob as leis brasileiras, dispensada a exigência do controle do capital nacional. Na mesma linha, a Emenda Constitucional n° 7, de 15.08.95, modificou o art. 178, não mais exigindo que a navegação de cabotagem e interior seja privativa de embarcações nacionais e a nacionalidade brasileira dos armadores, proprietários e comandantes e, pelo menos, de dois terços dos tripulantes. Mais recentemente ainda, foi promulgada a Emenda Constitucional n° 36, de 28.05.02, que permitiu a participação de estrangeiros em até trinta por cento do capital das empresas jornalísticas e de radiodifusão.

A segunda linha de reformas que modificaram a feição da ordem econômica brasileira foi a chamada flexibilização dos monopólios estatais. A Emenda Constitucional n° 5, de 15.08.95, alterou a redação do § 2° do art. 25, abrindo a possibilidade de os Estados-membros concederem às empresas privadas a exploração dos serviços públicos locais de distribuição de gás canalizado, que, anteriormente, só podiam ser delegados a empresa sob controle acionário estatal. O mesmo se passou com relação aos serviços de telecomunicações e de radiodifusão sonora e de sons e imagens. É que a Emenda Constitucional n° 8, de 15.08.95, modificou o texto dos incisos XI e XII, que só admitiam a concessão a empresa estatal. E, na área do petróleo, a Emenda Constitucional n° 9, de 09.11.95, rompeu, igualmente, com o monopólio estatal, facultando à União Federal a contratação com empresas privadas de atividades relativas à pesquisa e lavra de jazidas de petróleo, gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos, a refinação do petróleo nacional ou estrangeiro, a importação, exportação e transporte dos produtos e derivados básicos de petróleo (outrora vedados pela CF, art. 177 e § 1° , e pela Lei n° 2.004/51).

A terceira transformação econômica de relevo – a denominada privatização – operou-se sem alteração do texto constitucional, com a edição da Lei 8.031, de 12.04.90, que instituiu o Programa Nacional de Privatização, depois substituída pela Lei 9.491, de 9.09.97. Entre os objetivos fundamentais do programa incluíram-se, nos termos do art. 1° , incisos I e IV: (i) reordenar a posição estratégica do Estado na economia, transferindo à iniciativa privada atividades indevidamente exploradas pelo setor público; (ii) contribuir para a modernização do parque industrial do País, ampliando sua competitividade e reforçando a capacidade empresarial nos diversos setores da economia.

O programa de desestatização [8] tem sido levado a efeito por mecanismos como (a) a alienação, em leilão nas bolsas de valores, do controle de entidades estatais, tanto as que exploram atividades econômicas como as que prestam serviços públicos e (b) a concessão de serviços públicos a empresas privadas. No plano federal inicialmente foram privatizadas empresas dos setores petroquímico, siderúrgico, metalúrgico e de fertilizantes, seguindo-se a privatização da infra-estrutura, envolvendo a venda da empresa com a concomitante outorga do serviço público, como tem se passado com as empresas de energia e telecomunicações e com rodovias e ferrovias.

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Acrescente-se, em desfecho do levantamento aqui empreendido, que, além das Emendas Constitucionais nos 5, 6, 7, 8 e 9, assim como da Lei 8.031/90, os últimos anos foram marcados por uma fecunda produção legislativa em temas econômicos, que inclui diferentes setores, como: energia (Lei 9.247, de 26.12.96), telecomunicações (Lei 9.472, de 16.07.97) e petróleo (Lei 9.478, de 6.08.97), com a criação das respectivas agências reguladoras; modernização dos portos (Lei 8.630, de 25.02.93) e defesa da concorrência (Lei 8.884, de 11.06.94); concessões e permissões (Leis 8.987, de 13.02.95 e 9.074, de 7.07.95), para citar alguns exemplos.

A redução expressiva das estruturas públicas de intervenção direta na ordem econômica não produziu um modelo que possa ser identificado com o de Estado mínimo. Pelo contrário, apenas deslocou-se a atuação estatal do campo empresarial para o domínio da disciplina jurídica, com a ampliação de seu papel na regulação e fiscalização dos serviços públicos e atividades econômicas. O Estado, portanto, não deixou de ser um agente econômico decisivo. Para demonstrar a tese, basta examinar a profusão de textos normativos editados nos últimos anos.

De fato, a mesma década de 90, na qual foram conduzidas a flexibilização de monopólios públicos e a abertura de setores ao capital estrangeiro, foi cenário da criação de normas de proteção ao consumidor em geral e de consumidores específicos, como os titulares de planos de saúde, os alunos de escolas particulares e os clientes de instituições financeiras [9]. Foi também nesse período que se introduziu no país uma política específica de proteção ao meio ambiente [10], limitativa da ação dos agentes econômicos, e se estruturou um sistema de defesa e manutenção das condições de livre concorrência [11] que, embora longe do ideal, constituiu um considerável avanço em relação ao modelo anterior. Nesse ambiente é que despontaram as agências reguladoras como instrumento da atuação estatal.

III- Modalidades de intervenção do Estado no domínio econômico

Tendo em conta o sistema constitucional, já integrado pelas reformas descritas inicialmente, é possível sistematizar, por diferentes critérios, as formas de intervenção do Estado no domínio econômico. Há autores que se referem à intervenção (a) regulatória, (b) concorrencial, (c) monopolista e (d) sancionatória [12]. Outros classificam-nas em (a) poder de polícia, (b) incentivos à iniciativa privada e (c) atuação empresarial [13]. A primeira classificação será retomada mais adiante. Por ora, cabe explorar com brevidade a segunda, da qual decorrem três conjuntos de mecanismos de intervenção estatal no domínio econômico: pela disciplina, pelo fomento e pela atuação direta.

Como já se registrou, o Poder Público interfere na atividade econômica, em primeiro lugar, traçando-lhe a disciplina, e o faz mediante a edição de leis, de regulamentos e pelo exercício do poder de polícia. De fato, o Estado exerce competências normativas primárias e edita normas decisivas para o desempenho da atividade econômica, algumas com matriz constitucional, como, por exemplo, o Código de Defesa do Consumidor (art. 5° , XXXII), a lei de remessa de lucros (art. 172), a lei de repressão ao abuso do poder econômico (art. 173, § 4° ), entre outras. Exerce, ademais, competências normativas de cunho administrativo, editando decretos regulamentares, resoluções, deliberações, portarias, algumas em domínios relevantíssimos como a política de crédito e a de câmbio. Por fim, desempenha, também, o poder de polícia, restringindo direitos e condicionando o exercício de atividades em favor do interesse coletivo (e.g., polícia ambiental, sanitária, fiscalização trabalhista).

De outra parte, o Estado interfere no domínio econômico por via do fomento, isto é, apoiando a iniciativa privada e estimulando determinados comportamentos. Assim, por exemplo, através de incentivos fiscais, o Poder Público promove a instalação de indústrias ou outros ramos de atividade em determinada região. Do mesmo modo, a elevação ou redução da alíquota de impostos – notadamente os que têm regime excepcional no tocante aos princípios da legalidade e anterioridade (CF, arts. 150, § 1º e 153, § 1º), como IPI, imposto sobre a importação, IOF – é decisiva na expansão ou retração de determinado segmento da economia. Igualmente relevante, no fomento da atividade econômica, é a oferta de financiamento público a determinadas empresas ou setores do mercado, mediante, por exemplo, linha de crédito junto ao BNDES.

Por fim, o Estado interfere, ainda, na ordem econômica [14], mediante atuação direta. Aqui, todavia, é necessário distinguir duas hipóteses: (a) a prestação de serviços públicos; e (b) a exploração de atividades econômicas. Não há necessidade, nesta instância, de percorrer, com maior grau de detalhamento, aspectos orgânicos e funcionais da Administração Pública. Basta o registro de que os serviços públicos podem ser prestados diretamente, pelos órgãos despersonalizados integrantes da Administração, ou indiretamente, por entidades com personalidade jurídica própria.

Na prestação indireta abrem-se duas possibilidades: pode o Estado constituir pessoas jurídicas públicas (autarquias e fundações públicas – as chamadas "fundações autárquicas") ou privadas (sociedades de economia mista e empresas públicas) e, mediante lei (CF, art. 37, XIX), outorgar a tais entes a prestação do serviço público, seja de educação, água, eletricidade ou qualquer outro. Ou pode, por outro lado, delegar à iniciativa privada, mediante contrato ou outro ato negocial, a prestação do serviço. Serve-se aí o Estado de figuras jurídicas como a concessão e a permissão. Mais recentemente, têm sido concebidas diferentes formas de delegação, identificadas genericamente como terceirização, que incluem espécies negociais como a franquia e o contrato de gestão, entre outros [15]. O caput do art. 175 provê sobre o tema:

"Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos".

A exploração da atividade econômica, por sua vez, não se confunde com a prestação de serviços públicos, quer por seu caráter de subsidiariedade, quer pela existência de regras próprias e diferenciadas. De fato, sendo o princípio maior o da livre iniciativa, somente em hipóteses restritas e constitucionalmente previstas poderá o Estado atuar diretamente, como empresário, no domínio econômico. Tais exceções se resumem aos casos de:

a) imperativo da segurança nacional (CF, art. 173, caput);

b) relevante interesse coletivo (CF, art. 173, caput);

c) monopólio outorgado à União (v. g., CF, art. 177).

Como se viu em tópico anterior, a reserva de atividades econômicas à exploração direta e monopolizada da União foi substancialmente alterada e flexibilizada. E, quando não se trate de monopólio, o Estado deverá atuar diretamente no domínio econômico sob o mesmo regime jurídico das empresas privadas, como deflui do § 1° do art. 173 da Carta Federal [16].

IV- O novo perfil do Estado e o surgimento das agências reguladoras

A constatação de que o Estado não tem recursos suficientes para todos os investimentos necessários e que, além disso, é geralmente um mau administrador, conduziu ao processo de transferência para o setor privado da execução de ampla gama de serviços públicos. Mas o fato de determinados serviços públicos serem prestados por empresas privadas concessionárias não modifica a sua natureza pública [17]: o Estado conserva responsabilidades e deveres em relação à sua prestação adequada. Daí a privatização haver trazido drástica transformação no papel do Estado: em lugar de protagonista na execução dos serviços, suas funções passam a ser as de planejamento, regulação e fiscalização. É nesse contexto histórico que surgem, como personagens fundamentais, as agências reguladoras.

É bem de ver que a relação direta que se tem feito entre as agências reguladoras e serviços públicos executados por particulares é apenas histórica, já que nada impede a existência de agências para regulação de atividades puramente privadas, como instrumento de realização da disciplina jurídica do setor. Quanto aos serviços públicos, as funções transferidas para as agências reguladoras não são novas: o Estado sempre teve o encargo de zelar por sua boa prestação. Ocorre, todavia, que, quando os serviços públicos eram prestados diretamente pelo próprio Estado ou indiretamente por pessoas jurídicas por ele controladas (como as sociedades de economia mista e as empresas públicas), estas funções não tinham visibilidade e, a rigor, não eram eficientemente desempenhadas [18]. Agora, todavia, a separação mais nítida entre o setor público e o setor privado revigora esse papel fiscalizador [19].

Quanto às atividades econômicas propriamente ditas, o art. 174 da Constituição de 1988 já previra a função reguladora a ser desempenhada pelo Estado. Não obstante, muito antes, entre as décadas de 30 e de 70, surgiram alguns órgãos estatais com funções reguladoras, como por exemplo, o Conselho Nacional de Telecomunicações – CONTEL e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE. Estes órgãos resistiram ao longo do tempo, mas viram frustrada sua efetiva atuação reguladora porque, à exceção do CADE, nasceram subordinados, decisória e financeiramente, ao Poder Executivo, fosse à Presidência da República, ou mesmo a algum Ministério [20].

Recentemente, por força de modificações introduzidas por Emendas à Constituição de 1988, passou-se a ter previsão expressa, em sede constitucional, de órgãos reguladores para os setores de telecomunicações (nova redação dada ao art. 21, XI [21], da Constituição Federal, pela EC 8/95) e de petróleo (o inciso III [22] do § 2º do art. 177 da Constituição ganhou nova redação com a EC 9/95). Tais reformas possibilitaram não só a introdução de órgãos reguladores, aos quais a legislação infraconstitucional sabiamente dotou de autonomia, mas também a expansão da atividade regulatória para outras áreas.

Até o início de 2002, haviam sido criadas no país as seguintes agências: a Agência Nacional de Telecomunicações – ANATEL, prevista na Lei 9.472, de 16.07.97; a Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL, instituída pela Lei 9.427, de 26.12.96; a Agência Nacional do Petróleo – ANP, que foi instituída pela Lei 9.478, de 6.08.97; a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Lei 9.782, de 26.01.99); a Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS (Lei 9.961, de 28.01.2000), a Agência Nacional de Águas – ANA (Lei 9.984, de 17.07.2000), e as recentes Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT e Agência Nacional de Transportes Aquaviários – ANTAQ, ambas criadas pela Lei nº 10.233, de 5.06.2001 [23]. A Comissão de Valores Mobiliários, que para muitos já era uma agência reguladora, recebeu da Lei nº 10.411 de 26.02.2002 maior grau de autonomia, incluindo mandatos estáveis para seus dirigentes.

No âmbito dos Estados-membros, também foram criadas agências reguladoras. Em alguns deles, como o Rio de Janeiro, foi feita a opção pela criação de um único órgão regulador, abrangendo uma pluralidade de áreas de atuação [24]. Assim surgiu a Agência Reguladora de Serviços Públicos Concedidos do Estado do Rio de Janeiro (ASEP-RJ) criada pela Lei estadual 2.686, de 13.12.97. Também no Estado do Ceará instituiu-se, pela Lei estadual 12.786, de 30.12.97, um órgão único, a Agência Reguladora de Serviços Públicos Delegados do Estado do Ceará (ARCE), uma autarquia especial vinculada à Procuradoria-Geral do respectivo Estado. Da mesma forma, no Estado do Rio Grande do Sul, foi criada pela Lei estadual 10.931, de 9.01.97, a Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados do Rio Grande do Sul (AGERGS). Espírito Santo [25], Mato Grosso [26], Minas Gerais [27], Pará [28], Rio Grande do Norte [29], Santa Catarina [30] e Sergipe [31] igualmente criaram uma única agência para regulação dos serviços públicos estaduais em geral.

Já em outros Estados, como São Paulo e Bahia, fez-se a opção por agências especializadas, no âmbito de cada um dos setores dos serviços concedidos, a exemplo do modelo federal. O processo de especialização em São Paulo teve início com a Lei Complementar estadual nº 833, de 17.10.97, que criou a Comissão de Serviços Públicos de Energia (CSPE), autarquia vinculada à Secretaria de Estado de Energia, com a finalidade de regular, controlar e fiscalizar a qualidade do fornecimento de tais serviços públicos, os preços, tarifas e demais condições de atendimento aos usuários, coibindo abusos e discriminações [32]. Na Bahia, a Lei estadual nº 7.314, de 19.05.98, criou a Agência Estadual de Regulação de Serviços Públicos de Energia, Transporte e Comunicações da Bahia (AGERBA).

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Sobre o autor
Luís Roberto Barroso

Ministro do Supremo Tribunal Federal. Mestre em Direito pela Universidade de Yale.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARROSO, Luís Roberto. Agências reguladoras.: Constituição, transformações do Estado e legitimidade democrática. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 59, 1 out. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3209. Acesso em: 19 mar. 2024.

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