Artigo Destaque dos editores

Agências reguladoras.

Constituição, transformações do Estado e legitimidade democrática

Exibindo página 2 de 3
01/10/2002 às 00:00
Leia nesta página:

Parte II: As agências reguladoras

V. A estrutura jurídica das agências reguladoras

As agências reguladoras foram introduzidas no Brasil sob a forma de autarquias e, conseqüentemente, com personalidade jurídica de direito público. Estão sujeitas, assim, ao mandamento do art. 37, XIX da Constituição [33] e sua criação somente poderá se dar mediante lei específica [34]. O mesmo quanto à sua extinção, pois ato administrativo não poderia destruir o que se construiu por norma de hierarquia superior [35]. As agências, todavia, são autarquias especiais [36], dotadas de prerrogativas próprias e caracterizadas por sua autonomia em relação ao Poder Público.

A instituição de um regime jurídico especial visa a preservar as agências reguladoras de ingerências indevidas, inclusive e sobretudo, como assinalado, por parte do Estado e de seus agentes. Procurou-se demarcar, por esta razão, um espaço de legítima discricionariedade, com predomínio de juízos técnicos sobre as valorações políticas. Constatada a necessidade de se resguardarem essas autarquias especiais de injunções externas inadequadas, foram-lhes outorgadas autonomia político-administrativa e autonomia econômico-financeira.

No tocante à autonomia político-administrativa, a legislação instituidora de cada agência prevê um conjunto de procedimentos, garantias e cautelas, dentre as quais normalmente se incluem: (i) nomeação dos diretores com lastro político (em âmbito federal [37] a nomeação é feita pelo Presidente da República, com aprovação do Senado [38]); (ii) mandato fixo de três [39] ou quatro [40] anos; e (iii) impossibilidade de demissão dos diretores, salvo falta grave apurada mediante devido processo legal [41].

A imposição legal de requisito para a exoneração de dirigente de agência reguladora pelo Chefe do Poder Executivo estadual foi questionada perante o Supremo Tribunal Federal. Apreciando medida liminar requerida no âmbito de ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pelo Governador do Estado do Rio Grande do Sul, o STF suspendeu dispositivo de lei estadual que condicionava a destituição de Conselheiro da AGERGS à decisão da Assembléia Legislativa, fundado em aparente afronta à separação de poderes. Mas deixou claro que tal decisão se dava sem prejuízo das restrições à demissibilidade dos Conselheiros, pelo Governador do Estado, sem justo motivo [42].

Ainda no que se refere à autonomia político-administrativa, as leis instituidoras das agências também previram, como regra, que os dirigentes estarão impedidos de prestar, direta ou indiretamente, qualquer tipo de serviço às empresas sob sua regulamentação ou fiscalização, inclusive controladas, coligadas ou subsidiárias [43], ao longo de determinado período (normalmente doze meses) subseqüente ao término de seus mandatos. É o que se convencionou chamar de "quarentena". Durante tal período é assegurada ao ex-dirigente a remuneração equivalente à do cargo de direção que exercera, admitindo-se que continue a prestar serviço à Agência ou a qualquer outro órgão da Administração Pública, em área atinente à sua qualificação profissional, desde que isso, naturalmente, não frustre a finalidade de impedir que se beneficie de relações e informações para favorecer sua atuação privada ou a de outrem [44]- (45).

Com isto, procurou-se criar um estatuto jurídico próprio para os dirigentes destas autarquias especiais, diverso do aplicável aos demais agentes administrativos. Em âmbito federal, o tema foi objeto de sistematização levada a efeito pela Lei nº 9.986, de 18.07.2000, que dispõe sobre a gestão de recursos humanos das agências reguladoras. No art. 1º, o novo diploma estabelece que as agências terão suas relações de trabalho regidas pela Consolidação das Leis do Trabalho – CLT e legislação trabalhista correlata, em regime de emprego público. Como se vê, a lei se beneficia da extinção da obrigatoriedade do regime jurídico único, operada pela EC nº 19/98, na nova redação dada ao art. 39 da Constituição.

No geral, a lei endossa as linhas de entendimento que se haviam cristalizado na doutrina, prevendo: (i) nomeação de conselheiro ou diretor, pelo Presidente da República, com aprovação do Senado Federal, atendidos os requisitos da nacionalidade brasileira, reputação ilibada, formação universitária e elevado conceito no campo de especialidade dos cargos (art. 5º); (ii) quarentena, com o impedimento ao ex-dirigente, terminado o mandato, de prestar qualquer tipo de serviço no setor público ou nas empresas integrantes do setor regulado pela agência (art. 8º); (iii) estabilidade: os conselheiros e diretores somente perderão o mandato em caso de renúncia, de condenação judicial transitada em julgado ou de processo administrativo disciplinar (art. 9º) [46].

No que toca à autonomia econômico-financeira, por sua vez, procura-se conferir às agências reguladoras, além das dotações orçamentárias gerais [47], a arrecadação de receitas provenientes de outras fontes, tais como taxas de fiscalização e regulação, ou ainda participações em contratos e convênios, como ocorre, por exemplo, nos setores de petróleo e energia elétrica [48].

As leis instituidoras de cada uma das agências, seja no âmbito federal [49] ou estadual [50], cuidaram de estabelecer taxas de fiscalização ou regulação do serviço público objeto de delegação como uma das importantes fontes de receita dessas autarquias. A doutrina debate acerca da natureza desse recolhimento, alguns defendendo que se cuida de taxa propriamente dita e outros que se trata de preço contratual, cobrado pelo Poder Concedente dos delegatários. Salvo nas hipóteses em que o Estado é o titular do bem ou do serviço que passa a ser utilizado ou prestado pelo particular, cobranças destinadas a custear o serviço de fiscalização dificilmente poderão deixar de ter natureza tributária.

VI- Função reguladora e as diferentes atividades das agências

Embora a etimologia sugira a associação da função reguladora com o desempenho de competências normativas, seu conteúdo é mais amplo e variado. Ainda quando se aproxime, eventualmente, da idéia de poder de polícia administrativa – poder de direcionar as atividades privadas de acordo com interesses públicos juridicamente definidos [51] –, a regulação contempla uma gama mais ampla de atribuições, relacionadas ao desempenho de atividades econômicas e à prestação de serviços públicos, incluindo sua disciplina, fiscalização, composição de conflitos e aplicação eventual de sanções. Às agências reguladoras, no Brasil, tem sido cometido um conjunto diversificado de tarefas, dentre as quais se incluem, a despeito das peculiaridades de cada uma delas, em função da diversidade de textos legais, as seguintes [52]:

a) controle de tarifas, de modo a assegurar o equilíbrio econômico e financeiro do contrato;

b) universalização do serviço, estendendo-os a parcelas da população que deles não se beneficiavam por força da escassez de recursos;

c) fomento da competitividade, nas áreas nas quais não haja monopólio natural;

d) fiscalização do cumprimento do contrato de concessão;

e) arbitramento dos conflitos entre as diversas partes envolvidas: consumidores do serviço, poder concedente, concessionários, a comunidade como um todo, os investidores potenciais etc.

Segundo a elaboração desenvolvida por Diogo de Figueiredo, a função reguladora é na verdade um híbrido de atribuições de natureza variada, inclusive fiscalizadoras e negociadoras, mas também normativas, gerenciais, arbitradoras e sancionadoras. Ela se vale de um complexo de funções clássicas – administrativas, normativas e judicantes –, variando apenas o método decisório. No domínio da função reguladora devem predominar as escolhas técnicas, preservadas das disputas partidárias e das complexidades dos debates congressuais, mais apropriados às escolhas político-administrativas [53]. Em uma tentativa de sistematização, inspirada pela clássica divisão de funções no âmbito do Estado, é possível classificar as atividades das agências reguladoras em executivas, decisórias e normativas.

a) Atividade executiva e os limites do controle exercido pelo Poder Executivo e pelo Tribunal de Contas

A atividade executiva, de parte a própria auto-administração da agência, envolve a implementação das políticas públicas e diretrizes ditadas pelo legislador, bem como a concretização e individualização das normas relativamente ao setor público ou privado regulado. É nesse espaço de atuação que estão compreendidos os atos de fiscalização, bem como os de natureza sancionatória, em caso de descumprimento do regramento aplicável. Embora seja o domínio próprio de uma entidade integrante da Administração Pública, o desempenho da atividade executiva pelas agências envolve complexidades jurídicas que vêm sendo enfrentadas pela doutrina.

A primeira delas diz respeito aos conflitos de atribuições entre as diferentes agências e entre elas e órgãos ou entidades da Administração Pública já existentes. Apenas alguns exemplos. A Lei nº 9.472/97, art. 19, XIX, e.g., conferiu à ANATEL competência para exercer o controle, a prevenção e a repressão de infrações à ordem econômica, nada obstante as atribuições da Secretaria de Defesa Econômica do Ministério da Justiça e do Conselho Nacional de Defesa Econômica – CADE. Por sua vez, a Lei nº 9.961/00, art. 4º, XXII, outorgou à ANS competência para autorizar modificações na estrutura societária das empresas do setor (v.g., art. 4º, XXII, da Lei da ANS), a despeito da existência de entidade que já detém atribuição análoga.

Uma outra questão que se põe no exercício da função executiva das agências é a sua relação com as diretrizes políticas expedidas pela Chefia do Poder Executivo ou por agentes que dele recebem delegação. Por força de lei, as agências deverão implementar políticas traçadas pelos órgãos da Administração direta. A Lei da ANP (Lei nº 9.478/97) prevê que o Conselho Nacional de Política Energética (art. 7º, I) deverá fixar tais diretrizes; a Lei da ANEEL (Lei nº 9.427/96) atribui ao próprio Ministério das Minas e Energia essa competência (art. 2º); a Lei da ANATEL (Lei nº 9.472/97) determina que a agência envie ao Ministério das Telecomunicações relatórios periódicos, além de submetê-la a auditorias operacionais levadas a cabo pelo Ministério referido (art. 19, incisos XXIX, XXX).

Por outro lado, as mesmas leis registram que as agências não mantêm vínculo hierárquico ou decisório com a Administração direta ou com qualquer órgão governamental (art. 8º, § 2º da Lei da ANATEL, art. 1º, parágrafo único, da Lei da ANS), sequer havendo previsão de recurso hierárquico impróprio, contra suas decisões, dirigido à Administração direta [54]. Ao contrário, o que se extrai das diversas normas que cuidaram do assunto é que as agências reguladoras funcionam como última instância administrativa para julgamento dos recursos contra seus atos (art. 19, XXV, da Lei nº 9.472/97; art. 15, VII, § 2º da Lei nº 9.782/99; art. 3º, V, Lei nº 9.427/96).

Assim, não será possível o controle administrativo pela via do recurso hierárquico impróprio, sendo em princípio inadmissível que as decisões tomadas pelas agências possam ser revistas ou modificadas por algum agente político (Ministro ou Secretário de Estado) [55]. O controle do Executivo sobre as agências reguladoras limita-se, como regra, à escolha de seus dirigentes, sob pena de se ofender a autonomia que lhes é assegurada pelas leis instituidoras [56]. A subordinação seria incompatível com a implementação eficiente da regulação de atividades que mobilizam interesses múltiplos do Estado, como empresário, arrecadador de tributos ou agente social. Mas a questão não é tão simples.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

É que se couber às agências a determinação integral das políticas públicas do setor regulado, pouco restará ao Chefe do Executivo em termos de competência decisória, valendo lembrar que é ele quem detém a legitimidade democrática, recebida nas eleições, para exercer a função administrativa. É possível mesmo vislumbrar um cenário no qual a multiplicação das agências, cada qual dotada de completa independência em relação ao Executivo, acabaria por esvaziar o espaço decisório que lhe cabe constitucionalmente. Como se vê, os parâmetros dessa relação ainda deverão ser fixados.

A terceira questão que envolve o exercício da função executiva pelas agências diz respeito ao controle de suas contas e gastos. A Constituição de 1988 esteve atenta ao assunto e, embora não tenha sido totalmente feliz no seu intuito de reequacionar o tratamento da matéria, o fato é que o controle externo das contas e gastos públicos foi minudentemente regulado no Texto Constitucional, competindo ao Poder Legislativo efetuá-lo, com auxílio do Tribunal de Contas (arts. 70 e 71, CF). É bem de ver que a nova Carta alargou consideravelmente essa atividade fiscalizatória externa, seja por permitir exame por outros ângulos que não o da estrita legalidade, seja pela ampliação do controle a todos aqueles que venham a deter recursos públicos. O parágrafo único do art. 70, na redação que lhe deu a Emenda Constitucional nº 19, de 4.06.98, assim dispõe:

"Art. 70. (...)

Parágrafo único. Prestará contas qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda, ou que, em nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniária."

O reverso dessa nova e abrangente configuração está em que a fiscalização externa, para a qual desempenha papel relevante o Tribunal de Contas, não se pode afastar das pautas constitucionais, conforme vem decidindo reiteradamente o Poder Judiciário, inclusive em pronunciamentos do Supremo Tribunal Federal [57]. Cabe ainda acentuar que o modelo de fiscalização delineado na Constituição Federal é aplicável aos Estados e Municípios. Disto resulta que as atribuições cometidas ao Tribunal de Contas da União e, conseqüentemente, os balizamentos à sua atuação, condicionam igualmente o controle a ser desempenhado pelos Tribunais e Conselhos de Contas dos Municípios (CF, art. 75).

Avançando no tema, converge a doutrina em que são basicamente três os campos em que se desenvolve a atuação dos Tribunais de Contas: a) auditoria financeira e orçamentária; b) julgamento das contas dos administradores e responsáveis por bens e valores públicos; e c) emissão de parecer prévio sobre as contas prestadas anualmente pelo Executivo [58]. Portanto, em consonância com os ditames constitucionais, é próprio da fiscalização externa examinar as contas das entidades da administração direta e indireta, aos ângulos da legalidade, legitimidade e economicidade. É essencial, todavia, para que se abra a possibilidade de fiscalização, tratar-se efetivamente de uso de dinheiro público, quando então até as pessoas privadas estarão sujeitas à prestação de contas. Neste ponto, não há maior divergência, assim na jurisprudência [59] como na doutrina [60].

Assim sendo, escapa às atribuições dos Tribunais de Contas o exame das atividades dessas autarquias especiais quando elas não envolvam dispêndio de recursos públicos. Isto se dá, por exemplo, quando o Tribunal de Contas objetiva obter informações a respeito de deveres dos concessionários, atividades que, a par de não envolverem dispêndio de dinheiro público, constituem a razão da criação da própria agência reguladora [61]. Não lhe caberá avançar a atividade fiscalizadora sobre a atividade-fim da agência reguladora, sob pena de violação do princípio da separação de Poderes.

Este, portanto, o limite da atribuição do Tribunal de Contas [62]. Nada, rigorosamente nada, no texto constitucional o autoriza a investigar o mérito das decisões administrativas de uma autarquia, menos ainda de uma autarquia com as características especiais de uma agência reguladora. Não pode o Tribunal de Contas procurar substituir-se ao administrador competente no espaço que a ele é reservado pela Constituição e pelas leis. O abuso seria patente. Aliás, nem mesmo o Poder Legislativo, órgão que é coadjuvado pelo Tribunal de Contas no desempenho do controle externo, poderia praticar atos dessa natureza [63].

b) Função decisória e limites do controle exercido pelo Poder Judiciário

Ao lado do exercício de funções puramente administrativas, as agências reguladoras também exercem competências decisórias, resolvendo conflitos em âmbito administrativo entre os agentes econômicos que atuam no setor e entre eles e os consumidores. A Lei da ANATEL, e.g., prevê que ela comporá administrativamente os conflitos de interesse entre as prestadoras dos serviços de telecomunicações (art. 19, XVII); a Lei da ANEEL atribui a essa agência o poder de dirimir divergências entre os delegatários, bem como entre eles e seus consumidores (art. 3º, V); a Lei da ANP contém previsões nessa mesma linha (art. 18).

O exercício dessa função decisória merece atenção especial. Como referido, as agências reguladoras costumam ser autorizadas por lei a dirimir tanto controvérsias nas quais o poder concedente é parte – hipótese em que se instaura um contencioso administrativo normal, com a possibilidade de recurso ao Judiciário em seguida –, quanto as que se instaurem entre dois ou mais particulares, sejam concessionários ou empresas do setor, seja entre essas empresas e seus usuários, exercendo a função decisória tal como um árbitro [64].

Pois bem: qual o espaço de revisão judicial dessas decisões? Ou, de forma mais ampla, qual o espaço de controle jurisdicional das agências em geral? Como se sabe, o sistema brasileiro é o da jurisdição una, vale dizer, vige o princípio da inafastabilidade do acesso ao Poder Judiciário (art. 5º, XXXV, CF). A princípio, portanto, não é possível impedir que as decisões das agências reguladoras sejam submetidas à apreciação judicial. De outra parte, o controle judicial do ato administrativo, consoante doutrina tradicional, seria limitado aos aspectos de legalidade, não alcançando o mérito da decisão administrativa. Cabe revisitar essas idéias.

O conhecimento convencional no sentido de não ser possível exercer controle de mérito sobre os atos administrativos tem cedido passo a algumas exceções qualitativamente importantes, geradas no âmbito do pós-positivismo e da normatividade dos princípios. Nesta nova realidade, destacam-se princípios com reflexos importantes no direito administrativo, dentre os quais o da razoabilidade, da moralidade e da eficiência. À luz desses novos elementos, já não é mais possível afirmar, de modo peremptório, que o mérito do ato administrativo não é passível de exame. Isso porque verificar se alguma coisa é, por exemplo, razoável – ou seja, se há adequação entre meio e fim, necessidade e proporcionalidade – constitui, evidentemente, um exame de mérito.

Em suma: a doutrina convencional em tema de controle dos atos administrativos, aí incluídos os das agências reguladoras, não perdeu a validade, mas sofre exceções importantes. Sem embargo, no tocante às decisões das agências reguladoras, a posição do Judiciário deve ser de relativa autocontenção, somente devendo invalidá-las quando não possam resistir aos testes constitucionalmente qualificados, como os de razoabilidade ou moralidade, já mencionados, ou outros, como os da isonomia e mesmo o da dignidade da pessoa humana. Notadamente no que diz respeito a decisões informadas por critérios técnicos, deverá agir com parcimônia, sob pena de se cair no domínio da incerteza e dos subjetivismo.

c) Função normativa: algumas controvérsias.

Por fim, além de funções executivas e decisórias, praticamente todas as leis que organizaram agências reguladoras conferiram-lhes funções normativas de largo alcance, sendo esta certamente a mais polêmica das questões que envolvem as agências [65]. A dificuldade está em que, embora em alguns casos seja possível dizer que a lei apenas atribui um espaço discricionário amplo aos agentes administrativos, em outros há verdadeira delegação de funções do Legislativo para a agência, transferindo-se quase inteiramente a competência para disciplinar determinadas questões.

O problema aqui, naturalmente, é o confronto dessas disposições com o princípio da legalidade, que, embora passe por ampla reformulação, continua a funcionar como uma das mais importantes garantias individuais, nos termos do art. 5º, II, da Constituição. É verdade que a doutrina tem construído em torno do tradicional princípio da legalidade uma teorização mais sofisticada, capaz de adaptá-lo à nova distribuição de espaços de atuação entre os três Poderes. Com efeito, o crescimento do papel do Executivo, alimentado pela necessidade moderna de agilidade nas ações estatais e pela relação cada vez mais próxima entre ação estatal e conhecimentos técnicos especializados [66], acabou por exigir uma nova leitura do princípio, e nessa linha é que se admite hoje a distinção entre reserva absoluta e reserva relativa de lei, de um lado, e, de outro, entre reserva de lei formal ou material.

Fala-se de reserva legal absoluta quando se exige do legislador que esgote o tratamento da matéria no relato da norma, sem deixar espaço remanescente para a atuação discricionária dos agentes públicos que vão aplicá-la. Será relativa a reserva legal quando se admitir a atuação subjetiva do aplicador da norma ao dar-lhe concreção. De parte isso, também é possível distinguir a (a) reserva de lei formal da (b) reserva de lei material. Haverá reserva de lei formal quando determinada matéria só possa ser tratada por ato emanado do Poder Legislativo, mediante adoção do procedimento analítico ditado pela própria Constituição, que normalmente incluirá iniciativa, discussão e votação, sanção-veto, promulgação e publicação. A Constituição contempla, de outra parte, atos normativos que, embora não emanados diretamente do Legislativo, têm força de lei. Dizem-se, assim, atos materialmente legislativos, gênero onde se situam espécies normativas como as medidas provisórias e as leis delegadas.

Nada obstante toda essa construção, cujo propósito evidente já é atenuar a rigidez da noção original do princípio da legalidade (inicialmente associado apenas a atos expedidos pelo Poder Legislativo), permanece válida a concepção tradicional no direito constitucional brasileiro [67] de que é vedada a delegação de funções de um Poder a outro [68] fora das hipóteses constitucionais [69]; ou, ao menos, de que a delegação, ainda que possível, não pode ser "em branco", isto é, desacompanhada de parâmetros ou diretrizes obrigatórias.

Essa última flexibilização do princípio da legalidade, que acaba por admitir a delegação, desde que acompanhada de standards, já foi implicitamente aceita pelo Supremo Tribunal Federal [70]. O mesmo Tribunal, porém, em outro julgamento, suspendeu a eficácia de dispositivo da Lei da ANATEL que conferia à agência poderes normativos para dispor sobre o procedimento licitatório de outorga do serviço de telefonia de forma diversa da prevista na lei geral de licitações [71].

A grande dificuldade que envolve a discussão sobre o poder normativo das agências reguladoras, portanto, diz respeito ao seu convívio com o princípio da legalidade. É preciso determinar os limites dentro dos quais é legítima a sua flexibilização, sem que se perca sua identidade como uma norma válida e eficaz. É neste território que se opera a complexa interação – ainda não totalmente equacionada – entre a reserva legal, de um lado, e fenômenos afetos à normatização de condutas, como o poder regulamentar, a delegação legislativa e a polêmica figura da deslegalização [72], entendida como a retirada, pelo próprio legislador, de certas matérias do domínio da lei, para atribuí-las à disciplina das agências.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Luís Roberto Barroso

Ministro do Supremo Tribunal Federal. Mestre em Direito pela Universidade de Yale.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARROSO, Luís Roberto. Agências reguladoras.: Constituição, transformações do Estado e legitimidade democrática. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 59, 1 out. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3209. Acesso em: 28 mar. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos