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Discricionariedade nas contratações diretas

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23/02/2015 às 15:27
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3   A Discricionariedade

Os atos administrativos discricionários “são aqueles resultantes de alguma escolha efetuada pela autoridade administrativa”[27]. A autora reforça que a margem de escolha não é sinônimo de liberdade absoluta, o próprio conteúdo deve ser condizente com as normas definidas pelo ordenamento vigente, a autoridade precisa ser competente para editar o ato e a finalidade não pode ser outra senão o interesse público. A discricionariedade “é a própria possibilidade de escolha”[28].

A discricionariedade:

 consiste na competência-dever de o administrador, no caso concreto, após a interpretação, valorar dentro de critérios gerais de razoabilidade e proporcionalidade, e afastado de seus próprios 'standards' ou ideologias, dos princípios e valores do ordenamento, qual a melhor maneira de concretizar a utilidade pública postulada pela norma[29].

A respeito desta liberdade administrativa, “não é possível que o direito aprisione em fórmulas apriorísticas tudo o que acontece no mundo, nem possa, de antemão, profetizar a gama infinita e imprevisível da conduta humana”[30].

No que concerne à ideia e o propósito da discricionariedade a Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça, em acórdão de relatoria do Ministro Humberto Martins, assentou que: “A discricionariedade administrativa é um dever posto ao administrador para que, na multiplicidade das situações fáticas, seja encontrada, dentre as diversas soluções possíveis, a que melhor atenda à finalidade legal”[31].

A discricionariedade não é a ausência de normatização acerca de um determinado tema, tampouco permite que o gestor público adote a providência que lhe for mais conveniente. Ao contrário, a discrição provém da norma, do modo como se objetiva regular certa circunstância. Isto porque o legislador preocupou-se com o caso concreto, ante a impossibilidade de se prever sintaticamente as peculiaridades de cada acontecimento, outorgando à autoridade competente o encargo de perquirir sobre a conduta mais adequada. 

O poder discricionário tem adquirido importância “especialmente em razão do distanciamento, que é bastante nítido, entre as soluções legislativas, ou seja, previstas na própria lei, e a demanda de providências concretas enfrentadas pelo dia-a-dia da Administração Pública”[32].

Tendo a lei que regular a realidade das pessoas, a contextura social, o entrecho da subjetividade humana, é patente a necessidade de dar margem ao tratamento distinto conforme as circunstâncias se apresentam. Exatamente por esta razão não é possível obstar, pragmaticamente, a incidência da discricionariedade no ordenamento jurídico, sobretudo, ante a fluidez da terminologia da lei.

3.1 Discricionariedade e Conceitos Jurídicos Indeterminados

Sustenta-se que os conceitos indeterminados são instrumento de concessão de poder decisório do legislador para o administrador público, o qual está mais próximo da realidade social e, em princípio, por conseguinte, seria mais capaz de discernir acerca  de determinadas questões. Ante conceitos jurídicos indeterminados, é da imprecisão da terminologia utilizada e da plurivocidade de interpretações racionalmente compatíveis, que deflui a possibilidade de escolha. Escolha, esta, não cogitada pelo legislador, mas advinda da amplitude da linguagem.

Considera-se que “as normas são postas para permanecer como estruturas de linguagem, ou estruturas de enunciado, bastantes em si mesmas, mas reingressam nos fatos, de onde provieram, passando do nível conceptual e abstrato para a concrescência das relações sociais, onde as condutas são pontos ou pespontos do tecido social”[33].

Sobre as fontes formais objetivas do direito administrativo e a incidência dos costumes, “há certos institutos que ainda não têm os seus contornos bem gizados na lei, e, então, surge a possibilidade efetiva para a ação esclarecedora do costume. Portanto, embora não seja possível o costume contra a lei, em especial no Direito Administrativo, nada impede o interpretativo e o constitutivo, como se verifica, também, em outros ramos jurídicos”[34].

Logo, com as alterações necessárias, é plausível entender que o conceito jurídico fluido atribui discricionariedade ao administrador, vez que o costume local e a racionalidade substantiva do agente ajudar-lhe-ão a definir e aplicar a norma, não havendo uma única interpretação possível. Tal posicionamento, entretanto, não é pacífico, sendo antiga a discussão acerca do tema.

As principais teorias acerca dos conceitos jurídicos indeterminados. Segundo o autor, Hugo Adolf Bernatzik, no século XIX, sustentava, em suma, que os conceitos indeterminados conferem discricionariedade à autoridade estatal (teoria da multivalência)[35]. Tezner, por sua vez, acreditava que na exegese e aplicação desses conceitos só existe uma única solução correta. A discussão surgiu na Áustria quando se procurou definir se os conceitos com alto grau de indeterminação poderiam  submeter-se ao controle exercido pelos Tribunais.

A  doutrina germânica de Buhler e Von Laun, partindo da doutrina de Tezner, sustenta que todos os conceitos vagos são jurídicos, isto é, pertencem ao âmbito de vinculação legal[36]. Assim, na aplicação de conceitos jurídicos indeterminados, a autoridade administrativa deve considerar apenas o seu sentido legal, entendendo pela verificação ou não, de sorte que não há espaço para livre manifestação da Administração, servindo como critério geral para exegese e aplicação de conceitos jurídicos indeterminados o senso comum. Tezner nega a possibilidade de existência de um sentido absoluto em qualquer conceito jurídico[37], mas isso, a seu ver, não abre espaço à discricionariedade do administrador, pois mesmo nos casos em que uma terminologia legal dependa de interpretação, estará vinculada a um interesse público específico.

Há, ainda, a teoria da margem de livre apreciação, de Otto Bachof, segundo a qual “há certa liberdade na aplicação desses conceitos e, neste ponto, não há controle judicial. Existe um juízo de prognose do administrador”[38].

A Lei de Licitações e Contratos Administrativos traz, em seu bojo, uma série de conceitos indeterminados, sobretudo, no que tange á dispensabilidade e inexigibilidade de licitações. Bons exemplos, extraídos do artigo 24 da Lei, são as noções de “grave perturbação da ordem” (III); “emergência”, “calamidade pública”, “urgência de atendimento de situação que possa causar prejuízo e comprometimento da segurança” (IV); “avaliação prévia” (X); “finalidades precípuas da Administração” (X); “inquestionável reputação ético-profissional” (XIII); “baixa renda” (XXVII); “condições manifestamente vantajosas”(XIV).

Quanto à inexigibilidade, prevista no artigo 25 da Lei n. 8.666/93, destacam-se os conceitos de “natureza singular”; “notória especialização”; e, consagração pela crítica especializada.

A doutrina e os Tribunais procuram conferir inequivocidade às expressões legais, é, porém, a Administração quem primeiro aprecia a norma e aplica. Crê-se, portanto, que, a teor do ensinamento de Kelsen, a exegese possibilita a limitação do âmbito de incidência da norma, contudo a fixação desta moldura não obsta a identificação de hipóteses distintas no âmago do baldrame, de sorte que a discricionariedade se consubstanciaria na própria extração do sentido a juízo de conveniência e oportunidade do Poder Público, à luz do caso em apreço.

3.2 Limitações à discricionariedade na extração de significados

É certo que “o poder discricionário é sempre relativo, e as decisões que envolvem a prática de atos discricionários, como já se sabe, conforme o caso concreto, oferecem um único caminho razoável, até mesmo por razões de igualdade entre os administrados ou por critério de ordem técnica e de adoção obrigatória”[39].

Entende-se que a discricionariedade poderá surgir na limitação, sua dimensão negativa (“não pode”); ou na condição, dimensão positiva (“deverá”, “poderá”).

O juízo discricionário, por sua vez, surge de quatro maneiras para a administração, quais sejam: a) quando a legislação não contempla determinado ato; b) legislação prevê o ato, mas não a forma que irá assumir (ex: exoneração de servidor em cargo comissionado); c) legislação prevê o ato e define as circunstâncias, porém confere alternativa ao administrador (ex.: pena de suspensão ou multa); d) antinomias normativas.

Os atos discricionários não são sinônimos de arbitrariedade. Como toda e qualquer atividade administrativa, a atividade discricionária, ainda que haja certa dose de liberdade, deve ser exercida com sujeição à lei. Assim, em muitas ocasiões coexistirão, concorrentemente, a vinculação e a discricionariedade.

A doutrina, conforme analisado em outros tópicos, é uníssona quanto à inexistência de poder discricionário absoluto; sempre haverá limites. Ainda que a lei permita que o administrador escolha dentre alternativas elencadas no mandamento, deverá fazê-lo tomando em conta as circunstâncias do caso concreto, pautado no interesse público subjacente ao ato.

Assim sendo, tem-se, em primeiro lugar, como perspícua baliza da discricionariedade, o interesse público. Significa dizer, por mais que a lei tenha trazido em seu bojo pretexto para atuação discricionária, a liberdade é relativa podendo revelar-se, no caso posto, inexistente.  Deve-se tomar em conta que a discricionariedade é auferida no momento da prática do ato.

Por dissímis razões algumas alternativas regaçadas na norma podem não socorrer a Administração diante de determinada conjuntura, de sorte que se estreitam suas opções para atender ao escopo legal. Isto porque o legislador franqueia em abstrato certos atos administrativos. A autoridade pública deve tomar em conta as peculiaridades de cada situação, “é certo, pois, que o administrador, ao decidir-se, está inexoravelmente obrigado a eleger o comportamento cabível 'vinculado' à compostura do caso”[40].

Ponto que merece destaque, em se tratando de limitações, é a vedação expressa à contratação de publicitários por inexigibilidade. Outrora se enquadravam, comumente, os serviços de publicidade dentre as atividades artísticas ou de notória especialização, todavia, em razão de renitente improbidade administrativa envolvendo este caso específico, o legislador optou por proibi-lo, sem exceções, quando, em verdade, poder-se-ia vislumbrar hipóteses de inexigibilidade nesse sentido.

Outra grande polêmica que circunda as contratações diretas é a viabilidade, ou não, de subcontratação. Analisando tal questão, verifica-se que na licitação dispensável, é possível realizar subcontratação parcial, devendo estar previstos no contrato parâmetros para que isto ocorra. Quanto à subcontratação total, seria caso excepcionalíssimo e apenas para atender notório interesse público.

A subcontratação na inexigibilidade, por sua vez, figura-se desarrazoada e divorciada de qualquer princípio jurídico. Afinal, o mote do certame inexigível é a ausência de pressuposto de competição, em assim sendo, parece que a delegação de funções a terceiro evidencia fraude na motivação da inexigibilidade.

Entende-se, ademais, que a licitação inexigível requer a presença concomitante da inviabilidade de concorrência; singularidade do bem ou serviço e pessoa ou empresa de notória especialização.

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A discricionariedade, portanto, deve respeitar as balizas da Lei, uma vez que está adstrita, primeiramente, ao que esta admite ou proíbe.  Autorizado pelo legislador o juízo de conveniência e oportunidade do administrador público, ainda estará vinculado ao interesse público subjacente ao ato que pratica.

A lei se vale de noções unívocas e fluidas, de forma que é impossível pela própria natureza das coisas, furtar-se ao manobro de conceitos das duas ordens. Logo, a discrição seria imperativo lógico da norma, pois sempre sobejaria para o administrador o poder e o dever de adotar uma dentre as exegeses possíveis.

A discricionariedade que decorre dos conceitos jurídicos indeterminados é aquela que faz remanescer à Administração Pública, em seu proveito e a seu encargo, certa esfera de liberdade, que deverá ser preenchida com juízo subjetivo para atender a finalidade da lei. Daí dizer que a Administração procede da própria disciplina, normatizando casos concretos.

O que a lei pretende é que seja adotada em cada situação a providência que melhor atenda seu fim precípuo. Se o legislador todas as vezes regulasse a conduta do Poder Público de forma vinculada, padronizaria soluções, o que nem sempre conduziria ao bem comum, haja vista que a realidade empírica é multifacetada.


CONCLUSÕES

A Administração Pública, por meio de suas entidades, necessita adquirir bens e serviços, como qualquer outra organização, no mercado comum às empresas. Entretanto, para assegurar a isonomia e a transparência da gestão, utiliza-se de um procedimento seletivo prévio, a licitação.

No âmbito da contratação pública, o que deve prevalecer é o bem-estar da coletividade, o que se sopesa é o custo-benefício social, de sorte que nem sempre é simples conciliar todos os interesses.

O interesse público surge, portanto, como a motivação soberana da gestão pública, circundado por todos os princípios informadores do Direito Administrativo. Traduz uma espécie de vontade comum. É razoável dizer que a supremacia do interesse público, como alicerce do ordenamento, é, de per si, derivada da existência de uma conveniência, diligência ou importância geral, espécie de anseio do qual compartilham todos os cidadãos, por que o administrador público deve zelar.

O certame licitatório é, pois, o antecedente necessário do contrato e o pacto, por sua vez, é o consequente lógico da licitação.  No entanto, verifica-se que, em determinadas situações, seja, por exemplo, em razão de urgência, custo ou impossibilidade de competição entre proponentes diversos, o procedimento administrativo, burocrático, não atende às peculiaridades do caso concreto. Logo, o mesmo interesse público que subjaz à obrigatoriedade da licitação impõe exceções à regra geral, franqueando contratações diretas.

O Estatuto Federal das Licitações e Contratos Administrativos permite que sejam identificadas quatro espécies de contratação direta, a saber: licitação dispensada (artigo 17, I e II); licitação dispensável (artigo 24, I a XXXI); licitação inexigível (artigo 25, I a III) e, embora não propriamente, licitação vedada (artigo 7º, §5º). A obrigatoriedade de licitação possui dois aspectos relevantes: a escolha da modalidade é cogente, não é possível utilizar modalidade chã, quando a lei prevê a mais severa. Tampouco se pode contratar diretamente sem critério.

No tocante aos conceitos jurídicos indeterminados extraídos das normas que franqueiam a contratação direta, entende-se que se a lei comporta interpretações múltiplas, só pode ser porque se pretende que o Administrador solucione casos diferentes de forma distinta, a fim de tratar cada caso concreto de acordo com suas peculiaridades. A variedade de soluções franqueadas pela norma outorgadora não significa que qualquer das interpretações seja adequada para qualquer dos casos. Ao contrário, quer dizer que o legislador considera que algumas delas são aplicáveis para certos casos e não para outros.

Especificamente tratando de contratações diretas a lição que se extrai é que a existência de discricionariedade ao nível da norma, não significa que existirá discrição com a mesma amplidão no caso concreto. A obrigatoriedade de licitação é a regra e será sempre, se comprovadamente mais apta a alcançar o bem-estar da coletividade.

Para que se verifique a lisura do ato não basta que o agente declare que atuou no exercício da discrição, pautando-se unicamente nas alternativas que a lei lhe abrira. O interesse público deve balizar todo ato administrativo, a razoabilidade e a proporcionalidade devem nortear o juízo de conveniência e oportunidade do gestor público.

Em alguns casos, qualquer sujeito em intelecção normal poderá deduzir que foi adotada pelo Poder Público a solução mais correta e, em outros, que a despeito de ter a lei contemplado a discricionariedade, comportando mais de uma alternativa, certamente não foi correta a medida adotada – quando talvez a censura judicial pudesse intervir, sob o prisma da legalidade.

Admite-se, porém, que existem zonas de penumbra. Nestas circunstâncias de incerteza, é que de forma incontroversa impera a discricionariedade, pois apenas o administrador público terá legitimidade para avaliar o caso concreto, pautando-se pela probidade, os princípios da boa gestão.

Observa-se, portanto, paradoxalmente, que a liberdade conferida ao administrador para julgar subjetivamente se pode ou não contratar diretamente, é decorrente da restrição da imaginação humana, da impossibilidade de cercar todos os casos, de vislumbrar toda e qualquer situação e predeterminar positivamente a melhor solução.

A Lei não consegue prever com convicção insofismável a alternativa mais adequada para cada contingência, por isso admite-se a discrição. Entretanto, só é legítima a atividade discricionária quando vinculada à finalidade que a inspirou, isto é, à supremacia do interesse público.

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Sobre a autora
Gabriela Almeida Marcon

Procuradora Federal, em exercício na PFE-FUNAI. Especialista em Direito Notarial e Registral. Pós-Graduada em Direito Tributário pela Universidade Gama Filho – UGF, Especialista em Jurisdição Federal pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, Graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC; bacharela em Administração de Empresas pela Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC; membro do Instituto dos Advogados de Santa Catarina – IASC.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARCON, Gabriela Almeida. Discricionariedade nas contratações diretas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4254, 23 fev. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/32127. Acesso em: 4 mai. 2024.

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