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Cidadania no Brasil do Império à Primeira República (1822-1930).

O papel do Estado brasileiro frente aos direitos sociais

21/02/2015 às 13:28
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Se extremamente precários eram os direitos civis e políticos, certo é não haver como falar de direitos sociais em tal período. O governo pouco cuidava de legislação trabalhista e de proteção ao trabalhador. Não cabia ao Estado promover assistência social.

1 INTRODUÇÃO

Uma cidadania plena, que conjugue liberdade, participação e igualdade para todos, é um ideal, talvez, inatingível. Contudo, em um país marcado por graves problemas de ordem social, em que direitos são desrespeitados, inefetivos ou mesmo inexistem, e cuja problemática da desigualdade e da injustiça, vigente desde a colonização, ainda persiste, é de fundamental importância compreender os alicerces do desenvolvimento e da consolidação dos direitos do povo.

Os conceitos dos direitos que, combinados, constituem tal plena cidadania, são bem conhecidos. Os direitos civis têm como fundamento a liberdade individual, abrangendo os direitos à vida, à liberdade, à propriedade e à igualdade perante a lei. Os direitos políticos pressupõem a participação do cidadão na política da sociedade, isto é, consiste na capacidade de organizar partidos, de votar e de ser votado e de manifestar-se politicamente. Por último, há os direitos sociais, que incluem a educação, o trabalho, a saúde e a renda justa e têm como base a justiça social e a igualdade material.

Não se intentará aqui uma análise integral acerca do surgimento sequencial desses direitos. A especificidade do período objeto deste trabalho destina-se a garantir uma melhor compreensão do nascimento do fenômeno histórico da cidadania no nosso país. A demarcação do Império como ponto de partida da análise faz-se coerente uma vez conhecido o avanço que nossa primeira Constituição representou no que tange aos direitos políticos, despontando, de fato, em que pesem sua precariedade e simbologia, o início da construção cidadã no Brasil. Condizente também se faz, de igual modo, a inserção do ano de 1930, término da Primeira República, como ponto de chegada, visto sua característica de divisor de águas na história brasileira, a partir do qual avançaram as mudanças sociais e políticas com o advento do Estado Social de Vargas e com a Constituição de 1934.

O presente artigo pretende, nessa ordem de referência, estudar o modo inicial com que se delinearam os direitos do cidadão no Brasil, tendo como objeto de análise os dois sujeitos envolvidos no processo: o Estado Brasileiro e a sociedade civil. Do primeiro buscar-se-á abordar, particularmente, a partir da análise dos pressupostos de seus esforços na construção dos ideais dos direitos do cidadão, sua atuação diante dos direitos sociais. E do segundo objetiva-se colher sua participação nos caminhos tortuosos que tem seguido nossa cidadania.


2 DESENVOLVIMENTO

Séculos de hegemonia da escravidão e da grande propriedade impediram a formação de verdadeiros cidadãos na colônia. Inexistiam, à grande maioria da população, os direitos civis básicos da liberdade, das manifestações, da integridade e da própria vida, dada a dependência absoluta dos escravos, parte considerável da população, perante seus senhores, que podiam servir-se daqueles como instrumentos. Não havia um poder que se pudesse chamar de público, estando a justiça e as funções essenciais da administração a cargo do interesse e do domínio dos particulares mais poderosos, como os latifundiários e a Igreja Católica. Tal quadro permaneceu praticamente inalterado mesmo com nossa independência de Portugal, a qual, como sabido, não implicou mudanças significativas na conjuntura vigente.

A Constituição de 1824 regulou os direitos políticos e, para os padrões da época, era muito liberal, podendo votar quase toda a população masculina. Embora excluídos do voto as mulheres e os escravos, a concessão desses direitos aos analfabetos implicou a consolidação de uma das legislações mais liberais do período.

Na prática, contudo, os brasileiros que votavam eram os mesmos que sofreram as amarras da colonização. Em quase sua totalidade, eram analfabetos, incapazes de ler um texto elementar e sem prática alguma de exercício cívico. Com a submissão escravocrata ao senhorio, e com 90% da população vivendo em áreas rurais, não é difícil concluir que o voto não representava o exercício da cidadania, mas, sim, um ato de obediência e de lealdade aos chefes políticos que dele se aproveitavam para barganhar apoio e oferecer mercadorias a uma população carente e, sobretudo, sem noção suficiente do significado do direito que “conquistaram” (CARVALHO, 2001).

 O constitucionalismo do Império introduziu no país uma forma de organização do poder cujas ideologias seguiam os princípios fundamentais da ideologia liberal. No entanto, tentou-se impor um modelo que não refletia a realidade das instituições e estruturas políticas brasileiras nem garantia sua concreta implementação. O próprio Poder Moderador, “chave de toda a organização política”, segundo o texto constitucional, impedia a convivência harmônica entre os três poderes e delegava ao imperador atribuições múltiplas que inibiam a difusão dos preceitos liberais inseridos formalmente. Sob o manto de um Estado liberal, consubstanciado no texto constitucional de 1824, escondia-se um poder público cujas práticas e costumes inviabilizavam o alcance ao povo do real sentido de cidadania como a consciência de subsistir como sujeito de direitos e deveres perante o Estado. Intocável a observação de Laurentino Gomes:

Inspirado no modelo europeu, o sistema judicial brasileiro era igualmente exemplar. Pela Constituição, todo cidadão – categoria na qual não estavam incluídos os escravos – tinha direito de recorrer à Justiça para assegurar os seus direitos. O ritual previa amplo direito de defesa dos réus, só passíveis de condenação depois de esgotados todos os recursos. Ninguém podia ser preso sem culpa comprovada. O direito de liberdade de expressão era tão amplo no Brasil quanto nos países mais desenvolvidos. Na prática, a execução da lei dependia mesmo dos chefes locais, que mandavam prender adversários ou soltar aliados de acordo com suas conveniências. ‘O braço da justiça não é nem bastante longo nem bastante forte para abrir as porteiras das fazendas’, escreveu Joaquim Nabuco, ao fazer um retrospecto das instituições imperiais em 1886” (GOMES, 2013, p. 105).

A proclamação da República em 1889 e a libertação dos escravos no ano antecedente representaram o surgimento de uma alternativa excepcional ao Brasil. Era a possibilidade de se criar um regime fundado na soberania popular e no exercício pleno da cidadania, esta ampliada, inclusive, aos setores da população anteriormente marginalizados do jogo político (DORIGO; VICENTINO, 1999).

No entanto, mais uma vez, em nossa história, deflagra-se um acontecimento de relevante expressão nacional desacompanhado de medidas voltadas a surtir efeito verdadeiramente positivo na realidade. As instituições se revelavam impotentes para romper a tradição, o costume, a imaturidade cívica e os vícios sociais radicados. A ordem constitucional formalmente estabelecida não era acompanhada na prática, na qual a organização social e as demais vicissitudes da jovem nação republicana ainda mantinham os costumes do legado que herdara. Percebia-se a impossibilidade de se alterar a conjuntura vigente apenas com leis meramente codificadas.

A Constituição Republicana de 1891 eliminou a participação dos analfabetos, constante do texto de 1824, restringindo significativamente a atuação da sociedade na formação dos governos representativos e, portanto, esmagando o direito político de quase 90% do eleitorado. Se a tendência dos países cuja democracia amadurecia era no sentido de ampliar os direitos de voto, isto é, de participação política, o Brasil, lamenta-se, retroagiu.

Lima Barreto (1998, p.87) descreve a “república imaginária” em seu clássico “Os bruzundangas”, em que, com efeito, o autor já advertia que “de há muito os políticos práticos tinham conseguido quase totalmente eliminar do aparelho eleitoral este elemento perturbador”, qual seja o voto.

Em 1886, estima-se que apenas 0,8% da população total votou nas eleições parlamentares. Somado a isso, algumas mudanças, como a extinção do Poder Moderador, do Conselho de Estado, do Senado vitalício e a introdução do Federalismo, embora tivessem escopo democratizante de descentralização do poder, não vieram associadas a igual expansão da cidadania política e implicaram a formação de oligarquias cujos interesses individuais consubstanciaram uma prática política de consequências extremamente negativas. As práticas eleitorais fraudulentas multiplicavam-se, as eleições eram cada vez mais compradas, e o voto dos eleitores era simples retórica.

Durante toda a Primeira República, de modo semelhante ao que se via em relação ao sistema eleitoral, os direito de liberdade, de propriedade e de manifestação encontravam-se no poder dos coronéis. Num país predominantemente agrícola até 1930, o domínio exercido pelos grandes latifundiários, claramente, impedia a participação política ao negar os direitos civis. Sua lei e seu poder imperavam, e o controle sobre seus súditos dava-se nos mais diversos segmentos da sociedade.

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A justiça, pois, controlada pelos agentes privados, na verdade inexistia, e a lei, que deveria ser instrumento de igualdade, era utilizada aos sabores de grupos particulares, tornando-se objeto de castigo e perseguição contra inimigos, mas, ao mesmo tempo, de agrado e benevolências para com os aliados. Desse modo, inviabilizavam-se as condições idôneas ao exercício dos direitos dos cidadãos.

Durante o período aqui analisado, houve indícios de surgimento de uma cidadania consciente e participativa, de modo que não se pode desprezar o valor das manifestações que, de fato, mesmo que não frequentes, ocorreram, como demonstra a historiografia nacional. Embora raras, apareceram como o marco inicial em nossa história da crença na existência de direitos, os quais, como se viu, sofriam intensamente a opressão de um sistema que, dia a dia, foi mostrando-se incapaz de alterar a realidade injusta e insuportável à população.

Convém, no entanto, que se diga que todos esses movimentos deram-se, muito mais, como reação aos arbítrios do grupo dominante do que, verdadeiramente, pelo interesse de reivindicar tudo aquilo que parecia razoável. Com efeito, o povo mostrava ter alguma noção dos direitos dos cidadãos e dos deveres do Estado, embora a cidadania não se manifestasse de forma propositiva. Eram manifestações reativas, de modo que o Estado era aceito desde que não interferisse nos valores e elementos julgados essenciais pelos cidadãos. O povo assistia aos acontecimentos políticos nacionais, mas pouco reivindicava, atentando apenas para possíveis atuações do governo que lhes parecessem prejudiciais.

Finalmente, se extremamente precários eram os direitos civis e políticos, certo é não haver como falar de direitos sociais no período em discussão. A assistência social, em quase sua integralidade, estava no controle de entidades particulares. Irmandades religiosas e sociedades privadas ofereciam a seus membros apoio em forma de empréstimo, auxílio-seguro, tratamento de saúde, benefícios à aposentadoria e atendimento de caridade aos pobres, proporcionalmente à contribuição de cada membro. O governo pouco cuidava de legislação trabalhista e de proteção ao trabalhador. Não cabia ao Estado promover a assistência social, o que ficou claro com o retrocesso de 1891, quando a Constituição Republicana retirou do Estado a obrigação de fornecer a educação primária, constante do texto de 1824, e proibiu a interferência do governo federal na regulamentação do trabalho, vendo tal atuação como violação da liberdade do exercício profissional.

Não se despreza que houve medidas importantes na área, como o reconhecimento dos sindicatos como legítimos representantes dos operários, o estabelecimento da responsabilidade dos patrões pelos acidentes de trabalho e a criação do Conselho Nacional do Trabalho e de uma Caixa de Aposentadoria e Pensão para os ferroviários, mas as intenções padeciam de efetividade, e as poucas leis elaboradas relacionadas com a matéria não surtiram efeitos práticos, como é o caso do Código de Menores de 1927 e de uma lei de 1926 que regulou o direito de férias.

O constitucionalismo do Império manifestou uma sensibilidade precursora para o social, criando o germe de uma declaração social de direitos, nascida sob o bojo da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, expressando sua preocupação, por exemplo, com os problemas do desemprego e da educação primária. No entanto, os dispositivos ligados à questão social eram praticamente desconhecidos, constituindo meras considerações de problemáticas existentes, que não foram inseridas no âmbito de atuação das políticas públicas e não tinham destinação específica. (ANDRADE; BONAVIDES, 1991).

Revela-se evidente que não se cogitava de promover igualdade material nem assistência social. Outrossim, quase a totalidade das medidas restringia-se ao meio urbano, ficando o poder no campo exercido quase plenamente pelos coronéis, que, além de controlarem a justiça e a política, representavam o único meio de que se podiam valer os trabalhadores no atendimento de suas necessidades relevantes Era a promiscuidade entre interesses públicos e privados, presente durante praticamente todo o período em comento. Cerqueira Filho (apud WOLKMER, 1989, p.46) comenta:

[...] a ‘questão social’ não aparecia no discurso dominante senão como fato excepcional e episódico, não porque não estivesse já, mas porque não tinha condições de se impor como questão inscrita no pensamento dominante. Por isso, popularizou-se, na Primeira República, a sentença: ‘a questão social é um caso de polícia’. Não se inscrevendo como questão no pensamento dominante, ela era, ao contrário, a grande questão para o pensamento marginal e dominado. As classes dominantes, na medida em que mantinham o monopólio do poder político, detinham, simultaneamente, o monopólio das questões políticas legítimas. [...] a ‘questão social’, por ser ilegítima, não era uma ‘questão’ legal, mas ilegal, subversiva e que, portanto, deveria ser tratada no interior dos aparelhos repressivos do Estado.

Torna-se nítido perceber a fragilidade e a precariedade da cidadania no período ora aferido. Se limitados e vulneráveis eram os direitos civis e políticos, não se pode deixar de constatar a quase completa ausência de políticas públicas sociais. Não cogitando o Estado de promover assistência social, não se pode analisar sua real atuação no que concerne aos direitos sociais, o que só pode ser realizado a partir do momento em que ele se reconheça como ente institucionalmente responsável em promover igualdade material e justiça social, mediante atuações positivas consignadas em legislações específicas. E não é outro o objetivo precípuo desse trabalho senão a constatação dessa proposição.


3 CONCLUSÃO

No período histórico compreendido entre 1824 e 1930, no Brasil, constata-se a inexistência de uma preocupação com políticas prestacionais por parte do Estado, já que este não se reputava um ente institucional responsável por promover igualdade e justiça material, encontrando-se as iniciativas a respeito, em quase sua totalidade, a cargo dos particulares. As poucas medidas adotadas na área revelaram-se bastante tímidas e não surtiram efeito prático significativo.


4 REFERENCIAL TEÓRICO

ANDRADE, Paes de. BONAVIDES, Paulo. História Constitucional do Brasil. 3ª ed. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1991.

BARRETO, Lima. Os bruzundangas. Rio Grande do Sul: L&PM Editores, 1998.

CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: O Longo Caminho. São Paulo: Editora Civilização Brasileira, 2001.

DORIGO, Gianpaolo. VICENTINO, Cláudio. História Geral e do Brasil. 1ª ed. São Paulo: Editora Scipione.

GOMES, Laurentino. 1889. Como um imperador cansado, um marechal vaidoso e um professor injustiçado contribuíram para o fim da Monarquia e a Proclamação da República no Brasil. 1. ed. São Paulo: Globo, 2013.

WOLKMER, Antônio Carlos. Constitucionalismo e direitos sociais. São Paulo: Editora Acadêmica, 1989.

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Sobre o autor
Lucas Sales da Costa

Juiz de Direito Substituto do TJDFT. Ex-Advogado da União. Ex-Técnico Judiciário do TRF da 5ª Região. Pós-Graduado em Direito Processual Civil Individual e Coletivo pela Faculdade Christus (CE). Pós-Graduado em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP/DF). Aprovado nos concursos de Analista do TRT da 7ª Região e de Juiz Federal Substituto do TRF da 4ª Região.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Lucas Sales. Cidadania no Brasil do Império à Primeira República (1822-1930).: O papel do Estado brasileiro frente aos direitos sociais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4252, 21 fev. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/32197. Acesso em: 25 abr. 2024.

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