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Divergências no Supremo Tribunal Federal com relação a competência da Justiça Militar

30/09/2014 às 14:28
Leia nesta página:

Trata-se de artigo que se propõe a mostrar divergências de entendimento entre as duas turmas do Supremo Tribunal Federal quanto à competência da Justiça Militar

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal, ao apreciar o HC 112.932, impetrado contra acórdão do Superior Tribunal Militar, por sua Primeira Turma, decidiu, no dia 13 de maio de 2014, que à Justiça Militar cabe processar e julgar uma civil acusada de desacato contra militares das Forças Armadas que atuavam no processo de pacificação dos Complexos do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro. Era um caso em que uma moradora do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, se recusou a obedecer determinada ordem durante operação no local.

Naquele julgamento apontado, o Ministro Luis Roberto Barroso destacou que a submissão de civil à Justiça Militar, em tempos de paz,é prevista no Código Penal Militar(CPM) em algumas hipóteses, entre as quais o crime praticado contra militar no desempenho de serviço de preservação da ordem pública.

O Relator assim concluiu:

“É uma exceção. Embora essa seja uma função atípica, é prevista em lei, e se as Forças Armadas estão em função de segurança pública, devem ter esta proteção institucional.”

Foi mais adiante o Ministro Relator, Luis Roberto Barroso, ao destacar não ser possível a aplicação do instituto da suspensão condicional do processo, pois a Lei 9.099/95 veda a aplicação de suas disposições no âmbito da Justiça Militar.

Data vênia, a decisão historiada destoa de anteriores do Supremo Tribunal Federal, levando-se em conta que a chamada atividade de policiamento não constituiria atividade tipicamente militar.

É certo que a doutrina, pela voz abalizada de Eugênio Pacelli (Curso de Processo Penal, 17ª edição, pág. 256), conclui que a Justiça Militar Federal julga tanto civis como militares. Mas a competência da Justiça Militar somente aprecia delitos militares, impondo-se a separação obrigatória dos processos em caso de concurso de crimes (comuns e militares), diante da absoluta especialização e especialidade dessa jurisdição.

Para Eugênio Pacelli é exatamente a motivação do agente que afastaria a aplicação do tipo penal previsto no CPM. Disse ele: “Para que se possa admitir um crime como de natureza militar, parece-nos indispensável, ou uma ação dirigida contra a instituição, ou uma ação praticada pelo militar, do mesmo modo que se exige, para os chamados crimes políticos a motivação política da conduta(Lei nº 7.170/83, artigo 2º). Ora, tampouco é suficiente a condição de militar, como, aliás, se ressaltou na decisão do Supremo Tribunal Federal”.

Há crimes propriamente militares e crimes  impropriamente militares. Os propriamente militares dizem respeito à vida militar, vista globalmente na qualidade funcional do sujeito do delito, na materialidade especial da infração e na natureza peculiar do objeto da ofensa penal, como disciplina, a administração, o serviço ou a economia militar. Os crimes impropriamente militares, que podem ser cometidos por militares e ainda, excepcionalmente, por civis, abrangem os crimes definidos de modo diverso ou com igual definição na legislação penal comum. Sendo assim, crimes impropriamente militares são os que, comuns em sua natureza, podem ser praticados por qualquer cidadão, civil ou militar, mas que, quando praticados por militar em certas condições a lei considera militares, como se tem dos crimes de homicídio e lesão corporal, os crimes contra a honra, os crimes contra o patrimônio, os crimes de tráfico ou posse de entorpecentes, o peculato, a corrupção, os crimes de falsidade, dentre outros. São ainda impropriamente militares, os crimes praticados por civis, que a lei define como militares, como o violência contra sentinela, previsto no artigo 158 do CPM.

Há crimes militares em tempo de paz(artigo 9º do CPM) e crimes militares em tempo de guerra(artigo 10 do CPM).

Bem situou o Ministro Carlos Mário Velloso, no julgamento do CC 7.040/RS, DJ de 22 de novembro de 1996, que o crime que enseja a competência da Justiça Militar, praticado por civil contra militar na situação inscrita no artigo 9º, III, “c”, do COM, é aquele que é marcado pelo intuito de atingir, de qualquer modo, a Força, no sentido de impedir, frustrar, fazer malograr, desmoralizar ou ofender o militar ou o evento ou situação em que este esteja empenhado. O cometimento do delito militar por agente civil em tempo de paz se dá em caráter excepcional. Tal cometimento se traduz em ofensa àqueles bens jurídicos tipicamente associados à função de natureza militar, defesa da Pátria, garantia dos poderes constitucionais, da Lei e da Ordem, como determina o artigo 142 da Constituição Federal(HC 86.216, Relator Ministro Ayres Britto, julgamento de 19 de fevereiro de 2008, DJe de 24 de outubro de 2008 e ainda HC 104.619, Relatora Ministra Cármen Lúcia, julgamento de 8 de fevereiro de 2011, Primeira Turma, DJe de 14 de março de 2011 e HC 99.671, Relatora Ministra Ellen Gracie, julgamento de 24 de novembro de 2009, Segunda Turma, DJe de 11 de dezembro de 2009).

De toda sorte, em situação específica em que os militares das Forças Armadas exercem função policial, como a de policial ostensivo, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 112.936, julgamento de 29 de junho de 2012, DJe de 1º de agosto de 2012,  concedeu writ para invalidar, deste o inicio, procedimento anteriormente produzido na Justiça Militar, sem prejuízo do suposto crime pela Justiça Federal. O entendimento foi que o desacato de um civil a um militar que exercia essa atividade no Complexo do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro, dentro do programa de ocupação e pacificação dos morros cariocas, constitui crime civil, e não militar, enquadrado no artigo 109, inciso IV, da Constituição Federal(crimes em detrimento de bens, serviços ou interesses da União).

Fica cristalino da lição do Ministro Celso de Mello, Relator do último acórdão apontado, que não se pode deixar de acentuar o caráter anômalo da submissão de civis, notadamente em tempos de paz, à jurisdição dos Tribunais e órgãos integrantes da Justiça Militar da União, por suposta prática de crime militar, especialmente se se tiver em consideração que tal situação, porque revestida de excepcionalidade, só se legitima se e quando configuradas, quanto aos réus civis, as hipóteses delineadas em sede legal e cujo reconhecimento em recebido pelo Supremo Tribunal Federal uma estrita interpretação.

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Correto é que não se tem por configurada a competência da Justiça Militar da União, em tempo de paz, tratando-se de réus civis, se a ação eventualmente delituosa, por eles praticada, não afetar, de modo real ou potencial, a integridade, a dignidade, o funcionamento e a respeitabilidade das instituições militares que constituem, em essência, os bens jurídicos penalmente tutelados.

O entendimento do Ministro Celso de Mello é de que mostra-se grave a instauração, em tempo de paz, de ação penal militar contra civil, com o objetivo de submetê-lo, fora dos casos autorizados em lei, a julgamento perante a Justiça Militar da União. Isso porque deve-se respeitar o princípio do juiz natural, uma das mais importantes matrizes político-ideológicas que conformam a própria atividade legislativa do Estado e que condicionam o desempenho, por parte do Poder Público, das funções de caráter penal-persecutório.

Naquele julgamento o Ministro Celso de Mello trouxe a advertência de José Frederico Marques(O Processo Penal na atualidade, in Processo Penal e Constituição Federal, pág. 19, item n.7, 1993), no sentido de que ao rol dos postulados básicos deve acrescer-se aquele do Juiz natural, contido no item nº LIII do artigo 5º da Constituição Federal, que declara que ninguém será processado nem sentenciado senão por autoridade competente. A autoridade competente será aquela que a Constituição tiver previsto, explícita ou implicitamente, pois, se assim não fosse, a lei poderia burlar as garantias derivadas do princípio do Juiz independente e imparcial, criando outros órgãos para o processo e julgamento de determinadas infrações. Sendo assim, impõe-se ao Estado o dever de respeitar essa garantia básica que predetermina, em abstrato, os órgãos judiciários investidos de competência funcional para a apreciação dos litígios penais. Como tal, o principio da naturalidade do juízo, que encerra uma  garantia constitucional, limita, de um lado, os poderes do Estado, na medida em que impossibilita a instituição de juízos ad hoc ou de criar tribunais de exceção, assegura ao acusado, de outro, o direito ao processo perante autoridade competente, abstratamente designada na forma de lei anterior, vedados os chamados juízes ex post facto. Assim somente serão órgãos jurisdicionais aqueles que são reconhecidos pela Constituição; ninguém pode ser julgado por órgão constituído após a ocorrência do fato; entre os juízes pré-constituídos vigora uma ordem taxativa de competências, que exclui qualquer alternativa deferida à discricionariedade de quem quer que seja, como aludem Ada Pellegrini Grinover com apoio no magistério de Jorge Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, volume 1/322-323 – 1974, Coimbra).

No caso em discussão naquele HC 112.936, o paciente é civil, havendo sido denunciado, pelo Ministério Público Militar, como autor de suposta prática delituosa, de natureza castrense, tipificada no artigo 299 do Código Penal Militar e que teria sido alegadamente cometida em ambiente estranho à Administração de Forças Armadas. Foi sustentado que o delito atribuído ao paciente teria ocorrido quando uma equipe de militares do Exército realizava genuína atividade de policiamento, cuja natureza, por envolver típica atividade de segurança pública, afastaria o ilícito penal em questão da esfera de competência penal da Justiça Militar da União, fazendo instaurar, ao contrário, por efeito do que dispõe o artigo 109, inciso IV, da Constituição Federal, a competência penal da Justiça Federal comum.

Nessa linha de pensar tem-se os seguintes julgamentos: CC 7.030/SC, Relator Ministro Marco Aurélio; HC 68.928/PA, Relator Ministro Néri da Silveira; HC 101.471/PA, Relator Ministro Ayres Brito. No primeiro julgamento, destaca-se, da interpretação a ser dada ao artigo 9º do Código Penal Militar, a competência da Justiça Militar, em face da configuração de crime de idêntica natureza, pressupõe prática contra militar em função que lhe seja própria.

 Esse, salvo melhor juízo, o melhor entendimento na matéria, data vênia.

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. Divergências no Supremo Tribunal Federal com relação a competência da Justiça Militar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4108, 30 set. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/32348. Acesso em: 22 dez. 2024.

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