Em recente palestra proferida pelo doutor em sociologia Luis Flávio Sapori, no XXI Fórum de Ciência Penal, promovido pelo Ministério Público do Ceará, foi apresentado o interessante tema “Menos pobres, mais crimes. O que está acontecendo com o Brasil?”, desmistificando um dos argumentos menos úteis para explicar o crescimento da violência no país e, especialmente, no nordeste: a pobreza.
Tem-se incrustado no senso coletivo o entendimento de que o aumento da violência nos últimos anos é diretamente ligado à pobreza latente no Brasil. As elevadas estatísticas de delinquência – precipuamente nas regiões menos favorecidas – e a origem econômica da população carcerária são alguns dos elementos estimulantes desta ideia. Todavia, como bem exposto por Sapori, os fatos/números apontam justamente o contrário.
Para sustentar a desvinculação da pobreza com o aumento da violência (pelo menos como explicação lógica), apresenta o sociólogo dados estatísticos de 1999 a 2010, onde, a despeito da ascendência vertiginosa da criminalidade violenta, todos os índices pertinentes à pobreza apontam para sua diminuição significativa. A exemplo, cite-se a redução de 31% nas taxas de mortalidade infantil (no nordeste, apontou-se mais de 40%); o aumento da expectativa de vida em mais de 3 anos; menor desemprego histórico; forte redistribuição de renda; e incremento positivo do sistema educacional.
De fato, a pobreza, de modo geral, diminuiu significativamente no período avaliado, em razão de vários fatores, dentre eles os programas sociais estatais, maior solidez econômica do país e melhoria das condições sanitárias. A renda per capita da população mais humilde subiu, fazendo com que milhões de pessoas atravessassem a tão controversa “linha da pobreza”. Em suma, os gráficos não batem; são, aliás, contrários: a pobreza diminuiu e a violência aumentou, ambas consideravelmente.
O imaginário popular, logo, está definitivamente equivocado. A sociedade não está somente menos pobre, como também mais instruída (mesmo não sendo o nível educacional desejado, é mais letrada que antes de 1999), com mais acesso à saúde e possibilidades de ascensão social. As causas do encrudescimento da violência devem necessariamente encontrar outra fundamentação.
Sapori, com precisão e argumento, revela duas causas fundamentais ao incremento da violência no Brasil: a disseminação do tráfico de drogas e a impunidade.
A narcotraficância pode ser sem dificuldades relacionada à violência, não só no Brasil. Nos únicos países onde a criminalidade é crescente (a tendência mundial é o decrescimento dos índices, desde o período pós-guerras), como México, Venezuela, Honduras, o tráfico é protagonista. O poder de cooptação, principalmente dos jovens, é seu elemento mais maléfico, atraindo traficantes, usuários, dinheiro ilegal e todo tipo de mazelas sociais decorrentes, entre estas a própria violência.
A criminalidade permeia a órbita do tráfico, bastante alargada nos últimos anos, graças a drogas baratas (e mais potentes), como o crack. Neste sentido, o aumento do poder aquisitivo da população finda por, paradoxalmente, criar potenciais “clientes” deste comércio ilegal, aprofundando a atividade criminosa nos diversos segmentos sociais (o tráfico, é certo, sobrevive de dinheiro; na miséria não o há).
Por sua vez, os crimes praticados em decorrência das drogas são, predominantemente, violentos, como roubos e homicídios, justificando em parte a curva ascendente da violência na década passada (e, pode-se dizer, nesta primeira metade de década). Logo, a despeito do problema das drogas existir em todos os países do mundo, nas nações onde o tráfico é mais relevante (seja por ser produtor, exportador ou corredor de passagem da droga) as estatísticas criminais são consideravelmente mais evidentes.
A impunidade é outra causa do aumento da violência no Brasil, conforme Sapori. Para sustentar o alegado, o sociólogo apresenta assustadores estatísticas de “ocorrência de crimes x processos julgados”. Há, sem dúvida, uma discrepância colossal entre o número de crimes cometidos e os efetivamente apurados pela justiça (seja na seara administrativa, através da polícia civil, seja na judicial). A qualidade investigativa é, também, bastante aquém do volume de trabalho, fazendo com que apenas numa percentagem ínfima se chegue à autoria (os índices apresentados chegam a 4% em São Paulo, onde a polícia não é das piores, no contexto brasileiro).
Não há o que se comemorar também no judiciário. A demora na instrução e julgamento dos feitos criminais leva, muitas vezes, à soltura do flagranteado por excesso de prazo, quando não à prescrição do delito, reforçando o sentimento de impunidade – entre os próprios acusados e a sociedade. Unindo-se estes dois graves problemas, tem-se que, no Brasil, estatisticamente, ao cometer-se um crime, a chance de se ver investigado é pequena; de ser processado é mínima; de ser condenado, ínfima.
Quando o Estado não exerce seu direito de punir, os cidadãos se veem sem freios à prática delituosa, potencializados pela ebriez da causa anteriormente analisada: a droga.
Neste cenário, a violência encontra campo fértil para se desenvolver, tomando contornos de epidemia social. As politicas públicas que tanto serviram para alavancar o país da indigna condição de nação pobre à potência emergente precisam voltar-se ao (re)aparelhamento estatal, em especial no que concerne à polícia investigativa e ao judiciário. Não há solução parcial, emendas legislativas ou reparos isolados a remediar a grave crise de segurança instalada no Brasil.
Incluo como uma das causas do aumento da violência, com o devido respeito à tese do estudioso, a crescente corrupção. Instalada em todos os níveis de todos os entes públicos do estado, este mal – infelizmente tão característico do Brasil – assola e corrói os fundamentos do Estado Democrático de Direito, tornando as questões anteriormente tratadas, a meu ver, fugazes, dada a gravidade da moléstia. Não se quer, todavia, eximir os particulares deste problema (onde há corrupto, há corruptor), mas somente evidenciar o desgaste brutal submetido ao erário público pela corrupção. Indubitavelmente, o reflexo no alcance estatal é evidente, minando seu poder de intervenção na realidade social.
De qualquer forma, o presente estudo é de fundamental valia ao entendimento do fenômeno da criminalidade, visto que, no mundo atual, é inconcebível a convivência de um estado moderno, igualitário, justo, com os atuais índices de violência vivenciados no Brasil. Na verdade, a própria existência do Estado Democrático de Direito, no futuro, depende da resolução deste problema.