1º) Cesare Beccaria publicou, aos 25 anos (1764, Livorno-Itália), o livro mais revolucionário e mais emblemático, jamais escrito (antes ou depois dele), na área criminal: Dos delitos e das penas. Apesar de proibido pela Igreja, foi o livro mais lido na Europa, no século XVIII. Maior best seller depois da Bíblia. Por quê? Porque formulou as mais duras críticas contra o cruel e desumano sistema de Justiça criminal da sua época (Justiça inquisitiva, praticada barbaramente tanto pelo poder eclesiástico como pelo poder civil, dos monarcas absolutistas). O sistema inquisitivo contestado (investigação após denúncia anônima, prisão cautelar imediata, tortura para confessar e delatar, sem direito a um defensor, condenação pelo mesmo juiz que investigava, ausência de recursos etc.) continua, em grande parcela, mais vivo que nunca quando os órgãos repressivos investigam, processam ou punem os "desiguais" (pobres, marginalizados, prostitutas etc.), os "inimigos" de cada momento (traficantes, pedófilos, terroristas, sonegadores fiscais, corruptos etc.) ou os dissidentes (políticos), para os quais não valem (ou pouco valem) os direitos e garantias do Estado de direito.
2º) Alguém poderia achar estranho escrever um livro (como nós escrevemos:Beccaria, 250 anos, Saraiva) sobre outro publicado no século XVIII. Mas não é. Tratando-se do insuperável Beccaria, ontem, hoje e amanhã sempre será oportuno revisitá-lo, porque o estado de polícia (inquisitivo e medieval) que ele criticou duramente em sua obra nunca morreu nem nunca morrerá (aliás, jamais existiu Estado de direito sem a sombra do estado de polícia - Zaffaroni 2012/2: 165 e ss.). Ele expôs criticamente os fundamentos do direito de castigar, os princípios estruturantes que o limitam, os requisitos mínimos da imputação penal, alguns aspectos dos crimes mais graves do seu tempo, as sanções crueis aplicadas e o procedimento desumano e degradante que se adotava. Por ser filho de uma família nobre, escapou da pena de morte, mas não da perseguição da Igreja, que colocou seu livro no Index das obras proibidas.
3º) Vale a pena ler ou reler Beccaria, ademais, para recordar suas ideias sobre oiluminismo (que criticou duramente o poder monárquico e sua justiça inquisitiva), asecularização (que pugnou pela separação entre a Igreja e o Estado, a religião e o direito e o delito e o pecado), o racionalismo (que partia da premissa de que o humano deveria fazer uso da razão e se libertar das crenças e superstições, das religiões estabelecidas assim como dos costumes autoritários), o (ultrapassado) contratualismo (
4º) Depois de 250 anos, o velho direito penal liberal traçado por Beccaria e sistematizado por Feuerbach, Carrara, Lardizável, Melo Freire etc., continua sofrendo ataques contundentes, porque vem ganhando força a cada dia a ideia do sufocamento do Estado de direito, sobretudo diante das ofensivas neopunitivistas autoritárias, centradas no inútil e nefasto populismo penal (veja nosso livroPopulismo penal midiático, Saraiva), que jamais diminuiu qualquer tipo de crime em países com poderes selvagens (veja Ferrajoli), como o Brasil, dominado por legisladores e governantes demagogos que prometem irresponsavelmente a redução da criminalidade por meio da edição de novas leis penais, aproveitando-se da emocionalidade do povo desnorteado, amedrontado e impotente. De 1940 a 2014 eles aprovaram 155 reformas penais, que nunca reduziram qualquer tipo de crime.
5º) Na última parte do meu livro destaco uma outra brilhante e fecunda contribuição de Beccaria, que foi o fundador da Política criminal, defendendo que a prevenção da violência e da criminalidade exige 1º) a certeza da pena mais suave possível e 2º) medidas extrapenais socioeconômicas e educativas, que jamais foram implantadas nos países de poderes podres e selvagens (como o Brasil), cuja equivocada política criminal (penal, deveríamos dizer) se caracteriza não só pela ausência de tais medidas extrapenais (Estado reativo, não preventivo; governança da reação simbólica, não dos riscos reais), senão também pela equivocada política da severidade da pena (intimidação por meio da pena prevista na lei, da aplicação e da execução exemplares), pela falta da certeza do castigo, pelo clima de guerra e de medo, pela exploração da emocionalidade da sociedade de massas ressentidas (conforme doutrinava Durkheim e Ortega Gasset), pela predisposição da sociedade para um direito penal autoritário, pela edição de leis penais severas e alopradas (emergenciais), pelo encarceramento massivo sem critérios justos, pela frouxidão no controle dos órgãos repressivos, pela cultura da violação massiva dos direitos humanos das vítimas e dos réus e pelo desrespeito (frente aos acusados desiguais, inimigos ou dissidentes) ao devido processo legal e proporcional.
6º) Os países que seguiram a cartilha de Beccaria (merecem especial destaque os países escandinavos - Suécia, Dinamarca, Noruega, Finlândia e Islândia - assim como os que estão em processo de "escandinavização" - Alemanha, Austrália, Nova Zelândia, Japão, Coreia do Sul, Bélgica, Holanda, Suíça etc.) contam com 1 assassinato para cada 100 mil pessoas, renda per capita de US$ 50 mil, altíssima taxa de escolarização etc. Os países que refutaram a receita de Beccaria são extremamente violentos e apresentam altíssima taxa de criminalidade. O destaque aqui é o Brasil, que é o 12º país mais violento do planeta, com 57 mil assassinatos (campeão do mundo em números absolutos) e taxa de 29 mortes intencionais para cada 100 mil pessoas; o sangue exorbitante de 11% de todos os homicídios do mundo jorra no nosso solo, que conta ainda com 16 das 50 cidades mais mortíferas do planeta; ocupamos o 79º lugar no ranking do IDH (índice de desenvolvimento humano) e possuímos escolarização idêntica à de Zimbábue (7,2 anos). Enquanto a política criminal brasileira for conduzida pela elite dominante sanguinária, demagoga e ignorante, que jamais leu ou colocou em prática a cartilha de Beccaria, tudo (nessa área) não passará de mero enxugamento de gelo com toalha quente.