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A relevância da má-fé no delineamento da improbidade administrativa

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24/10/2014 às 13:18
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A ausência de maior comprometimento dogmático faz que a funcionalidade da má-fé varie ao sabor do intérprete de ocasião, o que em muito dificulta a ação do operador do direito ao aferir se uma determinada situação fática consubstancia, ou não, um ato de improbidade administrativa.

Sumário: 1. Aspectos introdutórios; 2. Má-fé: abertura semântica e funcionalidades básicas; 3. O Elemento subjetivo nos atos de improbidade; 4. O iter de individualização dos atos de improbidade; 5. A má-fé e o critério de proporcionalidade na incidência da Lei nº 8.429/1992; Conclusão; Referências bibliográficas.


1. Aspectos introdutórios

Embora transcorridos mais de vinte anos desde a promulgação da Lei nº 8.429/1992, é factível que o processo de construção dogmática dos denominados “atos de improbidade administrativa” ainda não alcançou contornos definitivos. Um dos aspectos mais controversos diz respeito aos contornos conceituais e à funcionalidade que a denominada má-fé ostenta nesse processo. De modo paradoxal, a expressão, embora citada com relativa frequência pela jurisprudência, raramente tem o seu significado explicitado com observância de padrões mínimos de objetividade, isso para fins de apreensão do interlocutor, e muito menos é esclarecida a natureza de sua influência no âmbito da teoria dos atos de improbidade. Não é incomum que as referências à má-fé, quando existentes, limitem-se à afirmação de que ela está presente e a improbidade administrativa configurada, ou que, por não estar caracterizada, deve ser afastada a incidência da Lei nº 8.429/1992.

A ausência de maior comprometimento dogmático faz que a funcionalidade da má-fé varie ao sabor do intérprete de ocasião, o que em muito dificulta a ação do operador do direito ao aferir se uma determinada situação fática consubstancia, ou não, um ato de improbidade administrativa. Não é incomum, ademais, que a má-fé seja associada (a) ao elemento subjetivo do agente público - de modo mais preciso, ao seu dolo-; ou (b) ao conhecimento da ilicitude de sua conduta, o que, como veremos, mostra-se metodicamente inadequado.

O objetivo dessas breves linhas é esclarecer o momento em que a má-fé deve ser considerada pelo intérprete no iter de individualização dos atos de improbidade administrativa, isso, obviamente, sem olvidar o delineamento dos seus contornos essenciais. Além disso, é preciso aferir a possibilidade, ou não, de ser praticado um ato de improbidade em que não seja divisada a ocorrência da má-fé, possibilidade, aliás, que, de modo açodado e acrítico, costuma ser amplamente rechaçada pela jurisprudência que recorre a essa expressão.


2. Má-fé: abertura semântica e funcionalidades básicas

A linguagem jurídica, a exemplo da linguagem ordinária, pode ser concebida como um “sistema de comunicação” (MCMENAMIN e CHOI, 2002: 2; BLOOMER e MERRISON, 2005: 15; e DEBRIX, 2003: 13-14) que operacionaliza a transmissão e o recebimento da informação (Cf. ECO, 1979: 32). A estrita conexão existente entre direito e linguagem, que se reflete na formação de padrões normativos e no seu aprofundamento científico em bases quase que inteiramente linguísticas,[1] torna inevitável que questões de ordem semântica e sintática influam no plano da juridicidade. Essa inter-relação assume especial relevância ao constatarmos que a produção normativa encontra-se normalmente descontextualizada dos eventos e participantes sobre os quais se projeta, o que faz surgir a necessidade de contínua reconstrução do seu sentido, operação inevitavelmente influenciada por vicissitudes de ordem espacial e temporal.

Além disso, a compreensão da comunicação normativa passa necessariamente pelo adquirido social, vale dizer, a cultura, que assume vital importância na atribuição de significado aos significantes interpretados. Exige a percepção do contexto e a realização de juízos valorativos, permitindo sejam individualizadas as características de uma comunidade. A apreensão da identidade cultural é influenciada não só por uma base empírica, como, também, pelos referenciais de racionalidade, expressando convergência e um locus comum no ambiente sociopolítico, e emotividade, que externa a sensibilidade do intérprete no delineamento de uma identidade que, em última ratio, é igualmente sua. 

A cultura, enquanto fator externo à linguagem (Cf. MCMENAMIN e CHOI, 2002: 26), contribui tanto para o seu surgimento, como para a sua extinção. Tanto para a densificação, como para a alteração do seu sentido (Cf. ECO, 1979: 46). Tal qual o espírito em relação ao corpo, está presente em todas as fases do seu processo evolutivo. Cultura, em seus contornos mais amplos, é tudo aquilo que, para além das funções biológicas e do oferecido pela natureza, “dá, à vida e à atividade humanas, forma, sentido e conteúdo” (BENEVISTE, 1966: 30). É, acima de tudo, fruto do processo social, marcado pela contínua interação e renovação dos indivíduos, que, além de conviver no mesmo ambiente, são alcançados pelo ciclo vital da espécie humana, que principia com o nascimento e cessa com a morte. Esse processo faz que gerações contemporâneas, em razão de sua contínua convivência, passem a partilhar de algumas ideias e símbolos, bem como que cada nova geração comece sua formação integrada a esse processo, o que possibilita o contato com o adquirido social e a sua consequente evolução.

Essa interação entre texto e contexto, com a correlata influência da cultura no delineamento do significado normativo, torna-se particularmente intensa quando utilizados signos normativos que ostentem elevados níveis de ambiguidade e vagueza semântica. Nesse caso, a “prodigiosa riqueza e flexibilidade da linguagem” (CARRIÓ, 2006: 19), decorrente da impossibilidade lógica de se dispor de uma palavra para cada ideia ou objeto específico (LOCKE, 1999: 6), termina por ser potencializada, exigindo intensos juízos valorativos por parte do intérprete. Se Jellinek (1887: 226), há mais de um século, afirmava que o signo “lei” (Gesetz) pertence à ambiguidade (vieldeutigsten) da linguagem científica e da vida diária, o mesmo pode ser dito, com intensidade semelhante, em relação à concepção de má-fé na ciência jurídica contemporânea.

Etimologicamente, fé, do latim fides, significa fidelidade, crença em algo, físico ou metafísico, já consumado ou a ser realizado, nesse último caso denotando um objetivo. Boa seria a fé depositada em algo perfeito, correto ou altruísta. Má, por sua vez, seria a fé depositada em algo imperfeito, incorreto ou egoísta. Embora sejam sempre úteis os caminhos oferecidos pela linguagem ordinária, definir má-fé, no âmbito da ciência jurídica, é não só difícil, como desaconselhável. Afinal, a boa ou a má-fé, além de não prescindir de considerações de ordem sociocultural, pode exigir reflexões quanto ao modo como o agente vê a si próprio ou ao semelhante; à propensão de manter-se adstrito aos balizamentos estabelecidos pela ordem jurídica, incluindo os deveres que dela emanam; ao efetivo conhecimento dos referenciais de licitude e dos deveres a serem observados; à realização de objetivos nobres, como a prática do bem etc.

No plano jurídico, a boa-fé, de um modo geral, será vista como parte integrante dos juízos valorativos realizados pelo agente no direcionamento de sua conduta.

No Brasil, o Código Civil de 2002 é pródigo nas referências à boa-fé, que assumiu indiscutível relevância na definição dos efeitos dos atos jurídicos que destoem da juridicidade, incluídos sob essa epígrafe o contrato e a lei. De um modo geral, apesar de alguns preceitos fazerem referência genérica à boa-fé,[2] ela é normalmente associada ao desconhecimento da injuridicidade de certa conduta ou da presença de circunstâncias fáticas e jurídicas que exigiriam a adoção de comportamento diverso.[3] A boa-fé também pode se aproximar do dever de lealdade, denotando a ausência de manipulação ou de omissão de informações que possam influir sobre a formação da vontade alheia.[4] A boa-fé também é utilizada para a aferição do caráter ilícito de um ato sempre que o titular do direito, ao exercê-lo, exceda os limites impostos por ela.[5]

Especificamente em relação à má-fé no âmbito da improbidade administrativa, a Lei nº 8.429/1992 não fez qualquer referência a ela. No entanto, face à importância assumida pelo conceito no âmbito da teoria do direito, de grande utilidade para o delineamento da ilicitude ou do juízo de reprovabilidade de determinada conduta, foi natural que, pouco a pouco, se desse a sua penetração no âmbito da jurisprudência. Nesse particular, centraremos nossa atenção em alguns acórdãos do Superior Tribunal de Justiça, os quais, embora tenham se referido indistintamente à má-fé, lhe atribuíram funcionalidades bem diversas.

Em não poucos acórdãos, a má-fé é sobreposta ao dolo, perdendo a sua própria individualidade.[6] De acordo com essa simbiose existencial, a má-fé nada mais seria que a má-intenção, vale dizer, o objetivo deliberado de afrontar a norma proibitiva implícita no tipo sancionador e eventualmente expressa no estatuto jurídico da categoria. Daí a conclusão de que meras irregularidades administrativas, destituídas de potencial lesivo, não seriam alcançadas pela Lei nº 8.429/1992.[7] No extremo oposto, foi identificada a má-fé em situação de dispensa indevida de licitação, em que o processo administrativo para a contratação direta sequer foi formalizado.[8] Também se considerou que o ato de improbidade pode se praticado de modo culposo, isso na hipótese do art. 10 da Lei nº 8.429/1992, o que torna desinfluente a análise da má-fé.[9]

A má-fé também foi associada ao conhecimento da ilicitude, compondo, junto com o dolo, o elemento subjetivo do ato de improbidade administrativa.[10] Em consequência, a acumulação remunerada de cargos públicos, devidamente amparada por pareceres jurídicos sustentando a juridicidade da contratação, consubstanciaria mera irregularidade, não ato de improbidade administrativa, isso em razão da ausência de dolo ou má-fé por parte do contratado.[11] Igual entendimento prevaleceu em relação a professores que requereram, administrativamente, progressão profissional com base em diplomas de mestrado ainda não convalidados no Brasil, isso porque, no seu entender, a exigência somente seria necessária para fins acadêmicos.[12] E, ainda, contratações temporárias, ao arrepio da Constituição e da legislação federal de regência, mas realizadas com base em lei municipal autorizadora, denotariam a ausência de dolo ou má-fé.[13] Esses exemplos, como se percebe, se ajustam à teoria extremada do dolo, que, no direito penal, incluía sob sua epígrafe a efetiva consciência da ilicitude. Afinal, como o dolo é um fator psicológico, todos os seus elementos teriam natureza similar, de modo que a ausência de real conhecimento da ilicitude o excluiria. Face à dificuldade em se demonstrar a atual consciência da ilicitude, foi desenvolvida a teoria limitada do dolo, exigindo tão somente o potencial conhecimento da ilicitude, que também foi abandonada com o surgimento da teoria finalista da ação, que deslocou a análise dessa consciência do dolo para a culpabilidade (Cf. JESUS, 2002: 475-477). A questão, em consequência, passou a ser contextualizada na reprovabilidade da conduta.

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 Por fim, há julgados em que (a) a ausência de má-fé foi objeto de mera referência, sem qualquer preocupação quanto ao esclarecimento de sua influência no decisum;[14] (b) ficou explícito que o elemento subjetivo do ato de improbidade, na hipótese do art. 11 da Lei nº 8.429/1992, é o dolo, não havendo qualquer referência à má-fé;[15] e c) foi considerado que a manutenção de escolas rurais com poucos alunos, em aparente afronta à economicidade, mas com o nítido propósito de prestigiar o direito à educação, afastaria a má-fé.[16] Nesse último caso, a má-fé foi excluída em razão dos fins visados pelo agente com a prática do ato.

À luz dessas considerações preliminares em torno da funcionalidade da má-fé, o primeiro passo a ser dado para o seu enquadramento dogmático é separá-la do dolo. Ainda que o delineamento da má-fé não prescinda da realização de juízos valorativos por parte do agente público, em rigor técnico, ela não se confunde com o elemento subjetivo do ato de improbidade.


3. O Elemento subjetivo dos atos de improbidade

No âmbito do direito sancionador, há muito está sedimentada a concepção de que a responsabilidade pessoal não prescinde de um liame subjetivo unindo o agente à conduta, e esta ao resultado lesivo. A inexistência desse liame afasta a presença do “menosprezo ou descaso pela ordem jurídica e, portanto, a censurabilidade que justifica a punição (malum passionis ob malum actionis)” - HUNGRIA, 1983: 89. O elemento subjetivo que direcionará esse elo de encadeamento lógico entre vontade, conduta e resultado, com a consequente demonstração da culpabilidade do agente, poderá se apresentar sob duas únicas formas: o dolo e a culpa.

Na senda dos inúmeros estudos já desenvolvidos na seara penal, entende-se por dolo

a vontade livre e consciente dirigida ao resultado ilícito, ou, mesmo, a mera aceitação do risco de produzi-lo. Quando a vontade visa à consecução do resultado, sendo a conduta praticada em razão dele, diz-se que o dolo é direto (teoria da vontade), o qual será tão mais grave quanto mais vencível era o impulso que direcionou o agente ao ilícito. Nos casos em que a vontade preveja a provável consecução do resultado, mas, apesar disso, a conduta é praticada, consentindo o agente com o advento daquele, fala-se em dolo eventual (teoria do consentimento). A culpa, por sua vez, é caracterizada pela prática voluntária de um ato sem a atenção ou o cuidado normalmente empregados para prever ou evitar o resultado ilícito.

Ainda que en passent, cumpre distinguir a denominada culpa consciente do dolo eventual. Neste último, o agente prevê o resultado provável de sua conduta e consente com a sua ocorrência. Na culpa consciente, por sua vez, o resultado é igualmente previsto, mas o agente espera sinceramente que ele não ocorra, confiando na eficácia de uma habilidade que será utilizada na prática do ato.

A Lei nº 8.429/1992 agrupou a tipologia dos atos de improbidade em três dispositivos distintos. O art. 9º versa sobre os atos que importam em enriquecimento ilícito, o art. 10 sobre aqueles que causam prejuízo ao erário (rectius: patrimônio público) e o art. 11 sobre os atos que atentam contra os princípios regentes da atividade estatal. Somente o art. 10 se refere ao elemento subjetivo do agente, sendo expresso ao falar em “qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa”, enquanto que os dois outros preceitos nada dispõem a respeito. Partindo-se da premissa de que a responsabilidade objetiva pressupõe normatização expressa nesse sentido, constata-se que: a) a prática dos atos de improbidade previstos nos arts. 9º e 11 exige o dolo do agente; b) a tipologia inserida no art. 10 admite que o ato seja praticado com dolo ou com culpa; e c) o mero vínculo objetivo entre a conduta do agente e o resultado ilícito não é passível de configurar a improbidade.

Diz-se que os ilícitos previstos nos arts. 9º e 11 não admitem a culpa em razão de dois fatores. De acordo com o primeiro, a reprovabilidade da conduta somente pode ser imputada àquele que a praticou voluntariamente, almejando o resultado lesivo, enquanto que a punição do descuido ou da falta de atenção pressupõe expressa previsão legal, o que se encontra ausente na hipótese. No que concerne ao segundo, tem-se um fator lógico-sistemático de exclusão, pois, tendo sido a culpa prevista unicamente no art. 10, afigura-se evidente que a mens legis é restringi-la a tais hipóteses, excluindo-a das demais.

Face às características ostentadas pelo elemento subjetivo dos atos de improbidade, pode-se afirmar que o seu delineamento sempre antecede qualquer investigação em torno da má-fé do agente público. Tal ocorre justamente porque é o elemento subjetivo que vai estabelecer o vínculo entre o agente público e a conduta considerada ilícita. A má-fé, por sua vez, contribuirá para a aferição da reprovabilidade, ou não, de sua conduta, justificando, ou não, a incidência do sistema sancionador veiculado pela Lei nº 8.429/1992, o qual, como todo e qualquer sistema, não prescinde de coerência (Kohärenz) interna e externa – SEELMANN, 2007: 57. Outra constatação é que a má-fé, por consubstanciar um juízo valorativo negativo e, portanto, reprovável, vinculando o agente ao resultado de sua conduta, somente se compatibiliza com o atuar doloso. Em outras palavras, tratando-se de ato de improbidade culposo, tal qual previsto no art. 10 da Lei nº 8.429/1992, a aferição da reprovabilidade de sua conduta deverá considerar elementos outros que não a má-fé, isso porque a culpa reflete o mero descumprimento do dever de cuidado, não uma conduta direcionada à inobservância dos standards de correção jurídico-moral sedimentados no ambiente social.

Na atualidade, um dos grandes desafios a serem enfrentados é compatibilizar a relevância atribuída à má-fé com a escusa da incompetência, não raro invocada pelos agentes públicos que têm sua conduta enquadrada na Lei nº 8.429/1992. Conquanto seja exato afirmar que a idéia de incompetência mais se ajusta ao conceito de culpa, não podemos esquecer que o dever de eficiência emana das normas constitucionais, alcançando tantos quantos se habilitem a desempenhar um munus público. A escusa de incompetência, assim, deve ser reconhecida com certa parcimônia, evitando-se, com isso, a sua vulgarização.

   Para se aferir o exato momento em que a má-fé deve ser considerada, afigura-se útil lembrarmos os contornos básicos do iter de individualização dos atos de improbidade (Cf. GARCIA e ALVES, 2011: 347-351).


4.  O iter de individualização dos atos de improbidade

A tipologia dos atos de improbidade, tal qual prevista na Lei nº 8.429/1992, se desenvolve sob a ótica de três conjuntos de ilícitos, os quais possuem uma origem comum: a violação aos princípios regentes da atividade estatal. Para a subsunção de determinada conduta à tipologia do art. 9º da Lei de Improbidade, é necessário que tenha ocorrido o enriquecimento ilícito do agente ou, em alguns casos, que ele tenha agido visando ao enriquecimento de terceiros. O enriquecimento ilícito, por sua vez, será necessariamente precedido de violação aos referidos princípios, já que a conduta do agente certamente estará eivada de forte carga de ilegalidade e imoralidade. Tratando-se de ato que cause lesão ao patrimônio público, consoante a tipologia do art. 10 da Lei nº 8.429/1992, ter-se-á sempre a prévia violação aos princípios regentes da atividade estatal, pois, como visto, a lesão deve ser causada por um ato ilícito, e este sempre redundará em inobservância dos princípios. Por derradeiro, o art. 11 da Lei nº 8.429/1992, normalmente considerado pela doutrina como norma de reserva, tipificou, como ato de improbidade, a mera inobservância dos princípios.

Para que um agente público possa sofrer as sanções cominadas na Lei nº 8.429/1992, é necessária a realização de cinco operações básicas, sendo a presença da má-fé aferida na última delas.

Face à própria sistemática constitucional, que reconheceu a normatividade de regras e princípios, é natural que a aferição da prática, ou não, de um ato de improbidade, comece pela avaliação da juridicidade da conduta. É nesse momento que será verificada a possível valoração das normas de regência, com especial realce para os princípios da legalidade e da moralidade.  Tal interpretação está em perfeita harmonia com a teleologia da Lei nº 8.429/1992 e a sistemática legal, isso porque os atos de improbidade devem ser punidos independentemente da efetiva ocorrência de dano ao erário (art. 21, I, da Lei nº 8.429/1992); a violação aos princípios constitui hipótese autônoma de improbidade (art. 11); o dano ao erário (art. 10) só configura a improbidade quando o agente viole os princípios norteadores de sua atividade, já que o prejuízo financeiro encontra-se ínsito em muitas atividades estatais, em especial as de cunho econômico (v.g.: intervenções do Banco Central no mercado financeiro); e o enriquecimento ilícito, por sua vez, é a mais vil das formas de improbidade, sendo nítida a violação ao princípio da moralidade.

A segunda operação a ser realizada busca identificar o elemento volitivo do agente. Todos os atos emanados dos agentes públicos e que estejam em dissonância dos princípios norteadores da atividade estatal serão informados por um elemento subjetivo, o qual veiculará a vontade do agente na prática do ato. Identificada a presença de vontade livre e consciente de praticar o ato que viole os princípios regentes da atividade estatal, dir-se-á que o ato é doloso, o mesmo ocorrendo quando o agente, prevendo a possibilidade de violá-los, assuma tal risco com a prática do ato. O ato será culposo quando o agente não empregar a atenção ou a diligência exigida, deixando de prever os resultados que adviriam de sua conduta por atuar com negligência, imprudência ou imperícia. Como se disse, apenas o art. 10 da Lei nº 8.429/1992 admite a forma culposa.

Constatada a violação aos princípios regentes da atividade estatal e identificado o elemento volitivo do agente, deve ser aferido se a sua conduta gerou efeitos outros, o que importará em modificação da tipologia legal que alcançará o ato. No caso de pura violação à juridicidade, ter-se-á a subsunção da conduta à figura do art. 11 da Lei nº 8.429/1992; tratando-se de ato que tenha igualmente acarretado dano ao patrimônio público, as atenções se voltarão para o art. 10; e, em sendo divisado o enriquecimento ilícito, a matéria será regida pelas figuras do art. 9º. Verificando-se que o ato, além de violar os princípios, a um só tempo importou em enriquecimento ilícito do agente e causou dano ao erário, a operação de subsunção há de ser complementada com o fim buscado pelo agente. Aqui, será normalmente constatado que o agente pretendia se enriquecer de forma ilícita, tendo, por via reflexa, causado danos ao patrimônio público. Neste caso, a figura do art. 9º da Lei nº 8.429/1992 deverá prevalecer, sendo essa conclusão robustecida pela natureza das sanções cominadas nos incisos I e II do seu art. 12, em que, no caso de enriquecimento ilícito, são cominadas as sanções de “perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio” e “ressarcimento integral do dano, quando houver”; e, nas situações de dano ao erário, são previstas as sanções de “ressarcimento integral do dano” e “perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, se ocorrer esta circunstância”. Acresça-se, ainda, que, em regra, as figuras do art. 9º preveem o enriquecimento ilícito do próprio agente público, enquanto que no art. 10 quem se enriquece ilicitamente é o terceiro, sendo esta a consequência advinda do dano causado ao patrimônio público. Como se vê, não passou despercebida ao legislador a circunstância de um mesmo ato poder se subsumir a mais de uma norma repressiva, o que é constatado pela referência ao ressarcimento integral do dano (quando houver) dentre as sanções cominadas aos atos que importem em enriquecimento ilícito e na previsão da sanção de perda de bens (se ocorrer esta circunstância) dentre aquelas cominadas às condutas que causem dano ao patrimônio público.

A quarta operação busca verificar se os sujeitos ativo e passivo do ato podem ser enquadrados na Lei nº 8.429/1992. Dispõe o seu art. 1º que somente estarão sujeitos às sanções previstas nessa Lei aqueles atos praticados por agentes públicos em detrimento das entidades ali enumeradas. Constatada a inexistência de vínculo entre o responsável pelo ato e qualquer dos entes elencados no art. 1º, não há que se falar em aplicação da Lei nº 8.429/1992, o mesmo ocorrendo quando inexistir correspondência entre as qualidades dos sujeitos ativo e passivo e aquelas previstas em lei.

Realizadas as quatro operações anteriormente referidas, ter-se-á o que se pode denominar de “improbidade formal”. Até aqui, a atividade valorativa do operador do direito

limitou-se à construção de um elo comparativo entre a conduta e a Lei nº 8.429/1992. Constatada a dissonância, passou-se a uma operação mecânica de subsunção da conduta à tipologia legal. Essa etapa, no entanto, deve ser complementada com a utilização do critério de proporcionalidade, permitindo que coexistam, lado a lado, “improbidade formal” e “improbidade material”. Com isso, será possível afastar a incidência da Lei nº 8.429/1992 em situações que não apresentem nenhuma potencialidade lesiva, não permitindo, desse modo, o próprio enfraquecimento de sua credibilidade. Evitar-se-á, assim, que agentes que utilizem uma folha de papel da repartição em seu próprio benefício; que, inadvertidamente, joguem ao lixo uma caneta ainda em uso; ou, tão-somente por figurarem como autoridades coatoras em um mandado de segurança cuja ordem venha a ser deferida, sejam intitulados de ímprobos. Como dissemos, é nesse momento que será considerada a presença, ou não, da má-fé.

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Sobre o autor
Emerson Garcia

Membro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GARCIA, Emerson. A relevância da má-fé no delineamento da improbidade administrativa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4132, 24 out. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/32855. Acesso em: 24 abr. 2024.

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