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A relevância da má-fé no delineamento da improbidade administrativa

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24/10/2014 às 13:18
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5. A má-fé e o critério de proporcionalidade na incidência da Lei nº 8.429/1992

A estruturação da tipologia dos atos de improbidade denota uma evidente colisão entre direitos fundamentais do agente público (cidadania, patrimônio e livre exercício da profissão) e bens jurídicos do Estado (patrimônio público e normatização disciplinadora da conduta dos agentes públicos), colisão esta que foi objeto de prévia valoração pelo legislador, que entendeu presentes os pressupostos autorizadores da restrição aos direitos fundamentais do agente público sempre que violados os últimos. Como já observamos, uma interpretação literal do texto legal conduziria à conclusão de que um agente público que anotasse um recado de ordem pessoal em uma folha de papel da repartição pública incorreria nas sanções do art. 12, II, da Lei nº 8.429/1992, já que causara prejuízo ao erário. Situação parecida ocorreria com aquele que recebesse um confeito de um particular ou se utilizasse de um grampo da repartição para prender documentos pessoais e levá-los para a sua residência, pois estaria sujeito às sanções do art. 12, I, em virtude do enriquecimento ilícito.

Tais exemplos demonstram, prima facie, a flagrante desproporção entre a conduta do agente que viole os princípios norteadores de sua atividade e as consequências que adviriam da aplicação indiscriminada da Lei nº 8.429/1992. Em razão disso, afigura-se necessário o estabelecimento de critérios passíveis de demonstrar a configuração da improbidade administrativa em sua acepção material, evitando-se a realização de uma operação mecânica de subsunção do fato à norma.

À atividade de concreção dos valores previamente prestigiados pelo legislador, in abstrato, devem ser opostos limites, isso sob pena de se transmudar uma legitimidade de direito em uma ilegitimidade de fato. É com esse objetivo que deve ser utilizado o critério de proporcionalidade na aplicação da Lei nº 8.429/1992. A sua utilização exige que o operador do direito realize uma valoração responsável da situação fática, o que garantirá uma relação harmônica entre os fins da lei e os fins que serão atingidos com a sua aplicação ao caso concreto. Somente assim será possível dizer que a lei restritiva de direitos fundamentais manteve-se em harmonia com os limites constitucionais, não incursionando nas veredas da despropositada aniquilação desses direitos.

Em linhas gerais, o critério de proporcionalidade será observado com a verificação dos seguintes fatores: a) adequação entre os preceitos da Lei nº 8.429/1992 e o fim de preservação da probidade administrativa (rectius: juridicidade administrativa), salvaguardando o interesse público e punindo o ímprobo; b) necessidade dos preceitos da Lei nº 8.429/1992, os quais devem ser indispensáveis à garantia da probidade administrativa; c) proporcionalidade em sentido estrito, o que será constatado a partir da proporção entre o objeto perseguido e o ônus imposto ao atingido, vale dizer, entre a preservação da probidade administrativa, incluindo as punições impostas ao ímprobo, e a restrição aos direitos fundamentais (livre exercício da profissão, liberdade de contratar, direito de propriedade etc.).

Em um primeiro plano, entendemos ser indiscutível a adequação da Lei nº 8.429/1992 à garantia da probidade administrativa, não só quanto à natureza das condutas previstas na tipologia legal, como também em relação às sanções cominadas. Assim, a atenção deve de se voltar para a necessidade de utilização dos comandos legais e para o princípio da proporcionalidade em sentido estrito.

A prática de atos que importem em insignificante lesão aos deveres do cargo, ou à consecução dos fins visados, é inapta a delinear o perfil do ímprobo, isso porque, afora a insignificância do ato, a aplicação das sanções previstas no art. 12 da Lei nº 8.429/1992 ao agente acarretaria lesão maior que aquela que ele causara ao ente estatal, culminando em violar a relação de segurança que deve existir entre Estado e indivíduo.

Determinadas condutas, não obstante a flagrante inobservância da norma, não devem ser objeto de valoração isolada, hermeticamente separadas do contexto em que surgiram e se desenvolveram. A norma, em essência, qualquer que seja ela, visa a preservar o equilíbrio e a estabilidade sociais, terminando por cominar determinadas sanções àqueles que causem alguma mácula aos valores tutelados. Identificados os fins da norma, torna-se tarefa assaz difícil sustentar sua aplicação ao agente que manteve uma conduta funcional compatível com os valores que se buscou preservar, ainda que formalmente dissonantes de sua letra. Não é por outra razão que vícios meramente formais, desconectados do bem jurídico que se pretende proteger, não configurarão a improbidade administrativa.

Verificado que a aplicação da Lei nº 8.429/1992 é desnecessária à preservação da probidade administrativa, que não fora sequer ameaçada pela conduta do agente, não deve ser ela manejada pelo operador do direito. Eventualmente, ao agente poderão ser aplicadas sanções outras, desde que compatíveis com a reprovabilidade de sua conduta e com a natureza dos valores porventura infringidos (v.g.: aplicação de advertência ao servidor que tenha descumprido o seu horário de trabalho).

À improbidade formal[17] deve estar associada a improbidade material, que não restará configurada quando a distorção comportamental do agente importar em lesão ou enriquecimento de ínfimo ou de nenhum valor, bem como quando a inobservância dos princípios administrativos, além daqueles elementos, importar em erro de direito escusável ou não assumir contornos aptos a comprometer a consecução do bem comum.

Tais circunstâncias devem ser aferidas a partir da natureza do ato, da preservação do interesse público e da realidade social,[18] o que permitirá uma ampla análise do comportamento do agente em cotejo com o fim perseguido pelo Constituinte com a edição dos arts. 15, V, e 37, § 4º, qual seja, que os agentes públicos respeitem a ordem jurídica, sendo justos e honestos, tudo fazendo em prol da coletividade.

Deve ser aqui adotada a técnica utilizada no direito germânico para a identificação da “justa medida” na restrição aos direitos fundamentais. De acordo com Scholler (1999: 102), “na aferição da constitucionalidade de restrições aos direitos fundamentais, o Tribunal Federal Constitucional (Alemão) acabou por desenvolver, como método auxiliar, ‘a teoria dos degraus’ (Stufentheorie) e a assim denominada ‘teoria das esferas’ (Sphänrentheorie). De acordo com a primeira concepção, as restrições a direitos fundamentais devem ser efetuadas em diversos degraus. Assim, por exemplo, já se poderá admitir uma restrição na liberdade de exercício profissional (art. 12 da Lei Fundamental) por qualquer motivo objetivamente relevante (aus jedem sachlichen Grund), ao passo que no degrau ou esfera mais profunda, o da liberdade de escolha da profissão, tida como sendo em princípio irrestringível, uma medida restritiva apenas encontrará justificativa para salvaguardar bens e/ou valores comunitários de expressiva relevância de ameaças concretas, devidamente comprovadas, ou pelo menos altamente prováveis”.

Apesar de inexistirem critérios rígidos e objetivos para a determinação dos fatores que concorrerão para a identificação da relação de proporcionalidade entre a conduta praticada e a incidência da Lei nº 8.429/1992, é possível estabelecermos algumas diretrizes argumentativas. É o que ocorre, por exemplo, quando (1) a violação à juridicidade não desbordou o plano das formas, sendo preservada a essência dos valores protegidos; (2) o dano causado ou o benefício auferido pelo agente foi ínfimo (na verdadeira acepção da palavra, v.g.: destruição de uma folha de papel comum, utilização de um grampo para fins privados etc.), (3) o ato atingiu (quase) in totum o fim previsto na norma, praticamente afastando a reprovabilidade da conduta, ao menos no plano sancionador, (4) foram realizados objetivos de evidente interesse público; (5) não foram violados interesses individuais; (6) no contexto em que o ato foi praticado, o erro de direito era plenamente escusável; e (7) o agente não agiu com má-fé, nela compreendida tanto a indiferença em relação ao conhecimento da ilicitude da conduta, como o propósito manifesto de não realizar o bem comum. Essas diretrizes argumentativas, como é intuitivo, não podem ser analisadas de modo isolado. Pelo contrário, devem atuar concorrentemente na aferição do critério de proporcionalidade, permitindo seja alcançada a conclusão de que a aplicação da Lei nº 8.429/1992 apresentará nítida desproporção com o ato, estando ausente a proporcionalidade em sentido estrito, pois o ônus imposto ao agente em muito superará a lesividade de sua conduta.

A má-fé, como se percebe, não é o epicentro estrutural do ato de improbidade administrativa. É, tão somente, um dos fatores a serem levados em consideração para a aplicação da Lei nº 8.429/1992. Além dos atos de improbidade culposos, que prescindem da má-fé para a sua configuração, é perfeitamente possível que um ato praticado com absoluta boa-fé justifique a incidência da Lei nº 8.429/1992. Basta se pensar na hipótese de um Prefeito Municipal que, descumprindo voluntariamente a legislação de regência, destine recursos afetos à educação para a construção, na única praça pública existente na localidade, de um monumento em prol da família, o que leva à extinção da referida área de lazer. Nesse exemplo, apesar de o Chefe do Executivo ter atuado dolosamente, era evidente a sua boa-fé, sendo direcionado pelo nobre objetivo de exortar a importância da família. No entanto, mesmo, assim, estará caracterizado o ato de improbidade. E isso pelas seguintes razões; (1) foi maculada a juridicidade; (2) foi comprometido o atendimento do direito à educação; (3) a receita disponível foi integralmente direcionada a um fim que, embora de interesse público, não ostentava igual importância para a coletividade; (4) é evidente o dano causado à coletividade, que se viu privada do serviço de educação e ainda perdeu a área de lazer; e (5) a área de lazer precisará ser recomposta, o que, à míngua de outra área específica, causará prejuízo financeiro à Administração Pública em decorrência da demolição do monumento.

É factível que todo ser humano pode ter boas intenções, mas, em se tratando de agentes públicos, as boas intenções hão de se desenvolver com observância dos balizamentos oferecidos pela legislação de regência, não de acordo com o seu alvedrio. Note-se, ainda, que as escusas da ignorância e da incompetência devem ser recepcionadas com cuidado. Afinal, por dever de ofício, o agente público, diversamente do particular, somente pode fazer o que a norma de conduta o autorize, o que lhe impõe o dever de conhecê-la. E, dentre essas normas, está o princípio constitucional da eficiência.

Não sendo identificada a prática de um ato objetivamente relevante, não se poderá ascender, sequer, ao “primeiro degrau” da escala de restrição dos direitos, o qual seria atingido com a mera aplicação da Lei nº 8.429/1992. Os “degraus subseqüentes”, por sua vez, serão galgados na medida em que for identificada a relevância do ato, valorada a sua potencialidade lesiva e constatada a reprovabilidade da conduta do agente, o que permitirá seja aferida a sanção que se afigura mais justa ao caso. Nos casos de improbidade meramente formal, restará a incidência das sanções de ordem política ou administrativa, de natureza e grau compatíveis com a reprovabilidade do ato.

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Tal linha de raciocínio, desde que não venha a ser deturpada – risco, infelizmente, sempre existente – permitirá o estabelecimento de uma relação de congruência entre a conduta do agente, a Lei nº 8.429/1992 e a Constituição da República, evitando-se a desproporcional restrição dos direitos fundamentais.


Conclusões

A argumentação apresentada nos permite concluir que, no âmbito da improbidade administrativa, (a) a má-fé não integra o elemento subjetivo do agente, não se confundindo com o dolo; (b) dentre os fatores que concorrem para a aferição do critério de proporcionalidade, na incidência da Lei nº 8.429/1992, está a má-fé; (c) é possível a configuração do ato de improbidade ainda que o agente público tenha atuado com boa-fé, o que pode ocorrer no caso de culpa ou quando os demais fatores que concorrem para o delineamento do critério de proporcionalidade indiquem a reprovabilidade da conduta.


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Sobre o autor
Emerson Garcia

Membro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GARCIA, Emerson. A relevância da má-fé no delineamento da improbidade administrativa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4132, 24 out. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/32855. Acesso em: 2 nov. 2024.

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