6. PRINCÍPIOS OBSTANTES À CRIMINALIZAÇÃO
Primeiramente, é preciso pontificar as razões por que a criminalização não é aqui enfatizada a partir de todos os princípios penais, antes da análise daqueles a partir dos quais será.
O motivo de operar a análise tendo como bases apenas o princípio da Ultima Ratio (ou da Intervenção Mínima), e a possível suficiência do atual ordenamento jurídico-penal para punição das condutas que se pretende criminalizar, que surge do princípio da Legalidade, é o fato de permitirem uma análise mais profunda que os demais tendo em vista o fator “necessidade de criminalizar”, e não os elementos que advenham da prática dos atos previstos, como a pena e seu caráter proporcional e humano; ou a ofensividade e culpabilidade, que surgem da prática em um caso determinado. Estas formas de análise fariam mais sentido se a conduta já estivesse tipificada.
De fato, é possível traçar um paralelo entre todos os princípios de Direito Penal e uma determinada norma e sua aplicação. No entanto, nem todos se relacionam com o mesmo momento de utilização norma: alguns se relacionam com o momento em que a conduta nela prevista é apurada, como os princípios da ofensividade e da culpabilidade; outros se relacionam com o momento de aplicação e cumprimento da pena cominada no tipo, seria o caso dos princípios da proporcionalidade e da irretroatividade da lei penal.
Um princípio que poderia ser passível de análise é o da adequação social. Prado (2005, p. 31), a respeito deste, leciona que “apesar de uma conduta se subsumir ao modelo legal, não será considerada típica se for socialmente adequada, isto é, se estiver de acordo com a ordem social da vida historicamente condicionada”. É o caso dos pais que perfuram as orelhas de filha recém nascida para colocar brincos, por exemplo. Há a lesão corporal, mas é uma conduta socialmente aceita, portanto adequada. Partindo deste princípio, entretanto, não seria necessária análise, pois resta óbvio que a prática da intimidação vexatória é condenável e, portanto, inadequada socialmente. Não há particularidade envolvida no princípio da adequação social, ou nas condutas intimidatórias em geral, capaz de tornar a intimidação vexatória uma conduta socialmente aceita.
Os princípios da Ultima Ratio e da Legalidade revelam-se mais atinentes ao momento anterior à criminalização de determinada conduta e, portanto, são utilizados como instrumentos do presente estudo, através destes princípios é que será caracterizada a necessidade ou não da criminalização do bullying, com a criação da intimidação vexatória proposta através do PLS nº 236 de 2012.
6.1. O PRINCÍPIO DA ULTIMA RATIO E A CRIMINALIZAÇÃO DA INTIMIDAÇÃO VEXATÓRIA
O princípio da Ultima Ratio, ou da Intervenção Mínima, segundo Prado (2005, p. 29) “estabelece que o Direito Penal só deve atuar na defesa dos bens jurídicos imprescindíveis à coexistência pacífica dos homens e que não podem ser eficazmente protegidos de forma menos gravosa”.
Desse modo, a lei penal só deverá intervir quando for absolutamente necessária para a sobrevivência da comunidade, como ultima ratio. E, de preferência, só deverá fazê-lo na medida em que for capaz de ter eficácia. O uso excessivo da sanção criminal não garante uma maior proteção de bens; ao contrário, condena o sistema penal a uma função meramente simbólica e negativa. (PRADO, 2005, p. 29)
O termo latino Ultima Ratio, que significa “última razão”, demonstra a característica do Direito Penal de dever ser acionado apenas quando todas as outras áreas do direito se mostrarem ineficientes a conter e punir determinado comportamento.
Ao legislador o princípio exige cautela no momento de eleger as condutas que merecerão punição criminal, abstendo-se de incriminar qualquer comportamento. Somente aqueles que, segundo comprovada experiência anterior, não puderam ser convenientemente contidos pela aplicação de outros ramos do direito deverão ser catalogados como crimes em modelos descritivos legais. (CAPEZ, 2008, p. 19)
Segundo Greco (2003, p. 50):
O Direito Penal deve interferir o menos possível na vida em sociedade, somente devendo ser solicitado quando os demais ramos do Direito, comprovadamente, não forem capazes de proteger aqueles bens considerados da maior importância.
Esta abordagem direciona a uma análise sobre como se lida com o bullying em outros ramos do direito, mas não apenas isto. Deve-se observar se o tratamento penal da matéria seria eficaz. O princípio da Intervenção Mínima deve servir, também, de sustentáculo da ideia de que a banalização do uso da sanção penal deve ser combatida.
É frequente a afirmação de que a criminalização é a ultima ratio do legislador. A criminalização deve ser empregada como último recurso, o 'meio extremo para casos extremos'. Ao mesmo tempo, é também frequente que na prática este princípio (ou 'pensamento') não é respeitado. A criminalização é normalmente utilizada como o primeiro recurso (sola ratio). (JAREBORG, 2013, p. 60-61)
Uma condenação penal pode se mostrar demasiado onerosa, principalmente para o condenado, e a prisão em lugar de uma punição menos gravosa, mas suficiente, denega qualquer caráter positivo que possa ter a pena, seja no sentido retributivo, ressocializador ou preventivo.
Com propriedade, afirma Calhau (2010, p. 25) que:
A prisão só deve ser destinada para os casos mais graves, mas se o sistema prisional está sobrecarregado porque o sistema informal não funciona bem, ele também vai ficar sobrecarregado e não funcionará como esperamos.
Várias soluções vêm sendo dadas ao bullying através de outras searas do direito, satisfazendo em grande parte esta necessidade de punir o agressor.
No Direito Civil, apresenta-se a figura do dano moral ou patrimonial:
[...]
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
[…]
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. (Código Civil Brasileiro, 2002)
Quando ocorrida a agressão no ambiente de trabalho, pode-se recorrer, a princípio, a sanções administrativas, antes de requerer no âmbito cível ou mesmo criminal. Quando há ofensa contra a dignidade sexual e integridade moral de criança ou adolescente, além do próprio Código Penal, é aplicável o Estatuto da Criança e do Adolescente, como exemplo:
Art. 232. Submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a vexame ou a constrangimento:
Pena - detenção de seis meses a dois anos. (Estatuto da Criança e do Adolescente, 1990)
Neste âmbito de proteção, leciona Rossato (2012):
Os Conselhos Tutelares, por sua vez, têm por missão zelar pela observância dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes, sendo um órgão muito próximo da população e que tem condições de conhecer de seus problemas, propiciando o atendimento inicial e cumprindo o princípio da desjudicialização do atendimento.
Esta desjudicialização parte da Lei 12.594 de 2012, que institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), e prevê:
Art. 35. A execução das medidas socioeducativas reger-se-á pelos seguintes princípios:
[…]
II - excepcionalidade da intervenção judicial e da imposição de medidas, favorecendo-se meios de autocomposição de conflitos;
Quando todos os outros recursos anteriores aos judiciais e, no âmbito judicial, aqueles anteriores ao do Direito Penal, se mostrem ineficientes, deixando de abranger particularidades de determinadas condutas, deve-se considerar a possibilidade do próprio ordenamento jurídico-penal já ser suficiente à punição da conduta sem a necessidade de criação de um novo tipo penal. Para tanto, invoca-se o princípio da Legalidade.
6.2. O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE E A POSSÍVEL SUFICIÊNCIA DO ATUAL ORDENAMENTO JURÍDICO-PENAL
O princípio da Legalidade, ou da Reserva Legal, tem fundamento constitucional expresso.
Art. 5º […]
XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal; (Constituição Federal Brasileira, 1988)
Segundo Toledo (2000, p. 22), o princípio:
Funda-se na ideia de que há direitos inerentes à pessoa humana que não são, nem precisam ser outorgados pelo Estado. Sendo assim, e como não se pode negar ao Estado o poder de estabelecer certas limitações e proibições, o que não estiver proibido está permitido. Daí a necessidade de editarem-se proibições casuísticas, na esfera penal, o que, segundo o princípio em exame, compete exclusivamente à lei.
Para Batista (2002, p. 67), “além de assegurar a possibilidade do prévio conhecimento dos crimes e das penas, o princípio garante que o cidadão não será submetido a coerção penal distinta daquela predisposta na lei.”
Greco (2003, p. 104), leciona que, “por intermédio da lei, existe a segurança jurídica do cidadão de não ser punido se não houver uma previsão legal criando o tipo incriminador, ou seja, definindo as condutas proibidas, sob a ameaça de sanção”.
Nas lições de Batista (2002, p. 68-97), são quatro as funções do princípio da legalidade, quais sejam: proibir a retroatividade da lei penal; proibir a criação de crimes e penas pelo costume; proibir o emprego de analogia para criar crimes, fundamentar ou agravar as penas; e proibir incriminações vagas e indeterminadas. Ora, se há proibição quanto a estes fatores, que dirá com relação à criação de tipo penal que se confunda com um já existente.
Roxin (1997, p. 169, apud Bitencourt, 2012, p. 49) afirma que “uma lei indeterminada ou imprecisa e, por isso mesmo, pouco clara não pode proteger o cidadão da arbitrariedade, porque não implica uma autolimitação do ius puniendi estatal, ao qual se possa recorrer”.
Para que o princípio da legalidade seja, na prática, efetivo, cumprindo com a finalidade de estabelecer quais são as condutas puníveis e as sanções a elas cominadas, é necessário que o legislador penal evite ao máximo o uso de expressões vagas, equívocas ou ambíguas. (BITENCOURT, 2012, p. 49)
Assim, torna-se essencial que o legislador se abstenha de favorecer a ambiguidade em lugar da clareza. O cuidado ora insurgido é no sentido de que algumas condutas que se pretende criminalizar não se confundam com as então previstas no atual Código Penal. Exemplo de expressão vaga é o trecho “causando sofrimento físico, psicológico ou patrimonial”, presente na intimidação vexatória. A grande maioria dos crimes, se não todos, causam alguma forma de sofrimento físico, psicológico ou patrimonial/material.
Observando-se os termos “ameaçar” e “intimidar”, que se pretende tipificar, é possível identificá-lo com o crime de ameaça previsto no art. 147 do Código Penal.
Ameaça
Art. 147 - Ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave:
Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.
Parágrafo único - Somente se procede mediante representação. (Código Penal Brasileiro, 1940)
A conduta "ameaçar" da intimidação vexatória pode ser enquadrada no crime de ameaça já existente e nada obsta que sob as mesmas condições a que aquela está submetida, podendo caracterizar-se a ambiguidade.
O mesmo pode ocorrer entre os termos “ofender” da intimidação vexatória e o já existente crime de injúria.
Injúria
Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:
Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa. (Código Penal Brasileiro, 1940)
Relevante observar que há a possibilidade de resolução dos conflitos aparentes das normas penais, mas o que se aponta, tendo em vista o princípio da Reserva legal, é o fato de que, além de haver a possibilidade de resolução de alguns crimes que ocorram na forma da intimidação vexatória pelo atual ordenamento jurídico-penal, deve-se atentar para as generalidades e dubiedades que possam advir da tipificação tal como é proposta.
Justificando o exposto, ponderam Zaffaroni e Pierangeli (2006, p. 72) que:
[…] a constatação de que a solução punitiva sempre importa num grau considerável de violência, ou seja, de irracionalidade, além da limitação do seu uso, impõe-se, na hipótese em que se deva lançar mão dela, a redução, ao mínimo, dos níveis de sua irracionalidade.
CONCLUSÃO
A criminalização do bullying, na figura da intimidação vexatória, não demonstra ser o caminho mais hábil à sua repressão. Nem sempre o intimidador deverá ser considerado como criminoso. A estigmatização decorrente da condenação criminal é o que, de fato, o tornará um.
Eluf (2012), posicionando-se claramente favorável à criminalização da conduta, prediz:
Alguns argumentam que deveríamos deixar a cargo das escolas e dos pais de alunos a solução desse problema, e não transformá-lo em caso de polícia. No entanto, está evidente que, muitas vezes, nem as escolas nem as famílias têm conseguido lidar adequadamente com o bullying.
Considerando esse ponto de vista, toda e qualquer responsabilidade primária da família e da escola com que estas não consigam lidar adequadamente seria remetida ao âmbito criminal. Esse raciocínio, mais que precipitado, é intransigente e não condiz com as reais funções do Direito Penal. Nossa sociedade conserva a essência de absoluta dependência do poder estatal para a dizimação de quaisquer ameaças às liberdades pessoais, mesmo que através de medidas imediatistas que sobrecarregam um sistema já precário, tornando-o muito mais ineficiente do que o contrário.
Discordante à criminalização, Rossato (2012) propõe que:
[...] a criminalização da conduta não será medida que inibirá a prática do bullying, mas a adoção de outras práticas que utilizem os recursos existentes na comunidade e as técnicas que conduzam à solução efetiva dos conflitos.
O confrontamento da matéria com os princípios da Ultima Ratio e da Legalidade evidenciou a desnecessidade de criminalizar a conduta. Por aquele princípio, pelo fato de ser possível o enfrentamento da intimidação vexatória por outros meios anteriores ao criminal; e por este, por ser possível a tutela do bem jurídico, quando estritamente necessária, pelos institutos de Direito Penal já elencados no Código Penal.
Embora seja sabido que o conflito aparente de normas penais, que poderia advir da tipificação da conduta que se pretende, possa ser resolvido por meio dos princípios direcionados a tal, cabe ao legislador evitar a ocorrência de tais conflitos com a criação de uma norma clara e precisa, livre de dubiedades e obscuridades.
Entretanto, antes mesmo de se idear a punição da violência em tela enquadrando-a nos dispositivos do Código Penal Brasileiro, deve-se buscar a proteção do bem jurídico nas diversas outras esferas de controle social, seja o meio escolar ou administrativo, por exemplo, e, quando necessária a tutela jurídica, que o âmbito de direito privado anteceda ao público. O dano moral que pode ser pleiteado no âmbito cível é um meio muitas vezes suficiente à punição dessa forma de agressão, além de mostrar-se uma medida muito menos intrusiva e radical que a condenação criminal. Há vários julgados que responsabilizam o agressor, ou mesmo o responsável pelo ambiente de ocorrência que negligencia a situação, pelo dano ocorrido.
O bullying merece um tratamento que preceda o criminal, mas não só. Apesar da aparente trivialidade em elucidar o papel das políticas públicas nesse tipo de análise, é fundamental que políticas educacionais sejam direcionadas à matéria, principalmente pelo fato deste tipo de conduta ter surgido e se alastrar com maior impacto no ambiente escolar. É incoerente que o legislador direcione uma sanção criminal a uma conduta tipicamente infantojuvenil, já que estes são penalmente inimputáveis. Pelo princípio da Pessoalidade da Pena, constitucionalmente previsto no art. 5°, XLV, "nenhuma pena passará da pessoa do condenado [...]". Assim, as penas cominadas aos atos praticados pelo menor infrator não podem (e com razão) serem direcionadas aos seus responsáveis, o que torna materialmente inútil e nada mais que onerosa a criminalização da intimidação vexatória.