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A atuação dos magistrados no julgamento das bruxas:

uma análise histórica do processo e da perseguição às mulheres nos séculos XVI e XVII

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21/10/2014 às 11:22
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5. Conclusão:

O presente artigo apresentou uma visão geral do processo inquisitivo da Europa Ocidental nos séculos XVI e XVII, dando ênfase à forma peculiar de atuação dos magistrados no período da “caça às bruxas”, o que teria contribuído diretamente para que muitas mulheres fossem condenadas e queimadas na fogueira, sem qualquer chance de defesa.

Ao contrário do que poderia parecer num primeiro momento, não foram apenas as características típicas do Sistema Inquisitivo vigorante à época, como, por exemplo, a confusão entre os papéis de acusador e julgador, que inviabilizaram o exercício do direito de defesa das mulheres suspeitas de bruxaria e facilitaram inúmeras condenações à morte.

 Conforme se demonstrou ao longo deste estudo, as condenações pelo crime de bruxaria se deveram também ao tratamento ainda mais rígido e peculiar dado pelos juízes aos referidos casos.

Os juízes inquisidores não consideravam o seu interlocutor naquele tipo específico de processo como um acusado comum, havendo sempre o fundado receio de serem enganados pelas supostas “mentiras satânicas”, pelas “manobras do Diabo”.

Essa postura seria decorrente da propagação das obras de demonologia, cujo discurso jurídico teleológico estabeleceu uma profunda conscientização da magistratura da época (camada erudita da sociedade) acerca da existência da feiticeira e da necessidade de sua identificação e repressão severa, especialmente na França e Europa Ocidental dos séculos XVI e XVII.

Com efeito, a propagação das “teorias” demonológicas, respaldadas pela autoridade da Igreja, incutiram na mente dos magistrados uma visão bem definida de que agiam por delegação de Deus para cumprir uma missão jurisdicional superior e essencial à salvação das mulheres transviadas pelo diabo nos casos de bruxaria.

 Além da íntima convicção de que estavam agindo em nome de Deus, os magistrados também foram municiados pelos demonólogos de um conhecimento “teórico” e de pré-concepções sobre a bruxaria, as formas de sua identificação e punição, que legitimaram naquele contexto histórico a maneira incisiva de condução da produção das provas e do julgamento.

A confissão era a rainha das provas e o juiz a perseguia com “mãos de ferro” no interrogatório dos acusados de bruxaria, valendo-se, inclusive, da tortura, pois se acreditava que era a forma de salvação da alma do acusado e de sua reconciliação com Deus.

Os nomes das testemunhas eram mantidos em sigilo, pois havia o risco de que os malefícios da bruxa recaíssem sobre aquelas pessoas, seus parentes e seus bens. Os juízes podiam, ainda, fazer deduções tautológicas, contrárias às evidências do processo, tendo em vista que pressupunham em qualquer situação a atuação do diabo para enganar a justiça e livrar seus cúmplices da punição divina.

Ou seja, a condução do processo pelos julgadores se apresentava de forma tão peculiar que dificilmente a mulher acusada de bruxaria conseguia se livrar da condenação e da morte na fogueira.

Enfim, de tudo que foi apresentado neste artigo, percebe-se que, naquele contexto histórico, mesmo que aos olhos da contemporaneidade pareça absurdo, o processo foi considerado válido e os julgamentos justos, amparados em obras teóricas e conceitos amplamente difundidos.

As condenações de mulheres à morte na fogueira nos Séculos XVI e XVII por terem cometido atos de bruxaria, mesmo que desprovidas de provas ou baseadas em confissões obtidas por meios cruéis, foram legitimadas por pré-concepções demonológicas difundidas na sociedade erudita, da qual os magistrados faziam parte, e respaldadas pela autoridade da igreja, sem que existissem vozes capazes de refutá-las com a mesma força.


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Sobre o autor
Daniel Carneiro Machado

Juiz Federal da 21ª Vara da Seção Judiciária de Minas Gerais. Doutor em Direito Processual pela UFMG (2016) e Mestre em Direito Processual pela PUC Minas (2004). Professor titular do curso de graduação em direito do Centro Universitário Newton Paiva, em Belo Horizonte, além de professor de cursos de pós-graduação e preparação para concursos públicos na área jurídica. Ex-Advogado da União e ex-Procurador da Fazenda Nacional em Minas Gerais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACHADO, Daniel Carneiro. A atuação dos magistrados no julgamento das bruxas:: uma análise histórica do processo e da perseguição às mulheres nos séculos XVI e XVII . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4129, 21 out. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/33000. Acesso em: 26 abr. 2024.

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