MENSAGEM: “Minhas sinceras e ANTECIPADAS felicitações pelo dia de hoje («Dia de Finados») para todos os que AINDA estão vivos. Atahualpa."
Imaginemos, por um momento, que eu enviara às pessoas que conheço (familiares, amigos, quase-inimigos e inimigos) uma «Felicitação» como esta. Algum problema? Em absoluto. A verdade, por brutal e desagradável que pareça, não deixa de ser verdade: todos morreremos; todos, cedo ou tarde, desfrutaremos do status de «finado» (ou, para dizer com Manilio: “Nacer es empezar a morir; el último instante de la vida se origina en el primero”)1.
No melhor dos casos, um bom amigo poderia pensar (ou recordar-me) que «as palavras, às vezes, também podem ferir». Claro que podem. Mas podem ferir de duas maneiras: podem burlar-se das coisas que não podemos cambiar e/ou são irrelevantes para a dignidade; ou podem burlar-se de coisas que, embora não afetem nosso valor inerente como ser humano, podem ser perigosas e estar equivocadas. Incluo na primeira categoria minha «Felicitação» e na segunda a crença em ideias ou teorias delirantes.
Agora: Merece dignidade este tipo de «Felicitação»? Nem por assomo. É coisa de descerebrados ou de indivíduos dotados de uma imaginação esquizofrênica vagar pelo mundo confundindo ou tratando «o que é» (um ser humano vivo com capacidade para pensar e sofrer) como «o que será» (um ser humano morto incapaz de pensamento e sofrimento).
Pois bem, semelhante razoamento também pode ser utilizado para abordar o tema, não isento de dramáticas tensões, do direito ao aborto. Me explico: quando o espermatozóide de um homem penetra no óvulo maduro de uma mulher e os núcleos haplóides de ambos gametos se fundem para formar um novo núcleo diplóide, se forma um zigoto que (em circunstâncias favoráveis) pode converter-se no início de uma linhagem celular humano, de um organismo que em suas diversas etapas pode ser, em termos simplificados: mórula, blástula, embrião, feto e, finalmente, um humano «em ato», homem ou mulher. Ainda que estágios de um mesmo organismo, um zigoto não é uma blástula, e um embrião não é um humano. Um embrião é um agrupamento celular, que vive em um meio líquido e é incapaz por si mesmo de ingerir alimentos, respirar ou excretar (isso para não dizer que «lhe» resulta absolutamente impossível sentir ou pensar).
Por certo que o embrião é um ser vivo, mas também o é um mosquito e inlusive uma bactéria. Naturalmente que encerra a portentosa potencialidade de desenvolver-se durante meses até converter-se em um homem ou uma mulher. Mas não passa de uma vida em potencial. Uma criança é um ancião em potencia, mas uma criança não é um ancião nem tem direito à aposentadoria. Um homem vivo é um cadáver em potência, mas um homem vivo não é um cadáver. Enterrar a um homem vivo é algo muito distinto e de muita diversa gravidade que enterrar a um cadáver. Aos vegetarianos, aos que está proibido comer carne, lhes está permitido comer ovos, porque os ovos não são galinhas, ainda que tenham a potencialidade de chegar a sê-lo. Um embrião não é um homem e, portanto, interromper a gravidez (manipulá-lo ou descartá-lo) não é matar a um homem (J. Mosterín).
O aborto, durante as primeiras semanas de gravidez, ou o uso de células-tronco embrionárias em pesquisas não constituem um assassinato. Ademais, uma vez que os embriões humanos nesse período não têm atividade cerebral, não há sequer razão para acreditar que eles possam sentir qualquer tipo de sofrimento, não há possibilidade alguma de atividade psíquica ou vida pessoal, de maneira alguma. Como explica Richard Dawkins, “un embrión humano en estadio temprano, sin sistema nervioso y, presumiblemente, carente de dolor y miedo, podría justificablemente ser objeto de menos protección moral que un cerdo adulto, que está claramente bien equipado para sufrir. Nuestro impulso esencialista hacia definiciones rígidas de "humano" (en los debates sobre el derecho al aborto) y de "vivo" (en los debates sobre la eutanasia y decisiones sobre el fin de vida) no tienen ningún sentido a la luz de la evolución y otros fenómenos gradualistas[…] Científicamente está confundido y moralmente es pernicioso.”
O que quero dizer é que é tão insensato, tresloucado e indigno tratar a um ser humano vivo como um cadáver em potência como atribuir a um embrião a condição de um ser humano em potência. Pensar que cada embrião humano tem uma alma merecedora de preocupação moral, que existe alma em cada um dos blastocistos e que esta deve prevalecer sobre os interesses e a liberdade de uma mulher com capacidade para pensar, sentir, eleger e sofrer é um enorme «sem-sentido», para não dizer um disparate. A eleição do momento oportuno para produzir «milagres» no ventre de uma mulher deve realizá-la essa mulher, não o Estado ou a religião de turno. Por que está bem que sigamos vivendo em um mundo que não deixa de impor às mulheres este tipo de glorificação demencial do sofrimento?
Apesar de tudo isso, estou convencido que entrar em polêmicas com pessoas cujo sistema de crenças é o único que se interpõe entre elas e um comportamento repulsivo resulta uma enorme perda de tempo e até um absurdo de raiz2. Nada do que digam ou sustentem os espíritos mais esclarecidos (amém de alguns Ministros do STF) fará mover nem um milímetro a opinião daqueles que insistem em permanecer, «ad absurdum et ad nauseam», no perigoso reino das ideias e teorias delirantes. Apaga tudo e vamos embora.
Daí porque, em minhas interações com pessoas religiosas e não religiosas por igual, traço uma linha divisória e restritiva, baseada não em suas crenças concretas, senão em seu grau de dogmatismo. Não sei se me explico.
Notas
1 Há, apenas, um «pequeno» matiz no que se refere ao cálculo cristão da «aposta da eternidade»: a promessa de uma recompensa pelas misérias deste mundo, uma esperança de outra vida e retribuição de felicidade celestial no Paraíso, um lugar de delícias absolutas donde já não existem nem a fome nem a sede, nem a maldade nem o tempo, e o único modo de pôr fim ao escândalo da prosperidade do malvado e do infortúnio do justo. O maravilhoso da morte, escreve S. Bossuet citando a Santo Antônio, “es que, para el cristiano, no pone punto final a la vida, sino a los pecados y peligros a los que ha estado expuesto. Al abreviar nuestros días Dios abrevia nuestras tentaciones, es decir, todas las ocasiones de perder la verdadera vida, la vida eterna, puesto que el mundo tan sólo es nuestro común exilio”. Mas, como a «fé» parece não ser suficiente para diminuir nem o «temor» nem a «dor» da morte de alguns devotos, Richard Dawkins faz, com atino, esta sensata reflexão: “Si uno cree de veras en la vida después de la muerte, cómo es que no reacciona como el abad de Ampleforth que, cuando Basil Hume le dijo que estaba moribundo, le repuso: «¡Felicidades, hombre! Es una noticia maravillosa. Me encantaría poder acompañarte»”.
2 Há que ter em conta que quando um tema se moraliza (ou se «politiza») não o deixamos à livre decisão de cada um, senão que consideramos que essa norma moral é de aplicação para todo o mundo. É impossível tratá-lo de uma maneira razoada ou sensata: tomamos uma postura e a partir daí o mundo se divide entre as pessoas boas que pensam como nós e os malvados que pensam distinto.