Direito à saúde: medicamentos, um dever estatal

24/11/2014 às 21:31
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O dever do Estado em fornecer medicamentos encontra limites, quando judicializados, no princípio da separação de poderes, mas não é possível diminuir o direto do cidadão com fundamento na reserva do possível.

O fornecimento de medicamentos pelo Estado diz respeito ao direito fundamental à saúde, intrinsecamente conexo ao direito à vida e ao postulado da dignidade da pessoa humana, constitucionalizado pela Carta de 1988 e previsto como direito social no art. 196 da CF/1988. Trata-se de norma com eficácia potencializada pelo texto constitucional com aplicabilidade imediata (art. 5.º, § 1.º, CF), colmatado, inclusive, como cláusula pétrea (art. 60, § 4.º, CF).

O art. 196 da CF/1988 norteia as diretrizes gerais do direito à saúde, construindo uma verdadeira relação jurídica de direito material entre o cidadão e o Estado, pois a este impõe o dever de assistência e, àquele, um direito subjetivo de ser assistido.

“Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e  ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”

Esse dever estatal é concretizado a partir de políticas públicas, ou seja, programas e ações governamentais que coordenam os recursos e meios à disposição do Estado para atingir os fins garantidos pelo constituinte, sendo incumbência primária do Poder Executivo. No caso da saúde, o objetivo social relevante é reduzir o risco de doença e assegurar o acesso universal e igualitário às ações e serviços para a promoção, proteção e recuperação da saúde.

A Lei Orgânica de Saúde, complementando o texto constitucional, orienta as ações e os serviços públicos de saúde, incluindo no sistema a assistência terapêutica e o fornecimento de medicamentos:

“Art. 6.º Estão incluídas ainda no campo de atuação do Sistema Único de Saúde (SUS):

(...)

d) de assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica;”

Esmiuçando o significado de assistência terapêutica integral, o art. 19-M prevê requisitos para a realização desse direito, em especial, a existência de prescrição médica em conformidade com as diretrizes terapêuticas definidas em protocolo clínico para cada doença:

“Art. 19-M.  A assistência terapêutica integral a que se refere à alínea d do inciso I do art. 6.º consiste em: (Incluído pela Lei 12.401, de 2011)

I – dispensação de medicamentos e produtos de interesse para a saúde, cuja prescrição esteja em conformidade com as diretrizes terapêuticas definidas em protocolo clínico para a doença ou o agravo à saúde a ser tratado ou, na falta do protocolo, em conformidade com o disposto no art. 19-P; (Incluído pela Lei 12.401, de 2011).”

Existente prescrição médica, mas ausente protocolo clínico ou diretrizes terapêuticas, mesmo assim o dever de fornecimento permanece:

“Art. 19-P. Na falta de protocolo clínico ou de diretriz terapêutica, a dispensação será realizada: (Incluído pela Lei 12.401, de 2011)

I – com base nas relações de medicamentos instituídas pelo gestor federal do SUS, observadas as competências estabelecidas nesta Lei, e a responsabilidade pelo fornecimento será pactuada na Comissão Intergestores Tripartite; (Incluído pela Lei 12.401, de 2011)

II – no âmbito de cada Estado e do Distrito Federal, de forma suplementar, com base nas relações de medicamentos instituídas pelos gestores estaduais do SUS, e a responsabilidade pelo fornecimento será pactuada na Comissão Intergestores Bipartite; (Incluído pela Lei 12.401, de 2011)

III – no âmbito de cada Município, de forma suplementar, com base nas relações de medicamentos instituídas pelos gestores municipais do SUS, e a responsabilidade pelo fornecimento será pactuada no Conselho Municipal de Saúde. (Incluído pela Lei 12.401, de 2011).”

Por fim, o art. 28 dispõe sobre o acesso à assistência farmacêutica:

“Art. 28. O acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica pressupõe, cumulativamente:

I – estar o usuário assistido por ações e serviços de saúde do SUS;

II – ter o medicamento sido prescrito por profissional de saúde, no exercício regular de suas funções no SUS;

III – estar a prescrição em conformidade com a RENAME e os Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas ou com a relação específica complementar estadual, distrital ou municipal de medicamentos; e

IV – ter a dispensação ocorrido em unidades indicadas pela direção do SUS.

§ 1.º Os entes federativos poderão ampliar o acesso do usuário à assistência farmacêutica, desde que questões de saúde pública o justifiquem.

§ 2.º O Ministério da Saúde poderá estabelecer regras diferenciadas de acesso a medicamentos de caráter especializado.”

Em suma, o regime jurídico acima exposto tem base constitucional e é complementado por um conjunto de normativas que formam todo o sistema de efetivação das políticas públicas de medicamentos, normas estas que vão desde a vinculação de receitas orçamentárias até a concretização do direito subjetivo da população. Assim, trata-se, em princípio, de atribuição do Poder Executivo gerir todo o sistema concatenando as regras segundo as contingências recorrentes, mas na omissão o direito continua existindo na forma impositiva que a Constituição prevê.

Após análise de cada caso concreto, dos preceitos previstos no ordenamento jurídico, o Poder Judiciário tem a atribuição de condenar o Estado quando das omissões.

O direito à saúde é uma preocupação dos Estados modernos a partir da necessidade de implementação de políticas públicas, função atribuída originalmente ao Poder Executivo a partir de ações governamentais delineadas segundo as contingências sociais. Remete-se, portanto, à discussão da possibilidade ou não do Poder Judiciário suprir eventuais omissões do Estado. A partir do texto constitucional e da nova feição do princípio da Separação de Poderes a resposta é positiva, pois os Poderes da União, além de independentes, também devem ser harmônicos (art. 2.º CF/1988) para resguardar a eficácia máxima dos preceitos inseridos pelo Poder Constituinte. Nessa nova ordem, em evolução desde a promulgação da CF/1988, o Judiciário atua controlando a constitucionalidade dos atos estatais para reverberar as promessas do constituinte fazendo um controle de constitucionalidade estendido às políticas públicas. Quanto à possibilidade de o Poder Judiciário intervir na concretização de políticas públicas, enfatiza-se a ementa da decisão proferida na ADPF-MC 45-DF, relator Celso de Mello, DJ 29.04.2004:

“Ementa: Arguição de descumprimento de preceito fundamental. A questão da legitimidade constitucional do controle e da intervenção do poder judiciário em tema de implementação de políticas públicas, quando configurada hipótese de abusividade governamental. Dimensão política da jurisdição constitucional atribuída ao Supremo Tribunal Federal. Inoponibilidade do arbítrio estatal à efetivação dos direitos sociais, econômicos e culturais. Carácter relativo da liberdade de conformação do legislador. Considerações em torno da cláusula da ‘reserva do possível’. Necessidade de preservação, em favor dos indivíduos, da integridade e da intangibilidade do núcleo consubstanciador do ‘mínimo existencial’. Viabilidade instrumental da arguição de descumprimento no processo de concretização das liberdades positivas (direitos constitucionais de segunda geração).”

Todavia, a análise há de ser cautelosa para evitar interferências a ponto de malversar a independência dos Poderes, pois a implementação dos direitos sociais requer escolhas alocativas e, muitas vezes, a existência de políticas já implementadas por um dos entes da federação pode não ser informada no caso concreto. Para contornar tais problemas, a doutrina e a jurisprudência constroem balizas a serem analisadas e confrontadas com o conjunto probatório do processo para que se chegue a uma decisão justa que não coloque em risco a destinação dos recursos públicos. Na Suspensão de Tutela Antecipada n. 175, após audiência pública, o Ministro Gilmar Mendes enumera alguns pontos a serem analisados:

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“Após ouvir os depoimentos prestados pelos representantes dos diversos setores envolvidos, ficou constatada a necessidade de se redimensionar a questão da judicialização do direito à saúde no Brasil. Isso porque, na maioria dos casos, a intervenção judicial não ocorre em razão de uma omissão absoluta em matéria de políticas públicas voltadas à proteção do direito à saúde, mas tendo em vista uma necessária determinação judicial para o cumprimento de políticas já estabelecidas. Portanto, não se cogita do problema da interferência judicial em âmbitos de livre apreciação ou de ampla discricionariedade de outros Poderes quanto à formulação de políticas públicas. Esse foi um dos primeiros entendimentos que sobressaiu nos debates ocorridos na Audiência Pública- Saúde: no Brasil, o problema talvez não seja de judicialização ou, em termos mais simples, de interferência do Poder Judiciário na criação e implementação de políticas públicas em matéria de saúde, pois o que ocorre, na quase totalidade dos casos, é apenas a determinação judicial do efetivo cumprimento de políticas públicas já existentes.”

Em síntese, analisando o voto do Ministro Celso de Melo, em decisão monocrática na ADPF 45, bem como a decisão do Ministro Gilmar Mendes na STA 175, extrai-se a necessidade de sopesar algumas premissas para a concretização de políticas públicas para o fornecimento de remédios a título individual por intermédio do Estado-juiz: i) a razoabilidade da pretensão do particular; ii) garantia do mínimo existencial; iii) existência de política pública já implementada que efetive o direito pretendido.

No tocante à razoabilidade da pretensão, deve-se comprovar a necessidade do jurisdicionado em se submeter ao tratamento objeto da tutela, sendo um direito amparado pelo ordenamento e que deve ser concretizado.

Em relação à garantia do mínimo existencial, trata-se de imperativo ético-jurídico que, nas lições de Ana Paula de Barcelos, é formado pelas condições básicas para a existência e corresponde à parte do princípio da dignidade da pessoa humana à qual se deve reconhecer eficácia jurídica e simétrica, podendo ser exigida judicialmente em caso de inobservância.[1] Forçoso reconhecer, portanto, o direito à saúde como parte desse mínimo existencial, pois intrinsecamente ligado à vida digna.

Por fim, há de ser analisada a existência de políticas públicas acessíveis ao cidadão, ou seja, se nos limites do município em que ele resida existe a distribuição na rede pública daqueles medicamentos que necessita para lhe garantir a vida digna. Trata-se de premissa fundamental para legitimar eventual decisão judicial a ponto de não violar o princípio da separação de poderes.

É possível, inclusive, o uso de meios de execução indireta previstos no art. 461 do CPC, para fomentar a eficácia das decisões judiciais, conforme decisão nesse sentido no AgRg no RMS 44502, STJ:

“Ministro Og Fernandes (1139). Processual civil e administrativo. Agravo regimental no recurso em mandado de segurança. Art. 461 do CPC. Medidas excepcionais. Ausência de justificado receio de ineficácia da ordem mandamental. 1. Dispõe o art. 461 do Código de Processo Civil que, na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer, o juiz poderá aplicar multa diária ou mesmo determinar o bloqueio de bens para assegurar o resultado prático equivalente ao adimplemento da tutela concedida. 2. Nesse sentido, este Superior Tribunal, sob o regime do art. 543-C do CPC, entendeu que, 'tratando-se de fornecimento de medicamentos, cabe ao Juiz adotar medidas eficazes à efetivação de suas decisões, podendo, se necessário, determinar até mesmo, o sequestro de valores do devedor (bloqueio), segundo o seu prudente arbítrio, e sempre com adequada fundamentação' (REsp 1.069.810-RS, rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, 1ª Seção, DJe 06.11.2013). 3. No entanto, o STJ considera que o citado procedimento é medida excepcional, que só é legítima 'para o fim de garantir o fornecimento de medicamento à pessoa que dele necessite, quando houver o risco de grave comprometimento da saúde do demandante' (RMS 35.021-GO, rel. Min. Benedito Gonçalves, 1ª Turma, DJe 28.10.2011). 4. Na espécie, contudo, inexiste demonstração de justificado receio de ineficácia da ordem mandamental, isto é, de que o Estado de Goiás não esteja cumprindo o aresto recorrido. Inviável, portanto, a adoção da providência pleiteada. 5. Agravo regimental a que se nega provimento.”

Em síntese, o Estado tem o dever de zelar pela saúde do cidadão, incluindo nesse ponto o fornecimento de medicamentos, pois deve atuar em consonância com o princípio da dignidade da pessoa humana previsto na Constituição Federal de 1988, norma de eficácia potencializada.


[1]      BARCELOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 248 e 252-253.

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Sobre o autor
Jorge Arbex Bueno

Advogado, especialista em Direito Público pela Escola Paulista de Direito e pós-graduado em Direito Coletivo pela Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo. Autor do livro Teoria da ação de improbidade administrativa, pela Editora Lumen Juris.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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