“É preciso sentir a necessidade da experiência, da observação, ou seja, a necessidade de sair de nós próprios para aceder à escola das coisas, se as queremos conhecer e compreender.”
Émile Durkheim
A internação psiquiátrica está prevista na Lei nº 10.216, de 06 de abril de 2001 e se apresenta em três formatos:
1. Internação Voluntária (quando há consentimento do doente);
2. Internação Involuntária (sem o consentimento do enfermo, com autorização familiar ou de outros responsáveis);
3. Internação Compulsória (sem o consentimento do paciente e com autorização judicial).
A legislação destacada é insuficiente, se considerarmos o novo contexto social emergente, marcado, sobretudo, pela banalização e vulgarização do consumo de drogas, lícitas e/ou ilícitas. Em verdade, a lei referida, projetada na década de 90, com vistas a avalizar o movimento antimanicomial, não foi arquitetada para o tratamento de dependentes de álcool e outras drogas, com os contornos recentes do tema.
Neste sentido, mister se repensar o horizonte legislativo para disciplinar o tratamento de dependência química no Brasil. A mudança da realidade social e cultural impõe necessária alteração legislativa, sob pena de se tornar o direito anacrônico e ineficaz.
A internação compulsória é o mecanismo mais empregado pelas famílias no tratamento de seus entes enfermos. Contudo, existem pontos bem conturbados na questão.
A grande polêmica, oriunda da “judicialização da medicina”, ocorre no momento do próprio pedido de internação, formulado perante o Poder Judiciário.
É sabido e ressabido que a internação e a alta médica são atos exclusivos de médicos. Não são raras às vezes que o Poder Judiciário, diante de prova inequívoca, de índole médica, nega a antecipação de tutela para a internação compulsória de dependentes químicos.
Neste caso, não resta outra opção, senão a 2ª instância. Contudo, em se tratando de dependência química, a demora pode se traduzir em graves prejuízos ao doente, sua família e a sociedade como um todo.
Nesta esteira de raciocínio, o judiciário deve estar mais atento e receptivo aos pedidos oportunos de internação. É certo que privar alguém de sua liberdade, mantendo – a em tratamento não indicado, tipifica crime, capitulado no artigo 148 (parágrafo 1º, inciso II) do Código Penal (Sequestro e Cárcere Privado). De outra banda, não deduzir pela necessidade de um tratamento avalizado por ordem médica adequada pode se traduzir em desagravo à vida e à dignidade do próprio doente, provocando reflexos inclusive sociais, como o aumento da marginalidade. Enfim, do diálogo entre o Direito à Vida e à Liberdade sentido nos temas ligados à dependência química a melhor solução ainda é limitar o livre arbítrio do doente para lhe preservar a própria vida. É claro que tal avaliação (reluto, de ordem médica!) deve ser realizada cum grano salis para elidir internações desnecessárias e criminosas. Desta feita, em havendo risco iminente à vida e à integridade psicofísica do enfermo e a terceiras pessoas (conviventes ou não), atestado por médico, fica o Poder Judiciário autorizado a determinar o tratamento compulsório do enfermo. Ainda, a internação só deverá ser admitida se esgotados todos os meios extra hospitalares de tratamento. Destaque – se jurisprudência oportuna sobre o tema:
INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA. Boituva. Dependência química. Pedido de internação compulsória feito pela mãe, sob alegação de furtos sucessivos e conduta agressiva. - A mãe relata que o filho, capaz e viciado em drogas, vem furtando objetos da residência e, quando em abstinência, vem ameaçando a integridade física da autora e do irmão; há atestado médico recomendando a internação para tratamento da dependência química e os art. 6º § único III e 9º da LF nº 10.216/01 permitem a internação compulsória por ordem do juiz. A perícia médica será feita durante a internação. Inexistência de erro ou abuso na decisão agravada. - Agravo desprovido.(TJ-SP - AI: 888851020118260000 SP 0088885-10.2011.8.26.0000, Relator: Torres de Carvalho, Data de Julgamento: 23/05/2011, 10ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 26/05/2011)
Por derradeiro, cumpre esclarecer que a ausência de avaliação médica inicial (em regra, o dependente não se submete a mesma) pode ensejar a produção de outros meios de prova, que revelem o fumus boni iuris e o periculum in mora necessários a antecipação de tutela na ação de internação compulsória. Posteriormente, ao longo da internação, o paciente deverá ser encaminhado à perícia médica
O tratamento psiquiátrico involuntário é aquele em que o paciente é impelido de fazer, sem seu consentimento ou até mesmo contra sua vontade. Quando se considera legítimo o tratamento psiquiátrico à revelia da vontade do paciente. De acordo com a Lei 10.216/2001, apenas quando estiverem esgotadas as possibilidades de tratamento extra-hospitalar.
Art, 4°. A internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes.
§1°- o tratamento visará, como finalidade permanente, à reinserção social do paciente em seu meio ( Lei 10.216/2001, art. 4°).
São comuns, e socialmente aceitos, os tratamentos psiquiátricos mesmo contra a anuência do paciente, já que, de modo geral, não se sabe como lidar com as imprevisibilidades das atitudes do doente, com a agressividade e a possibilidade do agravamento do quadro caso não haja acompanhamento médico adequado.O diploma legal mencionado enumera situações em se admite o tratamento psiquiátrico involuntário.
Art, 6°. A internação psiquiátrica somente será realizada mediante laudo médico circunstanciado que caracteriza seus motivos.
Parágrafo único: São considerados os seguintes tipos de internação psiquiátrica:
- Internação voluntária:aquela que se dá com o consentimento do usuário;
- Internação involuntária: aquela que se dá sem o consentimento do usuário;
- Internação compulsória: aquela determinada pela justiça ( Lei 10.216/2001, art. 6° )
Fica o paciente submetido ao entendimento do médico acerca de seu destino. A decisão do juiz, ainda que não esteja adstrita ao laudo, provavelmente o acatará em face da delicadeza da situação e do manejo do conhecimento próprio da medicina. O tratamento involuntário tem por escopo a oportunidade de se minorar as crises de agitação do paciente com assistência especializada e adequada.
Mesmo nos casos em que admite internação involuntária há pontos que devem ser observados, para a manutenção da dignidade, como por exemplo, o estímulo ao cuidado pessoal, a manutenção do asseio e o contato com os outros. Abolição da repressão física, A internação compulsória é autorizada pelo Estado quando há riscos para o próprio paciente ou para outrem como, por exemplo, a presença de tendências homicidas ou propensão ao homicídio.
Art, 9°. A internação compulsória é determinada, de acordo com legislação vigente, pelo juiz competente, que levará em conta as condições de segurança do estabelecimento,quanto à salvaguarda do paciente, dos demais internados e funcionários. ( Lei 10.216/2001, art. 9°).
Não estão descartadas as possibilidades de o próprio doente decidir sobre seu tratamento.
Art 11.- Pesquisas científicas para fins diagnósticos ou terapêuticos não poderão ser realizadas sem o consentimento expresso do paciente, ou de seu representante legal, e sem a devida comunicação aos conselhos profissionais competentes e ao Conselho Nacional de Saúde. ( Lei 10.216/2001, art. 11).
No tratamento do doente mental às vezes é tênue a divisória entre a atenção e o cuidado e a restrição de sua autonomia. A Resolução n° 1407/94 e n° 1.598/2000 do Conselho Federal de Medicina adotaram os Princípios para a Proteção das Pessoas Acometidas de Transtorno Mental, aprovados em 1991 pela Assembleia Geral das Nações Unidas.Texto esse também acolhido pela Lei 10.216/2001, que já apresentamos acima.
O se depreende do mencionado acima é a preocupação com o respeito à dignidade do paciente psiquiátrico que deve receber tratamento humanitário sempre com vistas à preservação e aumento de sua autonomia. São vastas as situações, além das já comentadas, onde se faz imprescindível os princípios bioéticos e a atuação do biodireito. Temos priorizado e vamos prosseguir ainda nesse diapasão, situações que se repetem rotineiramente e que merecem nossa reflexão, atenção e cuidado.
Parecer CREMESP (Consulta nº 9.829/05)
Assunto: Internação compulsória em clínica de tratamento para alcoólatras e drogados.Relator: Conselheiro Luiz Carlos Aiex Alves.Ementa: A dependência ao álcool pode ser reconhecida e identificada através da entrevista psiquiátrica e da análise do quadro clínico, comportamental e pelo padrão do uso do álcool. A internação psiquiátrica compulsória é regulamentada pelo Conselho Federal de Medicina.O consulente, O.F.G., Delegado de Polícia, solicita parecer do CREMESP sobre as seguintes questões:1) Como saber se uma pessoa que diz beber alcoólicos apenas socialmente, seja na verdade, um dependente e necessite tratamento?2) Em qual condição uma pessoa pode ser internada em clínica de tratamento para alcoólatra e drogados contra sua vontade?3) Quem seria o responsável por tal providência e quem autorizaria?4) Mesmo autorizado a internação, é licito manter o paciente incomunicável e sem direito de ir e vir? Por qual período?5) A pessoa dominada mediante força física, contra sua vontade, oferecendo resistência, sofrendo aplicação intramuscular de medicamento Diazepan 10 mg, poderia sofrer algum problema de saúde decorrente do fato?PARECEREste parecer foi discutido e aprovado na Câmara Técnica de Saúde Mental do CREMESP, em reunião de 16.04.2005.1) Como saber se uma pessoa que diz beber alcoólicos apenas socialmente, seja na verdade um dependente e necessite tratamento?RESPOSTA: O álcool, como outras substâncias psicoativas, quando há ingestão continuada propicia o desenvolvimento do fenômeno da dependência física e psíquica. É essa dependência que caracteriza a doença alcoolismo. A dependência, por seu lado, pode ser reconhecida e identificada através da entrevista psiquiátrica e da análise do quadro clínico, comportamental e pelo padrão do uso do álcool. 2) Em qual condição uma pessoa pode ser internada em clínica de tratamento para alcoólatra e drogados contra a sua vontade?RESPOSTAS:a) "Nenhum tratamento deve ser administrado a paciente psiquiátrico sem o seu consentimento esclarecido, salvo quando as condições clínicas não permitirem a obtenção desse consentimento, e em situações de emergência, caracterizadas e justificadas em prontuário, para evitar danos imediatos ao paciente ou a outras pessoas.""Parágrafo único: Na impossibilidade de obter-se o consentimento esclarecido do paciente, e ressalvadas as condições previstas no caput deste artigo, deve-se buscar o consentimento de um responsável legal." (Resolução CFM 1598, de 09.02.00, Art. 6º).b) "A internação de um paciente em um estabelecimento de assistência psiquiátrica pode ser de quatro modalidades: voluntária, involuntária, compulsória por motivo clínico e por ordem judicial, após processo regular.""Parágrafo 3º. A internação compulsória por motivo clínico ocorre contrariando a vontade expressa do paciente, que recusa a medida terapêutica por qualquer razão." (Resolução CFM 1598, de 09.02.00, Art. 15)c) "Nas internações compulsórias por motivo clínico, o médico que realiza o procedimento admissório deve fazer constar do prontuário médico uma justificativa detalhada para o procedimento, e comunicar o fato ao diretor clínico, que submeterá o caso à Comissão de Revisão de Internações Compulsórias."(Resolução CFM 1598, de 09.02.00, Art. 17)d) "Um estabelecimento médico só pode realizar internações psiquiátricas compulsórias se contar com uma Comissão de Revisão de Internações Compulsórias.""Parágrafo 2º. Compete à Comissão de Revisão de Internações Compulsórias avaliar todos os casos de internação compulsória e decidir sobre a pertinência do procedimento em parecer, que deve constar do prontuário médico do paciente.""Parágrafo 3º. O membro da Comissão de Revisão de Internações Compulsórias não poderá participar da avaliação quando ele for responsável pela internação ou pela assistência do paciente internardo compulsoriamente.""Parágrafo 5º. Este processo deverá durar, no máximo, sete dias úteis." (Resolução CFM 1598, de 09.02.00, Art. 18)3) Quem seria o responsável por tal providência e quem a autorizaria?RESPOSTA: "Os médicos que atuam em estabelecimentos de assistência psiquiátrica são responsáveis pela indicação, aplicação e continuidade dos programas terapêuticos e reabilitadores em seu âmbito de competência. É de competência exclusiva dos médicos a realização de diagnósticos médicos, indicação de conduta terapêutica, as admissões e altas dos pacientes sob sua responsabilidade." (Resolução CFM 1598, de 09.02.00, Art. 5º).4) Mesmo autorizada a internação, é lícito manter o paciente incomunicável e sem direito de ir e vir? Por qual período?RESPOSTA: "Não deverá se empregar a restrição física ou o isolamento involuntário de um paciente, exceto (...) quando for o único meio disponível de prevenir dano imediato ou iminente ao paciente e a outros. Mesmo assim, não deverá se prolongar além do período estritamente necessário a esse propósito. Todos os casos de restrição física ou isolamento involuntário, suas razões, sua natureza e extensão, deverão ser registrados no prontuário médico do paciente (...). Em qualquer caso de restrição física ou isolamento involuntário relevante, o representante pessoal do paciente deverá ser prontamente notificado."(Resolução CFM 1407, de 08.06.94. Anexo. Princípio 11. item 11)5) A pessoa dominada mediante força física, contra a sua vontade, oferecendo resistência, sofrendo aplicação intramuscular de Diazepam 10, poderá sofrer algum problema de saúde decorrente do fato?RESPOSTA: Prejudicada. Inexistem dados relativos à pessoa referida na pergunta, como idade, peso, avaliação clínica e assim por diante.Este é o nosso parecer, s.m.j.Conselheiro Luiz Carlos Aiex AlvesAPROVADO NA 3.292ª REUNIÃO PLENÁRIA, REALIZADA EM 06.05.2005.HOMOLOGADO NA 3.295ª REUNIÃO PLENÁRIA, REALIZADA EM 10.05.2005
A INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA É, DE FATO, UM RECURSO EXTREMO. ÀS VEZES INEVITÁVEL.
Atualmente tem sido assunto polêmico e discutido na imprensa a questão da internação contra a vontade do paciente para dependentes químicos. Algumas perguntas são aqui expostas para contribuir ao conhecimento sobre o tema.
A dependência química é uma síndrome caracterizada pela perda de controle do uso de determinada substância psicoativa. Os agentes psicoativos atuam sobre o sistema nervoso central, provocando sintomas psíquicos e estimulando seu consumo repetido. Alguns exemplos são o álcool, as drogas ilícitas e a nicotina.
A característica essencial da Dependência de Substância é a presença de sintomas cognitivos (ou da consciência), comportamentais e fisiológicos indicando que a pessoa continua utilizando uma substância, apesar de problemas significativos relacionados a ela. Existe um padrão de consumo repetido que geralmente resulta em tolerância, abstinência e comportamento compulsivo de consumo da droga.
O termo tolerância é usado quando o organismo do dependente se adapta à droga e sua ação passa a não ter mais efeito desejado, assim há necessidade de aumentar-se progressivamente ao longo do tempo a dose da substância para se obter o efeito desejado.
A abstinência, um dos critérios para diagnóstico de dependência, é uma alteração comportamental e fisiológica, que ocorre quando as concentrações de uma substância da dependência no sangue baixam. Os sintomas da abstinência são extremamente desagradáveis, de forma que o dependente é compelido a consumir a substância para aliviar esse sofrimento.
No caso do crack e algumas outras substâncias, a abstinência ou o medo de sofrer abstinência fazem com que o dependente use a droga praticamente o dia inteiro ou várias vezes ao dia. Os sintomas de abstinência variam bastante entre as diversas substâncias, mas em geral quadro de Dependência é bastante parecido entre as várias categorias de substâncias.
A dependência química é uma das doenças psiquiátricas mais freqüentes da atualidade. A dependência do cigarro tem uma prevalência de 25% a 35% dos adultos, seguida pela prevalência da dependência do álcool, que é de 17,1% entre os homens e de 5,7% entre as mulheres, segundo o 1o Levantamento Domiciliar Sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas no país, realizado pela Universidade Federal de São Paulo há mais de 10 anos (2001). A simples observação permite arriscar um certo pessimismo em relação aos dias atuais. Esse estudo revelou ainda que quase 20% dos entrevistados já haviam experimentado alguma droga que não álcool ou tabaco. Entre elas, destacaram-se a maconha (6,9%), os solventes (5,8%) e a cocaína (2,3%).
Segundo o Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas (GREA), do Hospital das Clínicas da USP, observa-se nos últimos 10 anos uma mudança no consumo da cocaína. Houve uma diminuição o número de pacientes que injetam cocaína, ao passo que aumentou a quantidade de usuários do crack. Essa apresentação da cocaína atinge o sistema nervoso central de maneira mais rápida e intensa e a taxa de complicações clínicas é maior. O crack desenvolve rapidamente dependência grave e de difícil tratamento.
Segundo pesquisas da Unifesp – Universidade Federal de São Paulo, após o tratamento da dependência, as recaídas são frequentes, em torno de 50% nos seis primeiros meses e de 90% no primeiro ano.
Mas essas altas taxas de reincidência não significam que o tratamento seja ineficiente. Trata-se de uma doença crônica e os resultados do tratamento são semelhantes aos de outras enfermidades igualmente crônicas, como por exemplo a asma, hipertensão, diabetes. Além da gravidade do problema, um dos fatores mais importantes e mais difícil para o sucesso do tratamento é a motivação. Outro inimigo poderoso do tratamento é a falta de autocrítica, pois a grande maioria dos pacientes não se considera doentes.
Há duas abordagens principais para o tratamento da dependência química: a psicoterapia e a farmacoterapia. O modelo psicoterápico mais bem fundamentado atualmente é o cognitivo-comportamental, que prevê abstinência da substância, evitação de situações que induzam ao consumo e treinamento para resistir ao uso em circunstâncias que não possam ser evitadas. O tratamento tende a ser mais eficaz se for acompanhado por atendimento familiar, mas sempre partindo da abstinência.
A internação é indicada em casos onde haja riscos ao próprio paciente ou à terceiros, agressividade, sintomas psicóticos (delírios de perseguição, alucinações...) e uso descontrolado da substância a ponto de comprometer a continuidade do tratamento. Os críticos da internação para o dependente químico devem entender que, para o grosso da população brasileira, inegavelmente, as chances de sucesso para o abandono das drogas é muito maior no tratamento em regime de internação do que mantendo o paciente nas ruas.
Perguntas sobre internação compulsória
1- A internação compulsória é uma anomalia jurídica, é uma tirania de exceção?
Não, de forma alguma. Quando a pessoa não quer se internar voluntariamente, pode-se recorrer às internações involuntária ou compulsória, e isso já foi definido pela lei há mais de 10 anos. É a Lei Federal de Psiquiatria (nº 10.216, de 2001).
De acordo com essa lei referida acima o familiar ou terceiros pode solicitar a internação involuntária, desde que o pedido seja feito por escrito e aceito como procedente pelo médico psiquiatra.
A lei determina ainda que, nesses casos, os responsáveis técnicos do estabelecimento de saúde têm prazo de 72 horas para informar ao Ministério Público da comarca sobre a internação e seus motivos. O objetivo é evitar a possibilidade desse tipo de internação ser utilizado para a prática de cárcere privado.
Para a internação compulsória não é necessária a autorização familiar. O artigo 9º da lei 10.216 estabelece a possibilidade da internação compulsória quando determinada pelo juiz competente, depois do pedido formal feito por um médico atestando que a pessoa não tem domínio sobre a sua condição psicológica e física, ou seja, está incapaz de autodeterminar-se em decorrência da dependência.
De forma geral, a internação involuntária é um procedimento médico realizada no mundo todo há muitos anos e obedece a critérios objetivos, técnicos e médicos. A visão médica não vai deixar o dependente químico se matar em nome do demagógico e fictício discurso em prol da liberdade de se fazer o que se quer. O médico, no mundo todo, não acha que é um direito do ser humano se matar, pois entende que esse paciente geralmente está doente e tem de ser tratado.
2) Se já está previsto por lei, porque toda essa polêmica atualmente presente na imprensa?
Recentemente o governo apenas criou medidas para o cumprimento mais eficiente da lei de 2001. Viabilizou-se uma parceria entre o Poder Judiciário, o Poder Executivo e a OAB, ou seja, entre médicos, juízes e advogados, com o objetivo de tornar a tramitação do processo de internação compulsória previsto em lei mais rápida e menos burocrática para proteger as vidas daqueles que mais precisam.
As famílias com recursos econômicos já utilizam o mecanismo da internação involuntária para resgatar os seus parentes das drogas em clínicas particulares. O que o governo passou a fazer em 2013 foi aplicar a lei para atender pessoas que não têm recursos e perderam totalmente os laços familiares. Estando essas pessoas abandonadas ao próprio vício ou com a consciência severamente prejudicada (veja Alterações da Personalidade), o governo se obrigou a tirá-las desse autoabandono.
3) Como esse movimento se ampara judicialmente e para preservar direitos dos pacientes?
O Tribunal de Justiça de SP instalou-se nas dependências CRATOD - Centro de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas em regime de plantão de segunda a sexta-feira com o objetivo de atender as medidas de urgência relacionadas aos dependentes químicos em hipóteses de internação compulsória ou involuntária. Há concomitante presença da Defensoria Pública para fiscalizar eventuais distorções e abusos das medidas para internação. Também está presente o Ministério Público para permitir que promotores permaneçam acompanhando o plantão do Judiciário. Finalmente a OAB – Ordem dos Advogados do Brasil, acompanhará de forma gratuita e voluntária os trâmites dos pedidos para internação nos casos necessários.
4) O que vai mudar agora para a aplicação da Lei 10.216?
Principalmente a agilidade das indicações formais para internação involuntária e, principalmente, compulsória estabelecidos pela psiquiatria. Até então, a indicação médica para internação compulsória, em muitos casos se perdia devido a demora na emissão da ordem judicial. Isso impedia que a equipe médica mantivesse o paciente na instituição psiquiátrica.
O processo continua a ser promovido pelos agentes de saúde, como antes. A diferença, com a presença do Poder Judiciário no local e em tempo integral fará com que a determinação judicial seja mais rápida e descomplicada.
Após receber o primeiro atendimento o dependente químico será avaliado por médicos que vão oferecer o tratamento adequado. Caso a pessoa não queira ser internada e havendo indicação psiquiátrica, tais como risco a si mesmo e a terceiros, prejuízo no discernimento e na capacidade de autodeterminar-se, o juiz poderá determinar a internação imediata.
5) Antes de toda essa movimentação já eram realizadas internações compulsórias?
Sim. Dados da Secretaria Municipal de Saúde da Prefeitura de São Paulo mostram que a internação compulsória já é praticada desde 2009 através da chamada Operação Centro Legal. Entre as cerca de 2.800 internações realizadas em equipamentos municipais de 2009 a 2012 a prefeitura confirma mais de 300 casos do tipo compulsória, ou seja, cerca de 11% do total das internações.
O processo começava com a abordagem dos agentes de saúde. Se o dependente concordasse, ele era enviado a um equipamento – no caso do município, CATS ou Complexo Prates, no caso do Estado, CRATOD –,onde médicos e uma equipe multidisciplinar decidiam qual deveria ser o processo terapêutico adotado para aquela pessoa. Em casos específicos, sempre com laudo médico, optava-se pela internação compulsória para proteger a integridade física e mental do paciente.
Nos casos mais graves de dependência química a internação é a alternativa mais segura e eficaz. O ideal seria que ninguém precisasse disso, que o dependente tivesse controle de sua vontade, mas a dependência química é uma doença que faz com que a pessoa perca esse controle e fique à mercê da droga caminhando para uma piora progressiva.
6) A internação compulsória pode ser uma regra a ser seguida ou é um a arbitrariedade brasileira?
Não. Casos de internação compulsória continua sendo sempre a exceção e não a regra. A política prioritária continua sendo a internação voluntária, através do convencimento do dependente por agentes de saúde, assistentes sociais e outros segmentos ligados à essa área. Além disso, existem outras várias formas de tratamento para dependência química.
A internação compulsória é, de fato, um recurso extremo. A psiquiatria não é ingênua em acreditar que o dependente será uma pessoa totalmente nova e diferente depois de três meses de internação compulsória. A doença é muito mais séria que isso. Infelizmente, muitos pacientes internados compulsoriamente ou voluntariamente vão voltar às drogas, notadamente ao crack. Mas, pelo menos, através de uma internação bem conduzida eles terão uma chance muito maior de superarem esse problema do que teriam se continuassem no meio patogênico de onde vieram.
Segundo o National Institute on Drug Abuse, EUA, considerada uma das instituições mais respeitadas do mundo nessa questão, a internação compulsória funciona tanto quanto a internação voluntária do paciente. Na publicação Principles of Drug Addiction Treatment: A Research-Based Guide (Princípios do Tratamento do Vício em Drogas: Um Guia Baseado em Pesquisa), o instituto apresenta quais são os princípios de um tratamento eficaz.
Esse trabalho diz que “o tratamento não precisa ser voluntário para ser eficaz. Sanções ou incentivos impostos pela família, pelo ambiente de trabalho ou pelo sistema judicial podem aumentar significativamente a taxa de internação e de permanência – e finalmente o sucesso das intervenções de tratamento”.
Doze estados norte-americanos, entre eles a Califórnia, possuem leis específicas sobre a internação compulsória ou involuntária. A Flórida, por exemplo, tem o Marchman Act, aprovado em 1993. O Canadá tem legislação que permite o tratamento forçado de viciados em heroína. O Heroin Treatment Act foi aprovado na província de British Columbia em 1978. A lei foi contestada na Justiça, mas foi mantida posteriormente pela Suprema Corte. A Austrália possui legislação que permite aos juízes condenar ao tratamento compulsório dependentes de drogas que cometeram crimes. A Nova Zelândia também tem legislação que permite à Justiça ou à família internar um dependente compulsoriamente. A Suécia, tão propalado paraíso dos usuários de drogas, possui o Act on the Forced Treatment of Abusers, que permite a internação compulsória de dependentes que representem risco para si próprios ou para terceiros; a lei é utilizada principalmente para menores de idade.
A OMS – Organização Mundial da Saúde, ONU, através de sua publicação Principles of Drug Dependence Treatment, de 2008, considera que o tratamento de dependência de drogas, como qualquer procedimento médico, não deve ser forçado. Porém, admite que “em situações de crise de alto risco para a pessoa ou outros, o tratamento compulsório deve ser determinado sob condições específicas e período especificado por lei”.