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Em busca de uma justiça possível:

considerações acerca de um modelo de justiça em face do desenvolvimento humano e transformação social

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24/06/2016 às 13:24
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A IDEIA DE JUSTIÇA DE AMARTYA SEN

A obra intitulada A Ideia de Justiça de Amartya Sen é a maior referência para a realização desse trabalho. O livro publicado inicialmente em inglês em 2009 traz para a discussão do tema da justiça conceitos inovadores, advindos da característica multidisciplinar e multicultural não só do mundo acadêmico, mas também do próprio Sen, que personifica um tanto esses conceitos.

O filósofo e economista Amartya Sen nasceu em Santiniketan, que atualmente faz parte do estado indiano de Bengala Ocidental, um dos estados com menores índices de desenvolvimento humano da já empobrecida e desigual Índia. Apesar de hoje (até o fim desse trabalho assim o era) viver nos Estados Unidos, Sen mantém fortes laços culturais com sua terra natal, tendo sido a convivência cotidiana com as injustiças na sua terra natal e filosofia indiana influências bastante sensíveis na formulação de sua ideia de justiça.

Amartya Sen propõe uma mudança no paradigma vigente sobre as discussões do tema da justiça, adotando uma abordagem comparativa – interessada na escolha social – para sua ideia de justiça, se opondo à tradição transcendental adotada por autores como John Rawls e Ronald Dworkin, por exemplo. Dessa forma, Sen não sugere a busca por um arranjo único e idealmente justo, focado em instituições perfeitamente justas como solução para a questão da justiça.

Na verdade, pode-se dizer que a investigação de Sen está muito mais voltada à ideia de injustiça do que na identificação da justiça plena. A eliminação de situações de fome, miséria, analfabetismo, infelicidade e saúde precária é o escopo da ideia de justiça do autor indiano, ao contrário da constante perseguição da sociedade plenamente justa dos autores transcendentais.

A descrença de Sen no transcendentalismo é justificada no seguinte trecho de A ideia de justiça:

Talvez a contribuição mais importante da abordagem da escolha social para a teoria da justiça é seu interesse nas avaliações comparativas. Essa estrutura relacional, ao invés de transcendental, concentra-se na razão prática por trás daquilo que deve ser escolhido e em quais decisões devem ser tomadas, em vez de especular sobre a aparência de uma sociedade perfeitamente justa (sobre a qual pode ou não haver acordo). Uma teoria da justiça deve ter algo a dizer sobre as escolhas que são de fato oferecidas, e não apenas manter absortos em um mundo imaginado e implausível de imbatível magnificência. (SEN, 2009, p. 137).

Para Amartya Sen, a promoção da justiça deve vir do raciocínio público, por meio da reflexão coletiva e de juízos comparativos sobre o bem-estar de uma sociedade e como os indivíduos estão sendo capazes de alcançar seus anseios. Nesse sentido, abdica de qualquer relação com um contrato hipotético ou com arranjos perfeitamente justos.

Para tal, o autor indiano objetiva que é necessário criar e fomentar formas democráticas de tomada de decisões que digam respeito à promoção da justiça e combate às injustiças para a abordagem da escolha social. A seguir, se tratará sobre esse processo de tomada das decisões.

Assim vê-se que o autor preocupa-se com a comparação de arranjos mais ou menos justos para se alcançar as respostas sobre as questões de justiça, denotando um claro afastamento da necessidade de fórmulas e cálculos matemáticos que possam conduzir ao resultado ideal.

Ao contrário dos autores que optam pela corrente transcendental, em A ideia de justiça tem-se a opção do autor pelo apontamento de práticas de combate às injustiças patentes no mundo concomitantemente à promoção de práticas de promoção da justiça.

Dessa forma, fica claro que para Sen a ideia da promoção da justiça não deve advir da formação de instituições perfeitamente justas ou de comportamentos idealizados, mas sim do comportamento real e efetivo dos indivíduos e instituições preocupados em eliminar as injustiças manifestas na sociedade.

Para esclarecer seu pensamento, Sen utiliza-se de conceitos do direito clássico hindu de justiça como niti e nyaya[19]. Os termos, do sânscrito, respectivamente significam adequação organizacional e a vida que as pessoas são realmente capazes de levar ou justiça realizada.

Claramente o autor elege o conceito de nyaya para desenvolver sua ideia de justiça, utilizando a seguinte alegoria para justificar sua escolha:

O reconhecimento central aqui é que a realização da justiça no sentido de nyaya não é apenas uma questão de julgar as instituições e as regras, mas de julgar as próprias sociedades. Não importa quão corretas as organizações estabelecidas possam ser, se um peixe grande ainda puder devorar um pequeno sempre que queira, então isso é necessariamente uma violação da justiça humana como nyaya. (SEN, 2009, p. 51).

A opção pela ideia de nyaya de justiça não significa o desprezo ou abandono das regras organizacionais como instrumentos para a realização da justiça. As regras organizacionais são, para Sen, ferramentas para o combate às injustiças e não o objeto teleológico da sua teoria.

No ponto de vista da aplicação de sua ideia de justiça, Amartya Sen, tal como John Rawls, se afasta da linha utilitarista para alcançar as instituições justas. Sobre o utilitarismo, nas palavras de Ana Catarina Sampaio Lima Pereira:

Relembrando o alcance desta corrente, pode afirmar-se que a utilidade dos seus indivíduos reside no seu prazer ou felicidade, sendo que o bem estar de cada um é aferido a partir da felicidade. Os pressupostos de uma avaliação utilitarista incluem três principais componentes.

Em primeiro lugar, as escolhas relativas a ações, leis, instituições, devem ser julgadas somente através das suas consequências; em segundo lugar, temos a situação consequente que deve ser apreciada através pela utilidade em razão do bem estar dos indivíduos e, por último, temos o momento do somatório das várias utilidades que são, pura e simplesmente, somadas umas às outras (o que não se coaduna com uma comparação entre as pessoas). O objetivo é a maximização da utilidade, independentemente do nível de desigualdade na distribuição da mesma, logo, uma situação de injustiça seria aquela em que se constataria uma perda em total de utilidade comparativamente ao que poderia ter sido obtido. (PEREIRA, 2012. p. 48).

Para Sen, o sistema utilitarista não se ajusta à sua ideia de justiça, vez que a avaliação das ações institucionais e individuais não pode ser somente sobre os resultados finais da agência. Ora, os processos que levam à culminação de determinada ação institucional, mesmo que com o intuito de dirimir a injustiça, são tão importantes quanto os seus resultados, vez que os efeitos colaterais podem levar a resultados desastrosos.

Para ilustrar essa ideia, o autor recorre novamente à tradição indiana. Sen traz o famoso diálogo entre Arjuna e Krishna no texto do Baghavad-Gita.[20]

No texto, Arjuna, príncipe guerreiro de Pandava, tem de lidar com a difícil decisão entre travar uma guerra sangrenta contra seus próprios parentes que tentam lhe usurpar o trono, ou em contrapartida, evitar o derramamento de sangue, porém tendo que submeter-se a injusta sucessão real. Arjuna claramente se posiciona ao lado de evitar a guerra e as incontáveis mortes dela decorrentes.

Krishna, na qualidade de conselheiro de Arjuna, o instrui a ir à luta, a despeito das terríveis consequências que isso traria, pois deve cumprir com o seu dever e assegurar que a justiça seja feita. Ao cabo, o príncipe acata o conselho de Krishna e vence a batalha, porém com um imenso saldo de mortes.

Amartya Sen se coloca favorável à Arjuna, defendendo que os resultados abrangentes das ações são muito mais importantes que apenas a culminação da ação. Por resultados abrangentes entendem-se todas as ações realizadas, agências envolvidas, processos utilizados, juntamente com os resultados finais da ação.

Assim sendo, não faz parte de uma escolha racional, por exemplo, que, com o escopo de se construir uma fábrica que geraria milhares de empregos em uma comunidade carente (o que evidentemente diminuiria o desemprego, geraria renda e promoveria a justiça), se destrua toda uma área de proteção ambiental, o que certamente traria outros problemas irreparáveis àquela comunidade.

Outro ponto importante de discordância entre Sen e o utilitarismo é o fato de que para os utilitaristas, uma ação ou política justa é aquela que distribui igualmente entre todos o mesmo nível de bem-estar (economicamente traduzido em renda e utilidades).  Para Sen, a mera distribuição equânime de bens não significa que se tenha feito a justiça, uma vez que as circunstâncias subjetivas das pessoas afetam diretamente o proveito que cada um vai extrair dessas utilidades, afetando diretamente sua felicidade.

A partir daí se evidencia a importância da abordagem das capacidades na ideia de justiça de Amartya Sen.

Para o autor, a noção de capacidade é intimamente ligada às ideias de liberdade e oportunidade. As palavras de Sen, sobre a importância da liberdade na abordagem das capacidades:

A liberdade é valiosa por pelo menos duas razões diferentes. Em primeiro lugar, mais liberdade nos dá mais oportunidade de buscar nossos objetivos – tudo aquilo que valorizamos. Ela ajuda, por exemplo, em nossa aptidão para decidir viver como gostaríamos e para promover os fins que quisermos fazer avançar. Esse aspecto da liberdade está relacionado com a nossa destreza para realizar o que valorizamos, não importando qual é o processo através da qual essa realização acontece. Em segundo lugar, podemos atribuir importância ao próprio processo de escolha. Podemos, por exemplo, ter certeza de que não estamos sendo forçados a algo por causa das restrições impostas por outros. (SEN, 2009, p. 262.).

A relação entre liberdade e oportunidade fica clara quando se entende que quando se tem a possibilidade de fazer algo sem nenhum obstáculo, surgirão oportunidades para fazê-lo.

É possível ilustrar essa ideia com a seguinte situação hipotética: João tem o objetivo de se tornar jornalista e ter o seu próprio periódico publicado, pois acredita que assim poderá expressar sua opinião sobre a política em seu país. Ocorre porém, que o país onde mora está sob jugo de uma ditadura, que impõe severas restrições à liberdade de expressão.

Embora João possa se tornar um jornalista e as chances de expressar suas convicções políticas nesse contexto são bem limitadas, estando restritas as suas oportunidades de fazer o que tem plena razão de querer fazer. Mesmo se a opinião de João coadunasse com a opinião política do censor, ele não teria a oportunidade de mudar de opinião.

Assim sendo, capacidades podem ser resumidas como a liberdade de cada um levar a vida que tem razão para valorizar. Sen se propõe a abordar a sua ideia de justiça sobre essa ótica. De acordo com A ideia de justiça:

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Em primeiro lugar, a abordagem das capacidades aponta para um foco informacional para julgar e comparar vantagens individuais, globais, e não propõe, por si mesma, qualquer fórmula específica sobre como essa informação pode ser usada. Com efeito, os diferentes usos podem surgir em função da natureza das questões que estão sendo abordadas (por exemplo, políticas que tratam respectivamente da pobreza, da incapacidade, ou da liberdade cultural) e, de maneira mais prática, em função da disponibilidade de dados e material informativo que podem ser usados. A abordagem das capacidades é uma abordagem geral, com foco nas informações sobre a vantagem individual, julgada com relação à oportunidade, e não um “design” especifica de como uma sociedade deve ser organizada. (SEN, 2009, p. 266).

Assim, a abordagem das capacidades serve de foco informacional para a realização de políticas de promoção da justiça social ou para a atividade de movimentos sociais. Ela desloca o objeto de interesse dessas ações dos meios de se obter uma vida boa (mais renda, por exemplo), para as capacidades de realização dos anseios das pessoas ou grupos de pessoas, [21].

Numa sociedade com menos injustiça é fundamental a redução das diferenças entre o que alguém pode ou não realizar com os recursos que dispõe.

Ilustrando: é bem plausível que uma pessoa preze por uma vida saudável e longeva, evitando a qualquer custo uma morte prematura. Alguns partidários do utilitarismo podem pensar que uma pessoa com mais renda, proveniente de um país com economia robusta e dispondo das melhores tecnologias teria mais chances de alcançar uma vida saudável e longa. Não é o que ocorre na prática.

Embora a distribuição da riqueza seja importante para que ocorra o desenvolvimento e a justiça social, outros fatores influenciam enormemente a promoção da justiça. Amartya Sen demonstra esse pensamento no gráfico a seguir:

GRÁFICO 01 – Variação por região nas taxas de sobrevivência para o sexo feminino. [22]

Fonte: SEN, 2013, p. 39.

Em que pese a renda dos negros norte-americanos ser consideravelmente superior à renda dos chineses ou indianos do Kerala, isso não significa um avanço sensível na expectativa de vida desse grupo em particular. Os problemas alheios à distribuição de renda que os negros estadunidenses enfrentam em relação aos brancos, tais como maiores níveis de desemprego, criminalidade, discriminação racial e restrições de liberdade de toda sorte são fundamentais para a compreensão do fenômeno da reduzida longevidade desses indivíduos.

A oferta de serviços de saúde em caráter universal nos EEUU - presente no Kerala e na China (e, embora alheio ao exemplo de Sen, no Brasil também) - seria um avanço em direção a uma sociedade mais justa. Assim como a liberdade de expressão na China e a igualdade de gênero na Índia também incrementariam as capacidades nesses países.

A promoção das capacidades é ponto crucial na teoria de justiça de Sen, entretanto não deve ser entendida como sendo a única preocupação do autor. A questão das liberdades, embora não receba a mesma importância e prioridade concedida por Rawls, é tratada por Sen como elemento basal para a sua ideia de justiça.

Rawls acreditava ser possível medir as desigualdades através da disponibilidade de bens primários e sua distribuição. Quanto mais desses bens primários – direitos e garantias, oportunidades, rendimentos, renda, alimentos – um sujeito possui, mais êxito esse tem para alcançar seus anseios.

Sen, por sua vez, altera esse paradigma, concedendo às liberdades outro caráter e nível de importância:

Mas, afinal, que liberdade - ou liberdades - é esta de que Amartya nos vem falar? O economista vem defender a liberdade como sendo um fim do desenvolvimento (desempenhando um papel constitutivo de desenvolvimento) e ainda um meio para atingir o desenvolvimento (desempenhando um papel instrumental). Os seus estudos debruçam-se predominantemente no papel de certas liberdades instrumentais e que tem como determinantes, nomeadamente: oportunidades económicas, liberdades políticas, serviços sociais, garantias de transparência e segurança protetora. (PEREIRA, 2012, p. 60)

A expansão das liberdades na teoria seniana tem papel fundamental para a concepção de desenvolvimento como liberdade, de substancial relevância para a compreensão da teoria de justiça do autor indiano.

Assim, o ponto de partida do seu pensamento consiste em encarar o desenvolvimento como um processo de alargamento das liberdades reais de que as pessoas efetivamente gozam, contrastando assim com perspectivas mais restritas de desenvolvimento. Este passa a ser visto como expansão de liberdades substantivas, que impõe a eliminação das principais fontes de restrições que deixam às pessoas pouca escolha e pouca oportunidade para exercerem a sua ação racional como, por exemplo, a pobreza. (PEREIRA, 2012, p. 61).

Igualmente fundamental para a ideia de justiça de Amartya Sen é a importância da argumentação pública para o combate às situações de injustiça patentes na sociedade. Esse posicionamento faz com que ele estabeleça uma conexão clara entre a ideia de justiça e as teorias contemporâneas que apresentam a democracia como um governo por meio do debate (COSTA, 2011, p. 8).

Nesse sentido, Amartya Sen vai além da democracia como apenas um modelo político baseado no voto; essa definição reduziria a democracia a uma leitura niti[23]. O autor acredita que a democracia deve ser vista como nyaya[24], como uma forma de promoção das necessidades e anseios humanos, como instrumento de ampliação das liberdades subjetivas e coletivas.

Qualquer Estado que não adote algum mecanismo de debate público acerca dos anseios e necessidades de seu povo - em que pese os seus esforços de promover as capacidades e acesso aos meios de obtenção de uma boa vida – está sob o severo risco de cometer erros graves de avaliação.

Uma possível situação de fome num regime como o norte-coreano, causada por uma política de alimentos e distribuição mal conduzida, dificilmente enfrentaria alguma oposição por parte dos cidadãos daquele país. Isso se dá pela falta de instrumentos capazes de contestar e avaliar de forma crítica as condutas do regime ditatorial que vigora nesse ou em, infelizmente, muitos outros países no mundo.

Sen crê que um sistema que promova a crítica pública, através dos meios de comunicação livres, atividade parlamentar, atividade de movimentos sociais, pluripartidarismo e do sufrágio universal, dificilmente apresentaria um fenômeno tão catastrófico como uma fome coletiva ou uma epidemia, por exemplo. Assim que os primeiros sinais de que a má condução do poder político culminaria na situação de risco, esses instrumentos agiriam em prol do bem comum da sociedade, pondo fim à ameaça.

A democracia, acompanhada dos direitos civis que a caracterizam e liberdade individual nas suas mais variadas vertentes, devem ser vistas como instituições fundamentais ao desenvolvimento de um povo e não como entraves à expansão económica e ao incremento da riqueza. (PEREIRA, 2012, p. 66.).

As instituições como o Estado, o sistema jurídico, o mercado, os partidos políticos e os meios de comunicação podem ser avaliados e analisados como justos ou injustos de acordo com a contribuição que exercem ao acréscimo de liberdades aos indivíduos. Da mesma maneira, essas instituições podem agir no sentido de reduzir as liberdades; a ausência de serviços adequados de saúde, restrições ao direito de voto, a ocorrência de fomes, enfim, a restrição da oportunidade de se viver uma vida digna são sinais de uma sociedade injusta e encarceradora.

Como se vê, existe uma forte relação entre liberdade, capacidades e desenvolvimento, de forma que o alargamento das liberdades resulta em um avanço perante as capacidades dos indivíduos. A livre ação dos membros da sociedade e suas realizações contribuem para o seu desenvolvimento, uma vez que esse não depende apenas dos números do PIB, do crescimento industrial, do aumento das rendas ou dos avanços tecnológicos. De acordo com o exemplo de Sen em Desenvolvimento como liberdade:

Se a educação torna uma pessoa mais eficiente na produção de mercadorias, temos então claramente um aumento do capital humano. Isso pode acrescer o valor da produção na economia e também a renda da pessoa que recebeu educação. Mas até com o mesmo nível de renda uma pessoa pode beneficiar-se com a educação – ao ler, comunicar-se, argumentar, ter condições de escolher[25] estando mais bem informada, ser tratada com mais consideração pelos outros, etc. Os benefícios da educação, portanto, excedem seu papel como capital humano na produção de mercadorias. A perspectiva mais ampla da capacidade humana levaria em consideração – e valorizaria – esses papéis adicionais também. (SEN, 2013, p. 373.).

Se a produção de alguém é passível de aumentar consideravelmente se esse indivíduo está saudável, é bem educado, bem remunerado, etc., não é impensável aduzir que essa mesma pessoa pode ser livre para alcançar seus anseios e realizar muito mais durante seu tempo de vida.

Em suma, fica claro que desenvolvimento, liberdade e capacidades estão interligados e são partes constitutivas de um processo de promoção da justiça. O desenvolvimento econômico e social permite que as instituições promovam as liberdades dos indivíduos, que por sua vez passam a gozar de maiores capacidades e contribuem para um aumento no desenvolvimento.

Outro ponto relevante para a compreensão da teoria de justiça de Sen é que é indispensável que os indivíduos compreendam e saibam identificar as situações de injustiça, para que possam agir no sentido de eliminá-las ou ao menos diminuí-las.

Embora o próprio Amartya Sen no prefácio de sua obra A ideia de justiça, utilize a frase de Charles Dickens: No pequeno mundo onde as crianças levam sua existência, não há nada que seja percebido e sentido tão precisamente como a injustiça[26], a percepção da injustiça às vezes pode estar viciada. O autor indica que apenas através da adaptação é que a vida dos menos favorecidos se torna um pouco mais suportável. O seguinte trecho é capaz de ilustrar esse raciocínio:

As pessoas desesperadamente necessitadas podem carecer da coragem para desejar qualquer mudança radical e, normalmente, tendem a ajustar seus desejos e expectativas ao pouco que veem como viável. Elas treinam para tirar prazer das pequenas misericórdias. (SEN, 2009, p. 317.).

O efeito dessa adaptação é a distorção da escala de satisfação, felicidade e pontecialidade das pessoas. Dessa maneira uma avaliação apenas preocupada com a autopercepção da própria miséria ou infelicidade não é o bastante para se decidir se existe ou não injustiça em uma determinada situação.

Desconsiderar a intensidade de sua desvantagem apenas por causa de sua capacidade de experimentar um pouco de alegria em suas vidas não é um bom caminho para alcançar uma compreensão adequada das exigências da justiça social. (SEN, 2009, p. 318.).

A preocupação de Amartya Sen com a com a redução das injustiças vai se relacionar com a noção de direitos humanos. O autor acredita que os direitos humanos são importantes para a construção de uma sociedade mais justa na medida em que atuam como indicativos para os países de como fazerem suas próprias leis.

A crença de que os direitos humanos se prestam para a construção de uma ordem jurídica global não é clara para o indiano. A real importância dos direitos humanos para Sen é que, além de servirem como indicadores éticos para a criação de normas mais justas, também estão presentes nas ideias e ações de movimentos sociais.

Amartya Sen cita algumas das organizações que, em sua opinião, promovem a ideia de direitos humanos para além da via legislativa, entre as quais a Humans Rights Watch, Médicos sem Fronteiras, Cruz Vermelha, Anistia Internacional, entre outras. Essas organizações bem como outras ONGs agiriam na esfera em que a legislação não pode ou não consegue atuar.

Nesse sentido, Amartya Sen acredita que os direitos humanos são manifestações de uma ética construída através da discussão racional pública, ou da escolha social, que se associam à ideia de guarida às liberdades humanas. A atuação dos meios de comunicação nesse contexto tem o dever de promover o debate público sobre as questões atinentes aos direitos humanos, bem como atuar em seu favor.

Quando se refere a essas liberdades, o autor se afasta da teoria utilitarista ao considerar que a importância da liberdade dos outros é tão importante quanto a individual. Para o autor, como membros de uma sociedade, se tem para com os nossos próximos certo grau de responsabilidade. Essas responsabilidades podem ser advindas da legislação (o que Sen denomina de obrigações perfeitas), ou de valores éticos de valorização do próximo, da simpatia, do sentimento de comunidade (denominados de obrigações imperfeitas).

As obrigações perfeitas podem ser ilustradas como a obrigação legal, presente no código penal, por exemplo, de não cometer agressão física contra outra pessoa. Já as obrigações imperfeitas podem ser exemplificadas como a obrigação de alguém que, testemunhando uma agressão, faz algo, dentro das suas possibilidades, para impedir ou cessar a agressão (ligar para a polícia seria uma boa ação nesse caso).

Os valores éticos – presentes ou não em cartas de direitos humanos – assumem papel de regular as ações individuais no sentindo de evitar o individualismo prejudicial. São desses valores éticos que as obrigações imperfeitas são tributárias, sendo mais difícil poder estabelecer um controle legal sobre essas obrigações.

Para Amartya Sen, os direitos humanos e os direitos sociais e econômicos são indissociáveis, tendo, portanto, a mesma relevância para a construção de uma sociedade mais justa. A esse conjunto de direitos, Sen crê que exista a necessidade imediata de aplicação ou pelo menos que sejam respeitados em suas manifestações através dos movimentos sociais.

Dessa maneira, embora ainda não haja ainda uma discussão efetiva e global acerca da necessidade da aplicação dos direitos humanos de forma mais ostensiva do que o que se observa atualmente, as oportunidades de denúncia das violações a esses direitos, promovida pelos movimentos sociais e meios de comunicação se tornam indispensáveis ao processo de diagnóstico das injustiças.

Assim observa Sen:

A viabilidade das pretensões éticas em forma de uma declaração dos direitos humanos depende, em última análise, do pressuposto de que as pretensões sobrevivam a um debate livre e desimpedido. De fato, é de extrema importância entender essa relação entre os direitos humanos e a argumentação racional pública, sobretudo em relação às objetividades tratadas nessa obra num contexto mais geral [...] Pode-se argumentar razoavelmente que qualquer plausibilidade geral que tenham essas pretensões éticas – ou sua rejeição – depende da sobrevivência delas perante um exame aberto e uma discussão desimpedida, junto com a ampla disponibilidade de informações pertinentes. (SEN, 2009, p. 422).

Finalmente, se vê que a ideia de justiça de Amartya Sen pode ser resumida como uma alternativa às teorias utilitaristas, liberais e libertárias, se afigurando como uma teoria mais sensível aos reais problemas de desigualdade e injustiças. A crítica insistente que Sen direciona ao pensamento transcendental e contratualista demonstra o seu compromisso com a efetiva eliminação das injustiças que afligem o mundo. Nas palavras de Werle:

Uma das maiores contribuições de A ideia de justiça é mostrar que a tarefa de responder à questão "como promover uma sociedade justa, estável e cooperativa entre pessoas autônomas livres e iguais" exige um trabalho mais cooperativo entre as ideias da filosofia política e as análises das ciências sociais em geral, e que essa resposta não pode ser meramente teórica-;conceitual, mas sim prático-;política. Trata-;se de uma tarefa que tem de ser levada adiante pelas próprias pessoas na vida social e no exercício da razão pública, num debate crítico, reflexivo, aberto e ininterrupto sobre como lidar com as exigências conflitantes entre o possível e o desejável. (WERLE, 2012).

A ideia do economista indiano se aproxima muito mais à noção de que a própria justiça é o caminho, ou processo rumo ao desenvolvimento e à mudança social e não um fim em si mesma. Assim, através da sua estreita relação com a economia, Sen dá à sua teoria uma possibilidade real de aplicação, independendo de comportamentos hipotéticos dos indivíduos e instituições.

Dessa maneira, a ideia de Amartya Sen surge como uma justiça mais do que voltada às capacidades, à promoção das liberdades, à escolha social; surge como uma justiça voltada aos injustiçados e como uma justiça possível.

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Sobre o autor
Arthur Votto Cruz

Advogado graduado pela Universidade Federal do Rio Grande - FURG.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CRUZ, Arthur Votto. Em busca de uma justiça possível:: considerações acerca de um modelo de justiça em face do desenvolvimento humano e transformação social. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4741, 24 jun. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/34626. Acesso em: 22 dez. 2024.

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