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Em busca de uma justiça possível:

considerações acerca de um modelo de justiça em face do desenvolvimento humano e transformação social

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24/06/2016 às 13:24
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 DESENVOLVIMENTO E MUDANÇA SOCIAL NO BRASIL: UM DESAFIO DA JUSTIÇA.

Nos últimos anos o Brasil vem passando por um processo inédito de crescimento econômico e de expansão das políticas sociais. Vários programas sociais têm conseguido lograr êxito na tarefa de distribuir a renda proveniente do excelente rendimento da economia do país, tendo atingido inclusive altos índices do PIB por vários períodos consecutivos.

O sucesso do Estado brasileiro em elevar a renda de uma parcela significativa de brasileiros, inclusive retirando 26 milhões de brasileiros da linha da pobreza[27] é inegável. Pode-se vincular esse bom desempenho das políticas sociais brasileiras aos programas Fome Zero, Bolsa Família, Bolsa Escola, entre outros que têm tido sua atuação expandida para atender cada vez mais famílias.

Da mesma forma, a oferta de serviços de atenção à saúde, saneamento básico, a criação de novas escolas e universidades e incentivos fiscais aos pequenos produtores rurais e empresários vêm melhorando bastante a vida dos brasileiros menos afortunados. Em primeira análise esse é um sinal positivo dos esforços das instituições em eliminar as desigualdades historicamente estabelecidas entre os pouquíssimos ricos e os numerosos pobres.

Os resultados das políticas de distribuição de bens primários e de renda no Brasil são tão notáveis que conquistaram o respeito de muitos outros países, bem como de instituições internacionais preocupadas com as questões sociais.

Em outubro de 2013 a ISSA – International Social Security Association[28] – nominou o programa Bolsa Família com o ­Award for Outstanding Achievement in Social Security[29], considerado o “Nobel social”, pelo impressionante feito de que, a cada real gasto com o programa, a economia girou 240% a mais em comparação ao período sem o Bolsa Família. O mesmo estudo que garantiu o prêmio ao programa demonstra que se esse fosse extinto, a pobreza passaria de 3,6% da população para 4,9%.[30]

Assim sendo, vê-se que programas como o Bolsa Família, estabelecido pela Lei 10.836/2004 e o Bolsa escola, positivado no sistema jurídico sob a Lei 10.219/2001 vêm, inter alia, sendo os principais responsáveis pela importante redução da desigualdade de renda no país. Dessa maneira, fica evidente que qualquer ação política que venha a restringir a atuação dessas políticas sociais, configuraria um sério retrocesso no processo de redistribuição igualitária da renda no Brasil.

Ocorre que apesar desses avanços, podem remanescer problemas e situações de injustiça que a distribuição equânime da renda e de bens primários não pode resolver; a despeito dos esforços estatais, o Brasil ainda é um dos países mais desiguais do mundo. De acordo com o Relatório do Desenvolvimento Humano de 2013 do PNUD[31], com os valores ajustados aos níveis de desigualdade, o país passaria a ocupar a 97ª posição no ranking do IDH, 12 posições abaixo da que ocupa se não levassem em conta as desigualdades.

Assim sendo, enquanto os índices do PIB e do IDH relativo cresce, ainda existem 11 milhões de famílias ainda dependem exclusivamente dos programas sociais do governo para subsistirem. Esse fato, aliado à oferta ainda insuficiente de serviços básicos de saúde, educação e saneamento, põe em cheque a ideia de que se está vivenciando um real processo de desenvolvimento e mudança social.

Então qual é o motivo que faz com que o Brasil permaneça com um baixo índice real de desenvolvimento humano? Por que ainda se observa uma enorme parcela da população que permanece à margem dos avanços econômicos e tecnológicos? Por qual razão reiteradamente são noticiadas violações aos direitos humanos dos cidadãos brasileiros? Por que não se pode dizer que a sociedade brasileira é uma sociedade consideravelmente mais justa?

A resposta pode ser obtida a partir da análise das políticas econômicas brasileiras e da muito recente cultura democrática brasileira. Apenas no ano de 1988 – com exceção de alguns breves períodos na década de 60 – é que o Brasil pode presenciar uma real oportunidade de empoderamento popular.

No Brasil, bem como em todo o mundo o sistema capitalista é hegemônico e a lógica liberal ainda é dominante nas discussões econômicas e políticas, o desenvolvimento humano, porém, parece ser um luxo para muito poucos. A ideia de que as forças reguladoras do mercado, a competição e o progresso tecnológico seriam instrumentos de controle na distribuição igualitária da riqueza e promoveriam o desenvolvimento e harmonia entre as classes está se provando cada vez mais falha.

O sistema capitalista neoliberal conseguiu frear a “ameaça comunista” no século XX, porém não conseguiu responder às expectativas otimistas de eliminação das injustiças e desigualdades; ao contrário, essas desigualdades só aumentaram. De acordo com os recentes estudos de Thomas Piketty (PIKETTY, 2014), apenas uma ínfima parcela da população é detentora da maior parte das riquezas de um país, sendo essa realidade mantida por uma lógica capitalista que não tende a mudar,  e que ao contrário só piora, levando em conta que cada vez mais, menos pessoas concentram a riqueza mundial.[32]

Esse cenário pessimista apresentado por Thomas Piketty, segundo o autor, só poderia ser resolvido através de um controle maior do estado democrático sobre as questões de distribuição da riqueza. Segundo o economista francês, apenas a adoção de políticas firmes de distribuição das riquezas e da promoção das capacidades é que será possível se estabelecer um sistema de desenvolvimento mais justo e igualitário, culminando no câmbio social das classes menos favorecidas (PIKETTY, 2013. p. 336).

Essa realidade apresentada por Piketty, aliada ao pouco interesse dos governos em realizar políticas de promoção do desenvolvimento humano e também ao deturpado senso de responsabilidade da sociedade – indivíduos e instituições – perante as desigualdades sociais, a pobreza, a violência, a fome, a mortalidade prematura, a violação dos direitos civis, são algumas das principais causas de situações de manifesta injustiça.

Nesse sentido, vê-se que o sistema econômico adotado pelo Brasil é um dos fatores preponderantes para a permanência das situações de desigualdades e injustiça social.

A exclusão sistemática do povo brasileiro da tomada das decisões relevantes para o desenvolvimento e mudança social, bem como a ausência de mecanismos que promovam o efetivo escrutínio público sobre os anseios da grande parcela da população, são outros fatores fundamentais para a compreensão do caso brasileiro. Igualmente relevante para o caso é a ineficácia dos direitos humanos, especificamente no que se refere aos membros historicamente marginais da sociedade brasileira.

Apenas uma parte bem específica da população brasileira pôde sentir os efeitos do desenvolvimento econômico e social dos últimos anos. É facilmente possível identificar os grupos que recebem tratamento diferenciado e não conseguem atingir os mesmos níveis de desenvolvimento que outros segmentos da população mesmo através dos recentes e valorosos esforços governamentais.

Os negros, os povos indígenas, os sertanejos do nordeste, os homossexuais, as mulheres, os favelados são apenas exemplos da endêmica desigualdade brasileira. Além do desenvolvimento desses setores da sociedade se dar em ritmo mais lento, são reiterados os casos de violência sofrida por esses grupos, seja da parte da sociedade, seja dos veículos de comunicação ou até mesmo do próprio Estado brasileiro.

O caso mais específico dos negros pode ser utilizado a título exemplificativo: séculos de escravidão culminaram na marginalização, discriminação e preconceito para com as populações negras. Essa realidade culminou na lamentável desigualdade social que se encontra com relação aos negros e não negros no Brasil, levando aqueles a atingir níveis de escolaridade baixos, maior desemprego, menores salários e menor expectativa de vida. De acordo com o IPEA:

Conforme apontamos na introdução, a escravidão legou à nação um contingente populacional com baixíssimos níveis educacionais, além de uma ideologia racista.

Vários autores têm documentado o padrão internacional de persistência educacional intergeracional, como Behman, Gaviria e Székely (2001). Black et al. (2005), num dos mais abrangentes trabalhos sobre o tema, encontraram uma significativa relação causal entre educação da mãe e educação do filho, mas não observaram qualquer efeito significativo entre a educação do pai e a educação da criança. Levando a valor de face esses achados, é possível pensar que a cultura machista, ainda hoje presente no Brasil, tenha contribuído, ao longo do tempo, para reforçar a persistência da baixa escolaridade da população negra. Ou seja, como a criação é dada predominantemente pela mãe, e esta, sendo historicamente pouco educada, tende a transmitir um baixo nível educacional para os seus filhos. (IPEA, 2013, p. 4-5.).

De acordo com estudo apresentado pelo IPEA (IPEA, 2013), a expectativa de vida dos negros no Brasil é em média 3 anos inferior do que a dos não negros. Esse é um reflexo da prevalência dos números de homicídios na população negra, consideravelmente superior do que o caso dos não negros. Segundo o gráfico do IPEA:

GRÁFICO 02 – Perda de expectativa de vida ao nascer ocasionada por violência.

Fonte: IPEA, 2010.

Assim, fica evidente que a população negra no Brasil ainda sofre com os efeitos de séculos de violação dos direitos humanos, de exploração econômica, enfim, de injustiça manifesta. Esse fato evidentemente demonstra que mesmo com a distribuição equânime de serviços de saúde com o sistema único de saúde, o SUS, com a oferta de vaga universal em escolas, com os serviços da seguridade social preservados, não se observam as mesmas capacidades entre os negros e os não negros em alcançar uma vida que têm razão em valorizar.

Sendo assim, vê-se que a justiça distributiva, focada nas oportunidades e na distribuição equânime de bens primários – defendida por John Rawls, Ronald Dworkin – não consegue explicar o porquê das desigualdades enfrentadas pelos negros no Brasil[33], tendo sido uma contribuição muito mais importantes para os casos de países mais desenvolvidos como os EEUU, Reino Unido, por exemplo. Dessa forma, fica evidente que o pensamento liberal e utilitarista não tem efetividade no caso brasileiro, uma vez que a preocupação da justiça como equidade não permeia os problemas reais da situação das desigualdades no Brasil.

O approach de Amartya Sen parece fazer mais sentido, tendo em vista que seu enfoque se dá para além da análise da satisfação pessoal e da distribuição equânime de bens primários como renda, alimentos e terra. Sen acredita que são essenciais para a promoção da justiça social e do desenvolvimento a efetiva participação dos indivíduos na vida política do seu país, o perfeito exercício da cidadania, seguridade social, proteção contra a demissão arbitrária, o gozo de direitos humanos e fundamentais juntamente com a oferta igualitária de bens primários.

Segundo o economista indiano:

O problema pode ser particularmente grande no contexto da desigualdade de liberdades substantivas, quando existe um acoplamento das desvantagens (como por exemplo a dificuldade de uma pessoa incapacitada ou sem preparo profissional para auferir uma renda para a capacidade de viver bem).  Os abrangentes poderes do mecanismo de mercado têm de ser suplementados com a criação de oportunidades sociais básicas para a equidade e a justiça social. (SEN, 2013, p. 190).

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Ainda, o autor indica que para os países em desenvolvimento, como é o caso do Brasil, é necessário preferencialmente a criação e oferta de oportunidades sociais através de políticas públicas, tais como expansão dos serviços públicos de saúde, educação e reforma agrária. Através do compartilhamento dessas oportunidades sociais será possível que uma parcela muito maior da população possa participar do processo de expansão econômica.

Sen cita o exemplo do sucesso coreano e japonês para ilustrar como o investimento estatal em saúde e educação, antes mesmo da eliminação da pobreza, foi fundamental para o desenvolvimento humano nesses países. Esse desenvolvimento humano cria as oportunidades sociais necessárias à expansão das capacidades humanas e da qualidade de vida.

A expansão de serviços de saúde, saúde, educação, seguridade social etc. contribui diretamente para a qualidade de vida e seu florescimento. Há evidencias até de que, mesmo com renda relativamente baixa, um país que garante serviços de saúde e educação a todos pode efetivamente obter resultados notáveis da duração e qualidade de vida de toda a população. A natureza altamente trabalho-intensiva dos serviços de saúde e educação básica – e do desenvolvimento humano em geral – faz com que eles sejam relativamente baratos nos estágios iniciais do desenvolvimento econômico quando os custos da mão de obra são baixos. (SEN, 2013, p. 191).

O Brasil não seguiu o modelo asiático na adoção da prioridade das políticas sociais. Anos de desinteresse pela questão do desenvolvimento humano demarcam o motivo pelo atraso do país em adotar as atuais políticas de distribuição de renda e ampliação dos serviços de saúde e educação.

Apenas muito recentemente o país começou a adotar políticas de igualdade de acesso e de oportunidades aos setores mais desprivilegiados da sociedade brasileira. As políticas públicas que concedem cotas de vagas para estudantes negros, indígenas e provenientes do ensino público para o ingresso no ensino superior é um exemplo claro do esforço dos últimos governos para abrandar as dificuldades de acesso desses grupos no sistema de ensino.

A noção de que o desenvolvimento humano é um “luxo” e que os países em desenvolvimento não podem perder seu tempo com isso, foi a ideia que prevaleceu no Brasil até muito recentemente. O Brasil até o início dos anos 2000 obteve grande êxito no campo do crescimento econômico, tornando-se rapidamente um país rico de elevando PIB, porém sem nenhum sucesso no aumento do desenvolvimento e qualidade de vida dos brasileiros.

Nesse sentido, os governos brasileiros optaram por primeiro enriquecer e depois se preocupar com as vidas que os cidadãos estavam levando. A recente preocupação com a questão do desenvolvimento humano e das mudanças sociais no Brasil encontra a difícil tarefa de estabelecer a expansão de serviços que atualmente têm um custo mais elevado do que teriam se a oferta universal tivesse sido estabelecida quando os preços com mão de obra, materiais, etc. eram mais baixos. Essa realidade pode ser sentida com grande intensidade no que diz respeito, por exemplo, aos serviços de atenção básica de saúde.[34]

Outra contribuição importante da ideia de justiça de Amartya Sen para o Brasil é a importância das instituições democráticas e das liberdades políticas para o desenvolvimento humano e para as mudanças sociais. Novamente no Brasil, as liberdades políticas e a democracia foram tratadas como um luxo a que o país “não podia se dar”.

A questão de por que se preocupar com as liberdades políticas e com o empoderamento popular perante as enormes e intensas necessidades econômicas foi alvo de intensas discussões entre os organismos internacionais. Em 1993, na conferência de Viena sobre os direitos humanos foi pautada a necessidade de se estabelecer em caráter de urgência a aprovação geral de direitos civis e políticos básicos em todo o mundo, sobretudo nos países em desenvolvimento.

Na ocasião, ao invés do proposto inicialmente, um bloco de países encabeçados pela China, Cingapura e Estados Unidos propôs que o enfoque do encontro deveria se dar sobre os direitos econômicos tendo em vista as necessidades materiais enfrentadas pelos países do terceiro mundo, tendo as urgências no sentido de liberdades civis e políticas cada vez menos importância perante as necessidades econômicas. Essa ideia prevaleceu sobre as outras e foi aplicada, tendo pouca ou nenhuma eficácia no processo de desenvolvimento dos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento.

Ficou evidente, com o passar do tempo, que as liberdades políticas e a democracia têm importância fundamental para o desenvolvimento humano, uma vez que essas liberdades são capazes de promover as capacidades básicas humanas, de aumentar o grau em que as pessoas são ouvidas quando expressam e defendem suas reivindicações de atenção política e de conceituar as suas necessidades em um contexto social. (SEN, 2013, p. 195).

 No Brasil, a experiência democrática é, em comparação com outros países mais desenvolvidos, extremamente recente, sendo a Constituição Federal de 1988 o marco inicial dessa tradição política no país. Anos de governos ditatoriais deixaram marcas profundas na mentalidade política e nas instituições brasileiras, o que está relacionado diretamente com o atraso do processo de desenvolvimento humano.

A impossibilidade da população de se manifestar acerca das suas necessidades foi a tônica até o fim do regime militar, estando viciado o canal de ligação entre os anseios do povo e o governo. Enquanto o Estado brasileiro se preocupava em construir obras faraônicas subutilizadas como a estrada Transamazônica, o povo calado por conta da censura e criminalização dos movimentos sociais passava fome, sofria com epidemias e tinha seus direitos humanos violados diariamente.

Claramente as necessidades sociais e econômicas da população estavam bem distantes das ações que o governo militar adotava sem sofrer nenhuma oposição. O controle dos meios de comunicação através da censura tornava impossível se ter um conhecimento fidedigno do que realmente se passava na política brasileira, estando todos os abusos estatais sobre os direitos humanos, a real situação de miséria da população e as desastrosas políticas econômicas alheios da discussão pública.

A abertura política e posteriormente a promulgação da Constituição Federal de 1988 significaram um enorme avanço do Brasil em direção a um contexto mais democrático e garantidor das liberdades políticas.  Entretanto, mesmo com o fim do regime militar e com a abertura política, muitos desses problemas ainda não foram solucionados, permanecendo profundamente enraizados nas instituições brasileiras.

Atualmente a liberdade de expressão está garantida no Brasil não existindo por parte do governo nenhum controle significativo acerca do que é ou não publicado, porém ainda hoje os mecanismos de expressão pública não funcionam plenamente, em parte por conta de um controle quase monopolizador dos meios de comunicação. Esse fenômeno faz com que apenas um ponto de vista, defendido por grupos de comunicações com posicionamentos afins, seja veiculado, afetando a possibilidade da população de analisar através de mais vieses as informações.

Esse fenômeno prejudica substancialmente a forma como se dá a discussão pública acerca dos pontos importantes para a satisfação das vontades do povo brasileiro. Em um contexto em que os meios de comunicação veiculam apenas um ponto de vista hegemônico, os interesses de alguns segmentos da sociedade continuam sem ser ouvidos.

Da mesma forma, muitos movimentos sociais ainda sofrem com o tratamento que recebem por parte das polícias (principalmente da Polícia Militar), do judiciário, e até mesmo da grande mídia brasileira. O fenômeno da criminalização dos movimentos sociais é uma herança ainda muito presente do regime militar que, infelizmente, ainda perdura calando e tratando como criminosos aqueles que se manifestam.

Os movimentos sociais têm importância crucial no processo da discussão democrática, servindo muitas vezes como uma oposição à hegemonia, devendo ser tratados como instrumentos legítimos de mudança social e cultural. Acontece que reiteradamente esses movimentos sofrem com a violência de grupos contrários e inclusive das polícias, que muitas vezes ferem, prendem sumariamente e matam quem está apenas defendendo suas ideias.

Esses e outros problemas fazem com que o Brasil ainda hoje seja um exemplo de país desigual e com muito a ser feito em relação às manifestas injustiças presentes na sociedade brasileira. Anos de prevalência dos interesses dos segmentos mais ricos da sociedade, bem como os desrespeitos aos direitos humanos e à democracia fizeram com que atualmente seja muito mais difícil a mudança do paradigma social no Brasil, fazendo com que apenas o esforço mútuo e incansável das instituições sociais poderá combater essas injustiças.

Apesar de todos esses percalços, o caminho para uma sociedade brasileira mais justa já está sendo traçado. As recentes políticas de eliminação da pobreza, como o Fome Zero, Bolsa Família e Bolsa Escola, as políticas de promoção da igualdade social e de gênero tais como as leis de cotas raciais e a Lei Maria da Penha[35], os programas de promoção da moradia própria, a criação de novas vagas no sistema de ensino, a criação de novas universidades, a expansão dos serviços de saúde, são apenas alguns exemplos do que tem sido feito no sentido da promoção da justiça social no Brasil.

Da mesma forma, ainda há muito ainda a se fazer para se minimizar as ainda patentes injustiças na sociedade brasileira. Os programas já existentes devem ser expandidos, devendo atingir aqueles que ainda não são beneficiados com essas políticas.

Da mesma forma, o foco dos programas sociais deverá ser expandido para além da quantidade de renda auferida ou da distribuição de bens primários. Ao contrário, deverá ser considerada vida que as pessoas são capazes de levar, com base nas suas liberdades básicas e nos funcionamentos. Sobre os funcionamentos:

Os funcionamentos são de difícil caracterização, podendo variar entre estar livre de doença de simples prevenção, estar bem-nutrido, ter acesso a educação, e entre outros mais complexos, como ser apto à felicidade ou ser capaz de se inserir na vida comunitária. As capacitações estão intimamente relacionadas com os funcionamentos, representando a capacidade que as pessoas têm para realizar funcionamentos (PORTELLA, 2013).

A participação popular nos espaços de tomada das decisões relevantes à justiça deve igualmente ser ampliada. Muitos setores marginalizados da sociedade brasileira contam com muito pouca ou nenhuma representação política, ao passo que os grupos hegemônicos dominam o cenário político nacional.

Um grande passo nesse sentido seria a democratização dos meios de comunicação e dos espaços públicos de discussão. É preciso oportunizar que seja ouvida a voz dos movimentos sociais, grupos e indivíduos que têm demandas e que essas cheguem efetivamente aos espaços de realização. As ideias deverão ser sempre debatidas e confrontadas num espaço razoável e arrazoado num ambiente democrático.

Outro ponto importante para que as injustiças sejam combatidas no Brasil é o respeito aos direitos humanos por parte das instituições estatais. Infelizmente a garantia de direitos humanos ainda é uma realidade apenas para algumas parcelas bem definidas da população brasileira, quais sejam as elites e os grupos hegemônicos.

As garantias constitucionalmente positivadas desde 1988 devem prevalecer sobre a mentalidade e o caráter ditatorial de algumas instituições nacionais. Os episódios de tortura policial, prisões ilegais, vícios no devido processo legal, etc. devem ser combatidos com veemência através da denúncia aos órgãos competentes, da responsabilização dos agentes violadores desses direitos e da veiculação desses episódios na mídia.

Em suma, o que se espera é uma mudança da concepção cultural do que é justiça no Brasil. O atual paradigma ainda está muito próximo do conceito liberal e utilitarista, que não consegue atender as necessidades da realidade brasileira.

Essa mudança só poderá vir através da discussão pública, razoável e racional, da força da mobilização daqueles que são reiteradamente alvo das injustiças, do respeito aos direitos humanos, da eliminação da pobreza e das desigualdades sociais num esforço conjunto das instituições e dos indivíduos. Com essas mudanças, o Brasil poderá avançar no que diz respeito ao desenvolvimento humano e poderá perpetrar as mudanças sociais tão importantes para se caminhar em direção a uma sociedade mais justa.

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Sobre o autor
Arthur Votto Cruz

Advogado graduado pela Universidade Federal do Rio Grande - FURG.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CRUZ, Arthur Votto. Em busca de uma justiça possível:: considerações acerca de um modelo de justiça em face do desenvolvimento humano e transformação social. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4741, 24 jun. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/34626. Acesso em: 10 mai. 2024.

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