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A questão do cartel

20/06/2016 às 09:13
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A operação Lava jato revelou a existência de organização criminosa que operava na Petrobras formando um cartel de grandes empreiteiras que escolhia as obras, decidia quem as executava e fixava os preços. Quais as consequências legais dessa ação?

Noticia-se que durante os depoimentos colhidos dentro da chamada operação “Lava-Jato”, foi revelada a existência de organização criminosa que operava na Petrobras formando um cartel de grandes empreiteiras que escolhia as obras, decidia quem as executava e fixava os preços.

Necessário estudar o instituto do cartel, dentro do direito econômico e suas repercussões no  direito penal.

Em voto proferido no Ato de Concentração 08012.001697/2002-89, requerentes Nestlé Brasil Ltda e Chocolates Garoto S.A, disse o então presidente do CADE, João Grandino Rodas: ¨(...) a ordem econômica se sustenta sobre dois fundamentos: a livre iniciativa e a valorização do trabalho humano e, também sobre um objetivo nuclear: assegurar a todos uma vida digna, de acordo com os preceitos da prática social. Desta forma, com esses pressupostos básicos, constrói-se a ordem social, decorrendo deles, também, os limites da intervenção governamental¨(folhas 08 do voto).

Toda a atividade econômica, seja pública ou privada, deve ser exercida na busca da existência digna de toda a coletividade.

A valorização do trabalho humano e a livre iniciativa demonstram que a Constituição de 1988 prevê uma sociedade brasileira capitalista moderna, onde haja a conciliação e composição dos titulares de capital e de trabalho como uma necessidade a ser viabilizada pela atuação do Estado.

Por sua vez, André Ramos Tavares(Direito constitucional econômico, 3ª edição, São Paulo, editora Método, pág. 256) acentua que a livre concorrência é um dos fundamentos de qualquer sistema capitalista.

Carlo Barbieri Filho(Disciplina jurídica da concorrência: abuso do poder econômico, São Paulo, Resenha Tributária, 1984, pág. 119) assim define: “Concorrência é disputar, em condições de igualdade, cada espaço com objetivos lícitos e compatíveis com as aspirações nacionais. Consiste, no setor econômico, na disputa entre todas as empresas para conseguir maior e melhor espaço no mercado.”

Ainda é André Ramos Tavares(obra citada,pág. 256) quem define a livre concorrência como a abertura jurídica concedida aos particulares para competirem entre si, em segmento lícito, objetivando o êxito econômico pelas leis de mercado e a contribuição para o desenvolvimento nacional e a justiça social.

Portanto, a livre concorrência, longe de exigir uma absoluta abstenção do Estado, impõe o que se chama de intervenção normativa e uma fiscalização deste, no sentido de permitir e garantir que no mercado permaneça a liberdade geral, que poderia estar sendo tolhida pela atuação de algum agente econômico. Esse princípio embasa o artigo 170, inciso IV, da Constituição.

Luiz Alberto David  Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior(Curso de direito constitucional, 4ª edição, São Paulo, Saraiva, 2001, pág. 375) lembram que enquanto princípio da ordem econômica e financeira, a livre concorrência  tem por objetivo impedir a formação do monopólio do mercado, na medida em que o preceito constitucional abomina formas de dominação do mercado, como cartéis, trustes e monopólios em geral. Conclui-se que há conceitos verdadeiramente antitéticos: monopólio e livre concorrência.

A Constituição Federal a isso atenta, em seu artigo 173, § 4º, determina que o Estado estabeleça em lei punições às práticas que distorcem a situação de livre concorrência, estatuindo, a respeito de condutas da iniciativa privada, que “ a lei reprimirá o abuso de poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e o aumento arbitrário dos lucros”.

No Brasil, há o sistema brasileiro de defesa da concorrência, formado pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE e pela Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda, com atribuições previstas em lei(Lei 12.529/2011).

A concorrência empresarial, em sendo assim, não é um valor-fim, mas um valor-meio, a ser seguida na tutela do direito econômico.

Distinguem-se posição dominante no mercado e poder econômico: Para Sérgio Varella Bruna(O poder econômico, São Paulo, Ed. RT, 2001, pág. 115), posição dominante é aquela que confere a seu detentor quantidade substancial de poder econômico ou de mercado, a ponto de que pode ele exercer influência determinante sobre a concorrência, principalmente, no que se refere ao processo de formação de preços.

O legítimo uso do poder econômico não é censurável. Reprime-se o abuso de poder, que resulta na exclusão de outros agentes econômicos, que ficam sem condições de competir. Comprova-se tal abuso de poder econômico quando ele é usado para impedir a iniciativa dos outros, com a ação no campo econômico ou quando o poder econômico passa a ser o fator concorrente para um aumento arbitrário de lucros do detentor do poder.

São formas de manifestação desse abuso de poder econômico: a formação de trustes, cartéis, consórcios, holdings, multinacionais, etc, como apontou Tupinambá Miguel Castro do Nascimento (A ordem econômica e financeira e a nova Constituição, Rio de Janeiro, AIDE, 1989, pág. 29).

Por sua vez, são formas de manifestação do poder econômico e seu abuso: a dominação do mercado(imposição de preços de mão-de-obra, de matéria-prima, de ofertas); a eliminação da concorrência.

Estudam-se aqui os seguintes conceitos:

- cartel: A Resolução CADE 20/1999 descreve cartel como acordo explícito ou tácito entre concorrentes do mesmo mercado envolvendo parte substancial de mercado relevante, em torno de itens como preços, quotas de produção e distribuição e divisão territorial, na tentativa de aumentar preços e lucros conjuntamente para preços mais próximos ao de monopólio. Além de infração administrativa, há crime, configurado na Lei 12.529/2011;

- monopólio: designa situação de concorrência imperfeita, em que uma única empresa detém o mercado de um determinado produto ou serviço, influenciando o preço que comercializa;

- oligopólio: é forma evoluída de monopólio, no qual um grupo de empresas promove o domínio de determina oferta de preços e ou de serviços;

- truste: designa as empresas ou grupos que, sem perder a autonomia, se reúnem com o objetivo de dominar o mercado e suprimir a livre concorrência. São, na experiência, grandes grupos ou empresas que controlam todas as etapas da produção, desde a retirada de matéria-prima da natureza até a distribuição das mercadorias;

-consorcio de empresas: consiste na associação de companhias ou de qualquer outra sociedade, sob o mesmo controle ou não, que não perderão sua personalidade jurídica, para obter finalidade comum ou determinado empreendimento, geralmente de grande vulto ou de custo muito elevado, exigindo, para a sua execução, conhecimento técnico especializado e instrumental técnico de alto padrão;

-joint venture: é uma associação de empresas, que pode ser definitiva ou não, com fins lucrativos, visando explorar determinados negócios, sem que nenhuma delas perca a sua personalidade jurídica, algo que difere de sociedade comercial, porque se relaciona a um único projeto cuja associação é dissolvida, de forma automática, após o seu término;

-incorporação: é a operação pela qual uma ou mais sociedades são absorvidas por outra que lhe sucede em todas as suas obrigações(Lei 6.404/1976, artigo 227). A sociedade incorporada deixa de existir, mas a empresa incorporadora continuará com sua personalidade juridica;

-fusão: é a operação pela se unem duas ou mais sociedades para formar sociedade nova, que lhes sucederá em todos os direitos e obrigações(artigo 228 da Lei 6.404/1976). Na fusão, todas as sociedades fusionadas se extinguem, para formar uma nova sociedade,  que terá personalidade jurídica diversa daquelas;

-cisão: é a operação pela qual a companhia transfere parcelas do seu patrimônio para uma ou mais sociedades, constituídas para esse fim ou já existentes, dando-se por extinta a companhia cindida, se houver versão de todo o seu patrimônio ou dividindo-se o seu capital, se parcial a cisão(artigo 229 da Lei 6.404/1976);

-ato de concentração econômica: De acordo com o artigo 90 da Lei 12.529/2011, os atos de concentração são as fusões de duas ou mais empresas anteriormente independentes, as aquisições de controle ou de partes de uma ou mais empresas por outras; as incorporações de uma ou mais empresas por outras ou ainda a celebração de contrato associativo, consórcio ou joint-venture entre duas ou mais empresas. Não são atos de concentração, para efeitos legais, os consórcios ou associações destinadas às licitações promovidas pela administração pública direta ou indireta e aos contratos delas decorrentes. O controle dos atos de concentração que devam ser obrigatoriamente submetidos à aprovação do CADE deve ser prévio, uma vez que eles não devem ser consumados antes de apreciados pelo Conselho. Tal procedimento de análise é previsto nos artigos 53 a 65 da Lei 12.529/2011;

  -mercado relevante: Segundo a Resolução CADE 20/1999, é o espaço – em sua dimensão produto e geográfica – no qual é razoável supor a possibilidade de abuso de posição dominante. Costuma-se dizer que a Resolução citada sugere a utilização do teste do monopolista hipotético, segundo o qual o mercado relevante é definido como o menor grupo de produtos ou a menor área geográfica na qual um suposto monopolista poderia manter seu preço acima do nível competitivo por um período significativo de tempo. Sendo assim a possibilidade de substituição do produto ou serviço(mercado do produto) devem ser extremamente avaliados;

-posição dominante: A redação dada pela Lei 8.884/94 falava em posição dominante quando havia controle de parcela substancial do mercante relevante, seja como fornecedor, intermediário, adquirente, financiador, o que se presumia acontecer quando alcançasse 20% da posição do mercado. A redação dada pela Lei 12. 529/2011 prevê que a posição dominante será presumida sempre que: uma empresa ou grupo for capaz de alterar unilateralmente ou coordenadamente as condições de mercado ou quando controlar 20% ou mais de um mercado, podendo este patamar ser alterado para se adequar à realidade de determinados setores;

-conduta anticompetitiva: é qualquer ato isolado adotado por pessoas físicas ou jurídicas que tenham por objetivo produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados: limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa; dominar mercado relevante de bens ou serviços; aumentar de forma arbitrária lucros; exercer de forma abusiva posição dominante. Tem-se os exemplos de condutas do artigo 36 da Lei 12.529/2011, tais como a fixação de preços ou condições de venda entre concorrentes(cartel), ajustes de preços e condições em licitações públicas, discriminação de preços, venda casada, recusa de negociação, prática de preços predatórios e destruição de matérias primas;  

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- dumping: pratica comercial que consiste em uma ou mais empresas de um país venderem seus produtos, mercadorias ou serviços por preços extraordinariamente abaixo de seu valor justo para outro país(preço que geralmente se considera menor do que esse cobra pelo produto dentro do país exportador), por um tempo, visando prejudicar e eliminar os fabricantes de produtos similares concorrentes no local, passando então a dominar o mercado e impondo preços altos.

A Lei 12.529/2011 prevê tipos penais tais como: abusar do poder econômico, dominando o mercado ou eliminando, total ou parcialmente, a concorrência mediante qualquer forma de ajuste ou acordo de empresas; firmar acordo, convênio, ajuste ou aliança entre ofertantes, visando a fixação artificial de preços ou quantidades vendidas ou produzidas, ao controle regionalizado do mercado por empresa ou grupo de empresas, ao controle, em detrimento da concorrência, de rede de distribuição ou de fornecedores. Tais crimes têm pena prevista de dois a cinco anos e multa e são delitos de perigo e formais que devem ser punidos independentemente de resultado.  

A lei prevê a formação de cartel, que é o ajuste de empresas, independente de contrato, para atuar da mesma maneira, impondo os mesmos preços e, por consequência, controlar a oferta e a procura de bens e produto de circulação. Trata-se de crime permanente e não instantâneo de efeitos permanentes. No crime em discussão o momento consumativo se prolonga no tempo de acordo com a vontade dos agentes que têm o domínio do momento da consumação do crime.

Pune-se a formação de acordo, convênio, ajuste ou aliança que tenha o especial fim de gerar a fixação artificial(fraudulenta, dissimulada) de preço ou de quantidade vendida em divergência com a realidade. Pune-se a formação de acordo, convênio, ajuste ou aliança, entre ofertantes que tenham o objetivo de controlar o mercado de produtos ou serviços em determinada região e, por consequência, impeçam que novos concorrentes surjam.

Tais condutas afrontam os princípios constitucionais da livre iniciativa e livre concorrência, além de impedir que o consumidor possa escolher contratar com outras empresas.  

Os tipos são dolosos.

Há  abuso de poder econômico mediante a discriminação de preços de bens ou de prestação de serviços, onde se pode fixar preços para diferentes consumidores de mesmo produto. Empresários do mesmo grupo econômico ao invés de estabelecerem os preços de acordo com os seus custos e de acordo com a chamada  “ Lei da oferta e da procura” , assim agem, de forma artificiosa, com o objetivo de estabelecer monopólio  ou de eliminar, total ou artificialmente a concorrência.

O abuso de poder econômico pode ser feito: por sonegação, destruição ou inutilização de bens de produção ou de consumo, com o fim de estabelecer monopólio ou de eliminar, de forma total ou parcial, a concorrência. Pode ainda ser praticado através do mecanismo de oscilações de preços em detrimento da empresa concorrente ou vendedor de matéria-prima, mediante um ajuste ou acordo, ou por outro meio fraudulento. Tal significa provocar oscilação de preços, com o especial fim de causar prejuízo à empresa concorrente ou ao vendedor de matéria prima.

A gravidade dos fatos trazidos na investigação reportada é traduzida, além de outras diversas ilicitudes, pela notícia de que havia um cartel de empreiteiras que teriam usado o superfaturamento para pagar propinas. Falava-se num “clube de empreiteiras”, que teria dezesseis empresas, que escolhiam as obras e pagavam propinas.

É caso de investigar os fatos em todas as suas circunstâncias, aguardando, a seu tempo, as punições devidas.

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. A questão do cartel. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4737, 20 jun. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/34768. Acesso em: 2 nov. 2024.

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