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Investigação preliminar no processo penal: a (in)validade probatória dos atos de investigação

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27/06/2016 às 15:46
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3 OS ATOS DE INVESTIGAÇÃO PRELIMINAR

Independentemente do modelo de investigação preliminar adotado, a investigação tem seu papel cumprido a partir do momento em que se evita acusações infundadas. Para isso a investigação preliminar busca trazer à luz determinado fato oculto, com seu respectivo autor, ou autores, e a devida e suficiente materialidade que faça o estado com máxima segurança exercer seu jus puniendi. Durante a persecutio criminis preliminar, ou jus persequendi, vários atos de investigação são realizados com escopo de esclarecer as reais circunstancias de tal fato oculto.

Acontece que, por mais importante que pareça a necessidade de se evitar uma infundada acusação em um demorado processo penal, a investigação preliminar nem sempre é obrigatória em todos os sistemas processuais penais. Alguns países adotam a investigação facultativa para exercício da ação penal, em outros são obrigatórios. Na Espanha, por exemplo, é adotado um sistema misto, em que para crimes mais graves a investigação preliminar é obrigatória e para crimes menos graves, é facultativa, assim assevera o art. 300 da LECrim Espanhola. (Lopes Jr., Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal, 2001, pp. 101-103)

No Brasil entende a doutrina que o nosso sistema é facultativo, pois o inquérito policial não é obrigatório, podendo o Ministério Público dispensá-lo, conforme preceitua o Art. 39 § 5º do Código de Processo Penal, in verbis:

Art. 39 [...] § 5º  O órgão do Ministério Público dispensará o inquérito, se com a representação forem oferecidos elementos que o habilitem a promover a ação penal, e, neste caso, oferecerá a denúncia no prazo de quinze dias. (grifo nosso).

Assim, a investigação poderá ser obrigatória ou facultativa. Já sobre os atos de investigação, podemos classificá-los em orais ou escritos; secretos ou públicos; e, ainda, quanto à eficácia probatória da investigação preliminar em atos de prova ou atos de investigação (relativo valor probatório). (Lopes Jr., Direito processual penal, 2014, p. 305).

3.1 Objeto da Investigação Preliminar

Se a investigação serve para evitar infundadas acusações, partindo de uma notitia criminis rumo ao esclarecimento do fato oculto supostamente delituoso, podemos então afirmar que o objeto da investigação preliminar é exatamente o fato constante na notitia criminis, ou seja, é o fato oculto a ser desvendado após a realização de diversos atos de investigação.

Segundo conceito narrado pelo professor Aury Lopes, entende-se que o objeto da investigação preliminar é “a matéria sobre a qual recai o complexo de elementos que a integram, isto é, os fatos narrados na notitia criminis ou obtidos ex officio pelos órgãos de investigação estatal”. (Lopes Jr., Direito processual penal, 2014, p. 293)

Assim, entende-se que o objeto da investigação preliminar é o commissi delicti constante na notitia criminis, pois é ele, no processo penal, que dá justa causa para que a acusação seja recebida pelo magistrado, conforme assevera o artigo 395, III do Codigo de Processo Penal, in verbis:

Art. 395. A denúncia ou queixa será rejeitada quando: 

III - faltar justa causa para o exercício da ação penal. (Grifo nosso).

Pergunta-se então, o quantum de conhecimento do fato oculto deve ser apurado na investigação preliminar, se tão somente o necessário a se demonstrar a justa causa e convencer o juiz da necessidade do início da ação penal, ou realização de atos que apurem o máximo de verdade sobre o fato delituoso?

3.2 Cognição na Investigação Preliminar

Para respondermos essa indagação é necessária, ab initio, uma breve análise do art. 41 do Código de Processo Penal, in verbis:

 Art. 41.  A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas. (Grifo nosso).

Como demonstrado, por força legal do artigo 41 do CPP, é necessário que haja uma apuração de todas as circunstâncias do fato delituoso para que haja o início da ação penal. Ou seja, incumbe à investigação preliminar esclarecer o fato delitivo, buscando individualizar as condutas de modo que a denúncia seja determinada e certa, no sentido da individualização das responsabilidades penais a serem apuradas no processo.  (Lopes Jr., Direito processual penal e sua Conformidade Constitucional, 2012, p. 426)

De certo, para a individualização das responsabilidades penais, é necessário que se tenha certo grau de conhecimento a respeito da autoria delitiva do fato apurado, não sendo suficiente apenas as circunstancias fáticas do fato de forma superficial, ainda mais em crimes mais complexos, como os financeiros e os afetos às organizações criminosas.

Acontece que, como era de se esperar, os atos delituosos são praticados a sorrelfa, de forma dissimulada, oculta, de índole secreta, e logicamente por motivos óbvios: tanto para não frustrar os próprios objetivos do criminoso, quanto para evitar as consequências do ato delitivo, ou seja, o devido processo penal e a respectiva pena, efeito jurídico do ato criminoso e do processo.

Por isso é necessário que os atos de investigação sejam direcionados com o objetivo de esclarecer, além de todas as circunstâncias acerca dos fatos trazidos na notitia criminis, como tempo do fato, modo (modus operandi) e lugar (locus delicti commissi), também a demonstração do Fumus Commissi Delicti, ou seja, a comprovação da existência daquele crime e indícios suficientes de autoria, exigência legal disposta no artigo 41, supra citado.

Entende-se aqui como indícios, as provas colhidas nessa fase que devem ser suficientemente capazes de embasar de forma segura a decisão do Juiz de receber a denúncia e daí dar prosseguimento à pretensão punitiva estatal, evitando-se injustas acusações em juízo.

Ainda em análise ao art. 41 do CPP, percebe-se que é necessário demonstrar indícios de autoria, e não a certeza absoluta de autoria. Isso quer dizer que não se pretende, com os atos de investigação, ter a certeza absoluta da autoria do fato criminoso, caso contrário seria a investigação um fim em si mesmo, dispensando-se o devido processo penal. Não é o caso, pois isso dizer que a investigação preliminar é uma investigação sumária, ou seja, limitada qualitativamente no campo probatório.

Não obstante, há casos em que a única prova de autoria do crime é a colhida no flagrante policial. Dispõe o artigo 6º do CPP que assim que a autoridade policial tiver conhecimento da prática da infração, deverá tomar providências imediatas, para que, em certos casos, não sejam alterados o estado e a conservação das coisas no cenário do delito cometido. Tourinho Filho entende que:

“Proibindo a alteração do estado e conservação das coisas, até terminarem os exames e perícias, a Autoridade Policial visa, com tal atitude, impedir a possibilidade de desaparecerem certos elementos que possam esclarecer o fato e até mesmo determinar quem tenha sido o seu autor” (grifo nosso) (TOURINHO FILHO, 2010, p. 282).

Conclui-se então que, via de regra, a investigação preliminar é limitada qualitativamente ao grau de cognição, ou seja, limita-se no campo probatório a criar um juízo de verossimilhança e não de certeza acerca da autoria delitiva, deixando para a fase processual a cognição plenária, sem limitações jurídicas de análise probatória de autoria.

3.3 O Sigilo dos Atos de Investigação

A publicidade dos atos processuais significa que são acessíveis a todos. É direito constitucional o acesso aos autos dos processos judiciais, salvo aqueles que tramitam em segredo de justiça. No entanto, apesar da publicidade ser regra, esta pode ser afastada quando necessário for para proteger a intimidade das partes, conforme corolário constitucional, in verbis:

Art. 5º [...] 

LX - a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem;

Como reza a Constituição Federal, apesar da publicidade ser a regra, excepcionalmente ela pode ser afastada em casos específicos, inclusive quando o interesse social exigir.

Fazendo-se uma comparação com os atos da investigação preliminar, que não são atos processuais, mas sim atos administrativos e pré-processuais, temos como regra atos também públicos. Publicidade é a regra, mas alguns atos podem ser declarados sigilosos. Os atos Sigilosos podem ainda ser divididos em atos de sigilo interno e atos de sigilo externo. (Lopes Jr., Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal, 2001)

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A publicidade dos atos processuais é regra e sobre o assunto paira pouca ou nenhuma dúvida, até por que, sendo um processo judicial, com direito ao contraditório, nada mais natural que as partes tenham acesso aos autos do processo e assim possam exercer plenamente seu direito constitucional da ampla defesa.

Já os atos da investigação preliminar são, via de regra e em tese, públicos para todos, que sem restrição alguma, podem ter amplo acesso ao procedimento investigatório. Mas assim como os atos processuais, que podem ter seu acesso restringido conforme o interesse social e a necessidade, os atos de investigação tem também seu grau de sigilo e restrito acesso, conforme necessidade da própria investigação e mandamento legal do art. 20 do Código de Processo Penal, in verbis:

Art. 20.  A autoridade assegurará no inquérito o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade.

 A polêmica reside exatamente nessa restrição, haja vista a investigação preliminar ser um procedimento inquisitivo e sem direito ao contraditório.

O Superior Tribunal Federal em 2009 editou súmula vinculante nº 14 que consagra o entendimento de que o acesso aos autos dos procedimentos investigatórios criminais não pode ser negado aos advogados dos investigados, in verbis:

SÚMULA VINCULANTE 14 - É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa

Vale ressaltar todavia, que o acesso diz respeito tão somente aos elementos de prova já documentados, ou seja, àqueles atos de investigação já concluídos dentro do procedimento investigatório, e por isso mesmo não carecerem mais de sigilo para o êxito das diligências investigativas.

O ministro Cezar Peluzo no HC 88.190 RJ faz a devida diferenciação dos atos que estão acobertados pelo sigilo e os atos que podem ser acessados pelo investigado. O eminente ministro divide os atos na fase preliminar em atos de investigação e atos de instrução. Segundo Min. Cezar Peluzo, é o caráter de definitividade que diferem as duas espécies de atos, sendo os já concluídos, documentados e que não mais se repetem considerados atos de instrução, in verbis:

[...] diante da prática de atos de instrução de caráter definitivo, que não mais se repetem, deve-se reconhecer a possibilidade de exercício de defesa [...]

Assim os atos de investigação devem seguir sigilosos, desde que necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade, até cessar a necessidade para tal medida, visando sempre o não comprometimento do êxito e bom sucesso da investigação, devendo serem documentados após concluídas as diligências. Por óbvio seria um absurdo abrir ao próprio investigado as diligências ainda não concluídas e as ainda por fazer. Por isso a lógica do art. 20 do CPP.

3.4 Atos de Investigação ou Atos de Prova

Os atos de comprovação e averiguação do fato e da autoria, considerados genericamente como atos de investigação (quando a cargo da polícia ou MP) ou de instrução preliminar (quando a cargo de Juiz de instrução), podem ser valorados de distintas formas pelo sistema jurídico.

O critério para a classificação tem por base a sentença, ou seja, se esses atos podem ser valorados e servir de base para a sentença ou não, como bem leciona Aury Lopes Jr. (Lopes Jr., Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal, 2001, p. 119)

Destarte, sendo o ato de investigação valorado como prova e servindo ao convencimento do julgador em sua sentença, seria ele considerado um ato de investigação com validade probatória. Para isso o ato de investigação realizado em fase preliminar deve ser realizado ante um juiz e sob o manto do contraditório, ou ratificado na fase processual.

Leciona Aury Lopes Jr. que atos de prova e atos de investigação tem natureza jurídica distintas. Segundo o nobre doutrinador os atos de investigação servem de forma distinta ao processo penal enumerando algumas de suas características, a saber:

  • São desenvolvidos sobre premissas hipotéticas e não afirmações cabais;
  • Formam um juízo de probabilidade e não de certeza;
  • São via de regra produzidos sob sigilo e não sob o manto constitucional irrestrito da publicidade;
  • Servem para a formação da opinio delicti do acusador;
  • Servem a demonstrar a probabilidade do fumus commissi delicti para justificar o processo, ou o não processo;
  • Também servem de fundamento para decisões interlocutórias de imputação (indiciamento) e adoção de medidas cautelares pessoais, reais ou outras restrições de caráter provisional. (Lopes Jr., Direito processual penal, 2014)

Ainda no entendimento do professor Aury Lopes Jr os atos de prova por sua vez estão a serviço do processo penal de forma mais cabal e integram o processo penal. A seguir o que caracteriza os atos de prova segundo Aury Lopes Jr.:

  • Dirigem-se a formar um juízo de certeza e não probabilidade;
  • Servem à sentença;
  • Exigem estrita observância da publicidade e contraditório;
  • São praticados ante um juiz e
  • Estão dirigidos a convencer o julgador da verdade de uma afirmação.

Vale ressaltar que ambos os atos podem ser praticados em sede de investigação preliminar, apesar de comumente os atos de provas serem realizados em fase processual.

Em que pese o posicionamento do ilustríssimo professor, há entendimentos doutrinários que filiam-se a corrente de que os atos de investigação também podem servir à sentença e de convencimento do magistrado na fase processual, como veremos a seguir.

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Sobre o autor
Fernando Gadelha

Bacharel em Direito com especialização em Direito Penal, Agente de Policia Federal, perfil profissional com ênfase em investigação criminal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GADELHA, Fernando. Investigação preliminar no processo penal: a (in)validade probatória dos atos de investigação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4744, 27 jun. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/35076. Acesso em: 16 abr. 2024.

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