INTRODUÇÃO
Há muito se discute em que medida as provas colhidas na fase de investigação policial tem eficácia probatória no processo penal. Dessa forma, esse estudo tem como foco analisar se as provas produzidas na fase de investigação preliminar ao processo penal podem de alguma forma serem valoradas pelo magistrado e se servem para fundamentar futura sentença condenatória em processo judicial, ou se, tão somente, assumem caráter informativo para justificar o processo, ou o não-processo, por parte do Ministério Público em seu múnus publicum.
Após a nova ordem jurídica de 1988, com a constitucionalização e democratização do processo penal, a investigação preliminar assumiu outro papel. O investigado, antes considerado mero objeto, passou a ser sujeito passivo detentores de direitos constitucionalizados.
Nessa esteira, a investigação preliminar, pelo seu caráter inquisitivo e procedimental, passou a ser alvo de críticas, tendo sido duramente contestada a validade das provas colhidas nesta fase, sobremaneira no convencimento do magistrado em seu mister.
No entanto, e apesar da dispensabilidade legal da investigação preliminar para o processo penal, os tribunais têm dado cada vez mais importância às provas produzidas nessa fase em seus julgados, a ponto mesmo de invalidarem todo o processo judicial por ilicitude em provas produzidas nessa fase não processual.
Nesse estudo dividimos o trabalho em quatro capítulos. No primeiro buscamos antes analisar a real finalidade constitucional do processo penal frente à nova ordem jurídica. No segundo procuramos desnudar os modelos de investigação preliminar existentes, sua natureza jurídica e características de cada um. No terceiro capítulo fizemos um raio X dos atos praticados nessa fase preliminar, como objeto, sigilo e a forma dos atos praticados na investigação preliminar frente aos princípios constitucionais no estado democrático de direito. No quarto e último capítulo laçamos um olhar sobre a prova, meios, nulidades e a força probatória dos atos de investigação produzidos nessa fase.
O desenvolvimento do estudo se deu através de pesquisas bibliográficas, utilizando livros, artigos, documentos, internet e legislação vigente. Foram feitas leituras críticas de obras relacionadas ao tema, jornais online e em revistas especializadas na área jurídica e policial.
Por óbvio, não se objetiva esgotar o tema nem sair como única e verdadeira opinião, mas tão somente ser fiel e verdadeiro no posicionamento frente à pesquisa realizada. Descartes em Regras para a direção do espírito expõe em sua primeira regra: “A finalidade dos estudos deve ser a orientação do espírito para emitir juízos sólidos e verdadeiros sobre tudo o que se lhe depara”, e assim foi esse foi o escopo dessa breve pesquisa (DESCARTES).
1 A INSTRUMENTALIDADE CONSTITUCIONAL DO PROCESSO PENAL
Indubitavelmente o homem é um ser social e por isso mesmo necessita coexistir, não conseguindo viver por longos períodos sem intercâmbio social com outros da mesma espécie. Desse contato nascem naturalmente algumas insatisfações, frustrações e conflitos de interesses, desavenças sociais inerentes ao próprio convívio entre diferentes seres dessa comunidade.
Desse desacordo surgem afrontas a direitos e interesses alheios. Quando esses conflitos e ofensas aos direitos e desejos de outros indivíduos desta sociedade assumem determinadas proporções, e os demais meios de controle social mostram-se insuficientes ou ineficazes para harmonizar o convívio social, surge o Direito Penal como meio de controle formalizado (Bitencourt, Tratado de direito penal : parte geral, 1, 2012).
Mas nem sempre o foi assim. De forma diversa ocorria no período da vingança, o qual prolongou-se até o século XVIII. À época quando cometido um delito, logo ocorria a reação da vítima e, quando possível, até mesmo do grupo social em que ele estava inserido, gerando reações sem proporção, que atingiam não só o infrator, como também parentes ou outros membros daquele grupo social do qual pertencia o delinquente. (Duarte, 1999). Era então aplicado ao infrator o mesmo mal que ele causara, como uma espécie de pena, que era aplicada conforme os ditames do código vigente predominante à época, vigia a regra do “olho por olho, dente por dente” (Código de Hamurabi).
Mas o direito penal evoluiu, passou do período da vingança privada (“olho por olho, dente por dente”), para a vingança divina. Essa nova ordem pregava que “a repressão ao crime era a satisfação dos deuses”.
Continuando a linha evolutiva, progrediu-se então à vingança pública, em que os crimes passam a ser “punidos pelo soberano”, encerrando-se a fase da vingança penal.
Seguindo a evolução, fez chegar ao período humanitário, que consolidou de vez o estado como o detentor do monopólio do jus puniendi, contrapondo à arbitrariedade absolutista anterior, reclamando a melhor aplicação da justiça através do pensamento moderno dos iluministas.
O direito Penal avançou, surgindo então como forma de prevenir e reprimir infrações jurídicas, aquelas advindas de atitudes humanas injustas, ações estas que lesionam ou expõe a perigo bens e valores protegidos pelo ordenamento jurídico vigente. São ações humanas voluntárias e que geram juízo de desvalor na própria comunidade, merecendo por isso mesmo a respectiva e proporcional pena.
Daí o conceito atual de Direito Penal como sendo o conjunto de regras no ordenamento jurídico que fixa as características da conduta criminosa, regula o poder punitivo do Estado, associa-lhe a um delito e tem como consequência uma pena (Bitencourt, Tratado de direito penal : parte geral, 1, 2012).
Ao se falar em Direito Penal, fala-se automaticamente em infração penal e, por consequência, na correspondente pena advinda da injusta conduta. Entretanto não há como aplicar pena sem processo. Hodiernamente, em um estado democrático de direito, só há punição após o devido processo legal, pois assim assevera a lei magna pátria em seu art. 5º, LIV, que afirma: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.
E mais, o processo penal está à disposição do Estado para aplicar o Direito e a respectiva pena, mas não só, serve-se também para garantir o status libertatis por meio de um processo penal conduzido por um juiz estatal, previamente determinado pela Lei e imparcial, corolários asseverados em princípios constitucionais no art. 5°, XXXV (a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito), XXXVII (não haverá juízo ou tribunal de exceção), LIII (ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente), LXI (ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei) e LIV (ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal) da lei maior. (Tourinho Filho, 2010).
Desses princípios decorre a relação intima e necessária entre delito, processo e pena, sem o qual não há um sem o outro, sendo ao mesmo tempo complementares. Assim, a pena é efeito jurídico do delito, e mais além, é efeito do processo, mas o processo não é efeito do delito, senão da necessidade de impor a pena ao delito por meio do processo e de garantir os direitos fundamentais, entre eles o status libertatis. (Lopes Jr., 2013).
Assim, a finalidade do processo não é apenas a materialização do jus puniendi estatal através da pena aplicada, visando a satisfazer a pretensão acusatória, é também um limitador do poder de punir do estado, ao garantir o direito constitucional de liberdade individual e presunção de inocência até o término do devido processo penal.
Muito mais que um dos princípios constitucionais basilares do processo penal, a presunção de inocência, ou de não culpabilidade como preferem alguns autores, é direito fundamental do ser humano, é uma garantia positivada no plano internacional na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, que estabelece em seu artigo 9 que “todo homem é inocente até que seja declarado culpado” (“Tout homme étant innocent jusqu’a ce qu’il ait été declaré coupable”) (Novelino, 2013).
Destarte, presumir inocente o investigado ou acusado durante todo o processo é proteger o indivíduo contra abusos do jus puniendi do Estado-acusação, que só após o devido processo legal, com exercício de todas as garantias constitucionais individuais, e formada a convicção do Estado-juiz através dos meios legais de prova, estará autorizado aplicar a devida e proporcional pena, assim leciona Dr. Guilherme de Souza Nucci:
O princípio tem por objetivo garantir que o ônus da prova cabe à acusação e não à defesa. As pessoas nascem inocentes, sendo esse o seu estado natural, razão pela qual, para quebrar tal regra, torna-se indispensável que o Estado-acusação evidencie, com provas suficientes, ao Estado-juiz a culpa do réu. (NUCCI, 2014, p. 56).
O grande constitucionalista Ministro Gilmar Mendes leciona no mesmo sentido, afirmando que o princípio da não culpabilidade “impede a outorga de consequências jurídicas sobre o investigado ou denunciado antes do trânsito em julgado da sentença criminal” (Mendes, 2014).
Como demonstrado, assim como não há se falar em pena sem o devido processo legal, nem processo sem delito, não há se falar em delito sem conduta injusta penalmente, cabendo aos agentes do estado apurar, através de provas suficientes e legais, a quebra, ou não, da presunção de não culpabilidade até ali considerada, cumprindo aí o processo penal o seu escopo constitucional.
É pelo processo penal devido e legal que se preserva o acusado e sua liberdade de eventuais desmandos do próprio Estado, impondo limites e oferecendo o direito àquele de ser julgado por um Juiz-estado previamente designado para tal, constituindo a expressão máxima dos princípios constitucionais e da administração da justiça, o direito a um juiz natural.
Conclui-se então o processo penal ser instrumento a serviço do projeto constitucional, o que nas lições de Aury Lopes:
Trata-se de limitação do poder e tutela do débil a ele submetido (réu, por evidente), cuja debilidade é estrutural (e estruturante do seu lugar). Essa debilidade sempre existira e não tem absolutamente nenhuma relação com as condições econômicas ou sociopolíticas do imputado, senão que decorre do lugar em que ele é chamado a ocupar nas relações de poder estabelecidas no ritual judiciário (pois é ele o sujeito passivo, ou seja, aquele sobre quem recaem os diferentes constrangimentos e limitações impostos pelo poder estatal). (LOPES JUNIOR, 2012, p. 91).
Destarte, corroboramos com a opinião do professor Aury Lopes Jr., que essa é a instrumentalidade constitucional do processo penal, que a nosso juízo, funda sua existência.
2 A INVESTIGAÇÃO PRELIMINAR NO PROCESSO PENAL
É com a notícia da prática do injusto penal que nasce a “possibilidade” do jus puniendi estatal por meio do processo. É a partir do conhecimento da prática de fato delituoso que passa o estado a desenvolver a persecutio criminis in judicio através do seu órgão acusador, o Ministério Público.
Mas por que dizer possibilidade? Por que também é possível que não haja o processo judicial penal, seria aí o chamado não-processo. É possível ainda que não haja a materialização da pretensão punitiva estatal, que no transcorrer do processo penal, quer seja na fase inquisitiva pré-processual, quer seja na fase contraditória judicial, não tenha suficientemente demonstrada provas da não-inocência do investigado/acusado. Há assim infinitos desfechos possíveis. Desde a possibilidade da notitia criminis ser falsa (quando de verdade nem ocorreu o fato delituoso), passando-se pela possibilidade de não se conseguir chegar a autoria do injusto, até mesmo à ausência de provas legais que encerem a presumida inocência do réu.
É pois, prima facie, a investigação preliminar que serve como espécie de filtro processual, que de posse das informações da possível infração penal, põe em funcionamento o Estado-acusação com objetivo de apurar se tal notícia se reverte de alguma “verdade pré-processual”, o que demonstraremos nas próximas linhas
2.1 Definição
Como bem demonstrado em linhas acima, o processo penal judicial não se deve iniciar sem uma prévia apuração dos fatos, sendo necessário juntar elementos suficientes que embasem uma acusação. Acusar para depois investigar seria afastar uma garantia constitucional e princípio basilar do processo penal, qual seja: a presunção de não-culpabilidade. E mais, seria (e o é) fazer o indivíduo sofrer ao longo de todo o processo uma injusta carga penal por uma descabida acusação.
Como bem leciona Aury Lopes Jr, “o processo penal encerra um conjunto de “penas processuais” que fazem com que o ponto nevrálgico seja saber se, se deve ou não acusar”. Exatamente por ser um “ponto nevrálgico” a decisão de acusar ou não-acusar, que agiganta a importância da investigação preliminar como ato preparatório à ação penal (ou a não ação).
Fácil perceber que a ação penal carece uma prévia preparação com fins de evitar uma indevida acusação. Essa preparação é realizada antes da abertura do processo, e por isso, chamada de pré-processual. A investigação é prévia, ou seja, preliminar e antes da fase judicial. Nessa fase preliminar averígua-se o quantum de verdade há na notitia criminis, é nessa fase que se busca angariar elementos mínimos e suficientes que possam servir à formação do opinio delicti do Estado-acusação, demonstrando assim ser cabível, ou não, o processo penal judicial.
A Investigação preliminar em suma é a busca de elementos de informação acerca de fato delituoso, devendo indicar autoria e circunstancias do fato criminoso para a formação da convicção do órgão acusador, justificando através de provas legais a acusação, ou a não acusação.
Como bem assevera Fernando da Costa Tourinho Filho:
Como titular do direito de punir, quando alguém infringe a norma penal, deverá o Estado, para fazer valer o seu direito, procurar os elementos comprobatórios do fato infringente da norma e os de quem tenha sido o seu autor, entregando-os, a seguir, ao órgão do Ministério Público para promover a competente ação penal. (TOURINHO FILHO, 2010, p. 123).
Visto isto, podemos acolher como a melhor definição de Investigação preliminar a utilizada por Aury Lopes Jr.:
Concluindo, a partir da análise de definições legais, podemos conceituar a investigação preliminar como o conjunto de atividades realizadas concatenadamente por órgãos do Estado; a partir de uma notícia-crime ou atividade de oficio; com caráter prévio e de natureza preparatória com relação ao processo penal; que pretende averiguar a autoria e as circunstâncias de um fato aparentemente delitivo, com o fim de justificar a exercício da ação penal ou a arquivamento (não-processo). (LOPES JUNIOR, 2012, p. 90).
Em suma, investigação preliminar é uma série de atos com vistas a desvendar um suposto crime e seu autor, com objetivo precípuo de fornecer ao titular da ação penal informações suficientes que o possa, com relativa firmeza, apontar a ocorrência de determinado crime e seu autor em uma futura ação penal.
2.2 Natureza Jurídica
A natureza jurídica da Investigação Preliminar vai depender sempre do sujeito encarregado e da predominância da natureza dos atos, ou seja, do órgão encarregado de a levar a cabo e da natureza da maioria dos atos nela praticados, podendo ser administrativa, ministerial ou judicial.
Diz-se administrativa quando o órgão encarregado é a polícia, ela subordina ao poder executivo, com predominância dos atos nela praticados sendo procedimentais administrativos e pré-processuais. A atividade investigativa policial carece do mando de uma autoridade com potestade jurisdicional e por isso não pode ser considerada como atividade judicial e tampouco processual, até porque não possui a estrutura dialética do processo. (Lopes Jr., Direito processual penal, 2014)
Quando levada a cabo por órgão do Poder Judiciário dizemos que a investigação preliminar é judicial. É o caso de investigação realizada por juízes de instrução, como na Espanha, ou mesmo pelo Ministério Público como na Itália, onde o MP pertence ao judiciário por mandamento constitucional. Apesar de ser dirigida por juízes de instrução (Espanha), ou pelo Ministério Público (Itália), a investigação continua a ter status de pré-processual (não mais administrativo pois não realizado por órgão do Poder Executivo). Não tem características de processo, pois não há predominantemente nos atos nela praticados atribuições de jurisdictio, ou seja, não há a característica dialética processual.
A menos que os Juízes de Instrução, além de terem poderes inquisitoriais de investigação preliminar, tivessem também a atribuição de julgarem àqueles mesmo que investigaram, poderíamos dizer que a investigação teria status jurisdicional e não tão somente judicial. Nesse caso teríamos características de atividade puramente processual, exercendo o titular da investigação preliminar a jurisdicione.
Seria conforme entendimento de Aury Lopes Jr., reunir as características que o dão feição de processo, como: exercício de uma pretensão; existência de partes potencialmente contrapostas; garantia do contraditório e da ampla defesa; existência de uma sentença e a produção da coisa julgada e existência do direito de recurso. (Lopes Jr., Direito processual penal, 2014).
2.3 Modelos de Investigação Preliminar
2.3.1 Investigação Preliminar Policial
Como explicitado em linhas acima, a investigação preliminar pode ser entendida como um procedimento pelo qual se procura descobrir pessoas ou coisas úteis para a reconstrução das circunstâncias de um fato que infringiu uma norma legal.
O Estado-acusação, como titular do jus puniendi, deverá para fazer valer o seu direito, investigando o fato infringente da norma e procurando elementos que comprovem quem tenha sido o seu autor, ou autores.
Sempre nas mãos do Estado o jus persequendi, esse papel é exercido pelo Estado-acusação através da Polícia, do Ministério Público ou por um Juiz de Instrução. Cada país de acordo com sua estrutura, política criminal e sistema processual vigente, adota um modelo de investigação preliminar e seu órgão encarregado. No Brasil, em que pese acirrado debate sobre a exclusividade das investigações criminais, adota-se, via de regra, o modelo de investigação policial, entretanto em casos pontuais vê-se a investigação a cargo do Ministério Público.
No modelo de investigação policial, a titularidade das investigações é sempre da polícia, sob o comando da autoridade policial, não funcionando a polícia como mera auxiliar, mas sim com a devida autonomia para decidir conforme seu entendimento a melhor forma e os mais adequados meios a serem utilizados na investigação, sem nenhuma subordinação funcional ao ministério público e nem ao judiciário.
Nesse modelo tem-se como característica o first-line enforcer, ou seja, a polícia é a primeira instancia formal de controle social a conhecer, interagir e processar o evento delituoso, iniciando-se a partir daí as investigações preliminares com escopo de esclarecer autoria e materialidade. Isso torna-se uma vantagem sobre outros modelos, devido a celeridade com que se iniciam as investigações. No entanto há críticas ao modelo, como por exemplo que a polícia está muito mais suscetível às contaminações e influências políticas, pois além de estarem subordinadas ao poder executivo, sofrem com mais facilidade das pressões dos meios de comunicação, levando os policiais a cometerem injustiças no afã de resolverem casos com maiores repercussões midiáticas.
Em que pese toda carga de preconceito que paira sobre a classe policial, certamente advinda de herança ainda da época da ditadura, entendemos como mais apropriado e eficiente o modelo de investigação preliminar policial, em que um certo e limitado poder discricionário das polícias faz frente ao combate e controle da criminalidade através da sua autonomia investigativa, sempre seguindo a lei e respeitando o estado democrático de direito. Vivemos outros tempos.
Vale ressaltar que todas as medidas cautelares que impliquem em limitação dos direitos fundamentais do investigado, devem passar pelo controle de legalidade, são autorizados pelo judiciário e dado vistas ao Ministério Público, que opina acerca da necessidade da medida. Há assim um estrito controle jurisdicional dos atos que possam de qualquer maneira ferir direitos constitucionais dos investigados, tais como mandados de busca e apreensão, interceptações telefônicas, mandados de prisão etc.
Há ainda defensores da tese de que a investigação preliminar seja exclusividade da polícia, pois assim asseverou a Constituição Federal em seu artigo 144 § 4º in verbis:
Art.144 [...] § 4º - às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto os militares.
2.3.2 Investigação Preliminar Ministerial
Nesse modelo, também chamado de Promotor-Investigador, o membro do Ministério Público é o titular da investigação preliminar, devendo ele receber a notitia criminis diretamente, ou indiretamente através do órgão policial, dando início a partir daí às investigações preliminares.
Esse modelo é tendência mundial e tem sido adotado em substituição ao decadente modelo de investigação judicial através do Juizado de Instruções e até mesmo ao modelo de investigação policial através do inquérito policial. Há aqui uma subordinação funcional da polícia ao ministério público, que após recebimento da notitia criminis, pode ele mesmo praticar os atos investigatórios ou delegar à polícia para que os procedam, sempre conforme a convicção e interesse do parquet, visando assim a melhor formação do seu opinio delicti que irá fundamentar a respectiva denúncia.
Nesse modelo, apesar da titularidade da investigação a cargo do MP, não há nenhuma atividade jurisdicional por parte dos promotores, devendo todas as medidas de caráter limitativo de direitos fundamentais de investigados, serem devidamente autorizadas por juízes, após requisição ministerial.
É válido lembrar que em alguns países, diferentemente do Brasil, o ministério público é parte do Poder Judiciário, como é na Itália, sendo assim lá promotores são considerados magistrados por força constitucional.
Por aqui muito ainda se discute sobre a possibilidade (constitucionalidade) ou não da investigação diretamente pelo Ministério Público, tendo recentemente sido alvo de acirrados debates quando da propositura da Proposta de Emenda Constitucional 37 (PEC 37) apelidada de PEC da Impunidade, que em sua redação dava exclusividade das investigações criminais à Polícia Judiciária. (Projeto de lei e outras proposições, 2011)
A 2ª turma do STF, por unanimidade, decidiu que o Ministério Público pode realizar investigações, segundo entendimento dos ministros o artigo 129 da Constituição Federal, que trata das atribuições do MP, apesar de não falar sobre a investigação pelo órgão, não a veda. No voto do eminente ministro Gilmar Mendes que proferiu, in verbis:
Conforme voto por mim proferido nos autos do RE 593.727/MG, entendo que ao Ministério Público não é vedado proceder a diligências investigatórias, consoante interpretação sistêmica da Constituição Federal (art. 129), do Código de Processo Penal (art. 5º) e da Lei Complementar n. 75/93 (art. 8º). Explico. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem, reiteradamente, acentuado ser dispensável, ao oferecimento da denúncia, a prévia instauração de inquérito policial, desde que evidente a materialidade do fato delituoso e presentes indícios de autoria (HC 63.213/SP, rel. Min. Néri da Silveira, Primeira Turma, DJ 26.2.1988). Dessa forma, considerando o poder-dever conferido ao Ministério Público na defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127, da CF), afigura-se me indissociável a suas funções relativa autonomia na colheita de elementos de prova como, de fato, lhe confere a legislação infraconstitucional.
Como é de notar, assim como a tendência mundial, há um entendimento por parte da corte superior ser possível a investigação preliminar também ministerial, e não apenas exclusividade da polícia.
Defensores da investigação preliminar ministerial alegam que esta seria uma decorrência natural da própria persecução preliminar penal, cujo escopo seria tão somente a formação do opinio delicti do órgão acusador, sendo assim natural que o próprio destinatário dos elementos informativos possa se manifestar acerca do prosseguimento ou não do persecutio criminis.
É exatamente aqui onde reside a celeuma acerca do(s) destinatário(s) da investigação preliminar e da validade dos atos nela produzido. Seria apenas o MP o destinatário dos elementos de provas produzidos nessa fase, ou ela serviria também para fundamentar a opinião da autoridade judiciária, tanto no recebimento (ou rejeição) da denúncia, quanto na valoração das provas no processo? O tema é polêmico, ainda mais após nova redação dada ao Art. 155 do Código de Processo Penal. O assunto será exposto no próximo capítulo.
2.3.3 Investigação Preliminar Judicial
Nesse modelo de investigação o protagonista é a autoridade judiciária, é ele que detém a titularidade da investigação preliminar, o Juiz de Instruções além de levar a cabo as investigações, ou seja, é o próprio quem colhe e produz as provas durante o procedimento judicial, detém ainda amplos poderes decisórios no controle da legalidade dos atos por ele investigado. O Juiz instrutor é livre para intervir, recolher e valorar o material probatório produzido.
Durante sua atividade de instrutor o Juiz não se subordina a ninguém, sendo o Ministério Público e a Defesa meros espectadores/colaboradores, que podem eventualmente peticionar determinadas diligências, que no entanto não vincula o juiz, que decidirá pelo deferimento ou não, conforme seu juízo, desde que as considere pertinente e úteis à investigação.
Tem o Juiz de Instrução à sua disposição a polícia judiciária, que de acordo com o entendimento da própria autoridade judiciaria, promoverá àquelas diligências que considerar necessárias, sendo a polícia totalmente dependente funcional do poder judiciário.
Na teoria o juiz instrutor deveria pautar sua atividade inquisitória com total imparcialidade, buscando não só elementos que forem favoráveis a uma futura acusação, mas também aqueles que sirvam para exculpar o investigado e sustentar a tese da defesa. Entretanto sabemos isso ser impossível. Na prática a imparcialidade do Juiz estaria de certo ameaçada, desde o início da persecução penal, pois é a partir do início da investigação preliminar, que já estaria o Juiz contaminado com elementos informativo colhidos com claro intuito de servir tão somente à acusação. Há um gravíssimo inconveniente quando a mesma pessoa que tenta descobrir autoria e materialidade tem que ela mesmo decidir sobre a necessidade de um ato de investigação e a partir dele valorar a sua legalidade.
Como bem leciona Aury Lopes Jr:
[...] não é suscetível de ser pensado que uma mesma pessoa se transforme em um investigador eficiente e, ao mesmo tempo, em um guardião zeloso da segurança individual; o bom inquisidor mata o bom juiz ou, ao contrário, o bom juiz desterra o inquisidor. (LOPES JUNIOR, 2014, p. 156).
É um modelo em total decadência e não mais utilizado em quase nenhum país do mundo, com exceção da Espanha, que apesar de adotar tal modelo, ainda toma precauções e medidas que visam certa imparcialidade, pois o Juiz que investiga, não é o mesmo que julga. Apesar disso, há ainda o inconveniente de um juiz ao mesmo tempo que colhe elementos informativos e decidi pela pertinência de um ato de investigação, também decide ele próprio pela sua legalidade e necessidade.
Definitivamente um modelo que remonta da inquisição e em nada coaduna com o Estado democrático de direito e a o sistema acusatório adotado na nossa Constituição Federal.