Todos sabem que o sistema tributário brasileiro precisa de uma reforma estrutural para modernizar-se e diminuir o custo Brasil, pois sua complexidade é um dos fatores que desestimula empresas a investir no país.
Existe um princípio tributário básico de que quando todos pagam os tributos, todos pagam menos. Por esta razão, entre outras reduções de tributo, a isenção deve ser tratada como excepcional e não como regra. A isenção para deficientes do IPVA é um belo exemplo de um aparente benefício, mas que na verdade transformou-se em um enorme privilégio.
A isenção “é favor fiscal concedido por lei, que consiste em dispensar o pagamento de um tributo devido” segundo Rubens Gomes de Souza. Ocorre o fato gerador, surge a obrigação, mas seu cumprimento é dispensado pela exclusão do crédito tributário dela correspondente. Esta é a diferença entre isenção e imunidade pois nesta não ocorre o fato gerador.
A isenção consta no Código Tributário Nacional como forma de exclusão do crédito tributário (art. 175, I). Nenhum Estado pode estabelecer sozinho isenções do ICMS. Elas devem ocorrer por convênio, em decisão unânime, nos termos do art. 1º da Lei Complementar 24/75.
Os deficientes físicos foram contemplados com isenção do ICMS para a compra de veículos no valor de até R$ 70.000,00.
Este benefício fiscal estabelecido por convênio está previsto no Artigo 19 do Anexo I do Regulamento do ICMS de São Paulo que dispõe:
"Artigo 19 - (PESSOA COM DEFICIÊNCIA OU AUTISTA - VEÍCULO AUTOMOTOR) - Saída interna e interestadual de veículo automotor novo adquirido, diretamente ou por meio de representante legal, por pessoa com deficiência física, visual, mental severa ou profunda, ou autista (Convênio ICMS-38/12).
§ 1º - Para fins do disposto neste artigo, considera-se:
1 - pessoa com deficiência:
a) física, aquela que apresenta alteração completa ou parcial de um ou mais segmentos do corpo, acarretando o comprometimento da função física, apresentando-se sob a forma de paraplegia, paraparesia, monoplegia, monoparesia, tetraplegia, tetraparesia, triplegia, triparesia, hemiplegia, hemiparesia, amputação ou ausência de membro, paralisia cerebral, membros com deformidade congênita ou adquirida, exceto as deformidades estéticas e as que não produzem dificuldades para o desempenho de funções;
b) visual, aquela que apresenta acuidade visual igual ou menor que 20/200 (tabela de Snellen) no melhor olho, após a melhor correção, ou campo visual inferior a 20º, ou ocorrência simultânea de ambas as situações;
c) mental severa ou profunda, aquela que apresenta o funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação anterior aos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas;
2 - autista, a pessoa que apresenta transtorno autista ou autismo atípico”.
Trata-se de nova redação que passou a contemplar a possibilidade de que deficientes que não podem dirigir veículos, mas cujas famílias possuem capacidade econômica, possam comprar veículos em seu nome, com o benefício fiscal.
Originalmente a isenção do ICMS para a compra de carros para deficientes foi criada para permitir que a redução no preço, possibilitasse amortizar o custo de adaptação dos veículos para deficientes. Ocorre, todavia, que a maior parte dos laudos para carros para deficientes são com câmbio automático e direção hidráulica, que se tornaram comuns e hoje saem de fábrica em grande parte dos veículos fabricados no Brasil. Portanto, não há mais nenhum custo adicional. Mesmo para uma pequena minoria que precisa de alguma adaptação complementar, como pomo no volante, o custo de adaptação é extremamente baixo.
Portanto, os deficientes físicos contam com isenção de ICMS e IPI para compra de veículos iguais aos usados pelas pessoas sem deficiência e, portanto está aí um privilégio e não um benefício, pois a isenção de tributo para uns significa que os outros terão que pagar mais para compensar aqueles que não pagam. Se todos pagassem, poderiam pagar menos. A maioria dos veículos para deficientes, que precisam contar com direção hidráulica e câmbio automático e a maioria dos veículos comprados pelos portadores de deficiência física, está próximo ao limite de R$ 70.000,00 e sem os tributos o preço cai para aproximadamente R$ 55.000,00. Mesmo com a redução, comprar e manter um veículo na faixa de R$ 70.000,00 não é para qualquer pessoa. É necessária uma razoável renda familiar, pois apesar da isenção na compra, as despesas com a manutenção do veículo, combustível, seguro, etc. são as mesmas pagas pelos demais compradores. Trata-se, portanto de um benefício fiscal para a classe média e alta.
Mas, outra questão que aumenta ainda mais a injustiça tributária na isenção do ICMS e mesmo do IPVA é o que é um deficiente físico. Houve grave falha quando se definiu a isenção , em não conceituar o que é deficiente físico. O conceito genérico “deficiente físico” é subjetivo e a criatividade dos médicos, acabou transformando aqueles, por exemplo, que tem uma pequena redução de força muscular, mas andam normalmente, em deficientes físicos e, portanto habilitados a comprar veículos com isenção do ICMS, IPI e IPVA.
Eu, como míope, sou deficiente visual, mas isso não me impede de levar uma vida sem nenhuma restrição e no dia a dia da Repartição Fiscal, a maioria dos casos que chegam de pedidos de aquisição de veículos para deficientes físicos é de pessoas que visualmente não aparentam nenhum problema, o que demonstra que se tratam sim de deficientes físicos, mas de um grau apenas superficial, que na modesta opinião deste autor não justifica de maneira alguma a isenção do ICMS ou do IPVA, que na verdade transformou-se em um privilégio.
E como não há diferenciação legal entre deficiência severa, média ou superficial o que acabou acontecendo é que a facilidade espalhou-se e milhares de pessoas correram aos médicos em busca de laudos, sabedoras das vantagens tributárias que iriam dispor.
Porém, é na isenção do IPVA que a distorção tornou-se mais gritante no Estado de São Paulo . Como visto, na compra de veículos com isenção de ICMS, existe um limite de R$ 70.000,00, mas na isenção do IPVA não há nenhum valor máximo fixado.
A isenção do IPVA está prevista na Lei 13.296 2008.
Artigo 13 - É isenta do IPVA a propriedade:
III - de um único veículo adequado para ser conduzido por pessoa com deficiência física;
Pessoas de posses que compram carros acima de R$ 70.000,00, normalmente importados, não contam com a isenção do ICMS e do IPI, mas podem solicitar isenção do pagamento do IPVA. Para se ter uma ideia do absurdo que é esta previsão legal se, por exemplo, um deficiente físico resolver importar uma Ferrari, no valor de R$ 1 milhão, poderá solicitar a isenção do IPVA, deixando de pagar R$ 40.000,00 por ano do imposto ao Estado de São Paulo.
Enquanto para a aquisição do carro com isenção do ICMS a justificativa era amortizar gastos maiores com a adaptação do veículo, que como vimos não existem mais, no caso da isenção do IPVA não há justificativa alguma. Os carros comprados pelos deficientes circulam da mesma forma que os demais carros e, portanto desgastam as vias públicas como os demais veículos, e deveriam contribuir para a manutenção destas vias como os demais proprietários de veículos, mas não pagam um centavo por isso. No caso do IPVA a evasão é dupla, pois 50% do imposto pertence aos Municípios, que deixam de receber estes recursos para a manutenção das vias públicas municipais.
A isenção fiscal representa um benefício fiscal que deve ter uma justificativa razoável. Isentar pessoas que pertencem à elite econômica do país não é razoável. Quem tem condições de comprar e manter veículos cujo preço seja maior do que R$ 70.000,00 não deveria ser isento de pagar qualquer imposto, seja deficiente físico ou não, e é neste sentido que neste caso a isenção deixou de ser um benefício para se tornar um privilégio.
Portanto dentro do conceito apresentado inicialmente, justiça tributária com relação ao IPVA seria reduzir a alíquota para todos, por exemplo, de 4% para 3% e eliminar a isenção para deficientes físicos, acabando com um benefício fiscal que acabou se transformando em um privilégio para alguns em detrimento dos demais. O mesmo raciocínio poderia ser aplicado na isenção do ICMS na compra de veículos, sempre dentro do princípio , quando todos pagam , todos pagam menos.
Mas, como os médicos são criativos, os advogados também são. Inicialmente a isenção do ICMS para compra de veículo restringia-se aos deficientes físicos motoristas e muitos advogados passaram a procurar a Justiça pleiteando que este direito também fosse estendido aos deficientes físicos não motoristas.
Cabe lembrar o motivo que justificou a isenção do ICMS para a compra de veículos para deficientes físicos. Era a de que a perda fiscal decorria da necessidade de se comprar um carro adaptado para o deficiente e os gastos maiores criavam uma situação de injustiça para o deficiente.
A experiência prática mostrou que na verdade os gastos com adaptação de veículos eram pequenos , muito inferiores ao valor renunciado de ICMS e IPVA.
Mas , como não houve definição do que é deficiência física como já dito, o que ocorreu e que os deficientes leves passaram a conseguir laudos e mais de 90% dos casos atualmente são de veículos com direção hidráulica e câmbio automático. Como se sabe, a maioria dos veículos de valor acima de R$ 60.000,00 já está saindo de fábrica com câmbio automático e direção hidráulica e portanto não se faz mais nenhuma adaptação, perdendo totalmente sentido a justificativa que embasou a isenção.
Mas no caso dos deficientes graves, não motoristas, não há justificativa alguma, pois os carros adquiridos serão dirigidos por pessoas comuns, portanto carros sem adaptação. Porém, os advogados criativos foram aos tribunais, alegando justificativas de isonomia e conseguiram seguidas decisões judiciais favoráveis à isenção do ICMS para a compra de veículos para deficientes graves não motoristas.
No caso do Estado de São Paulo, a legislação acabou sendo mudada , e passou a ser possível também a compra de carro com isenção do ICMS para deficientes não motoristas.
Porém, a lei do IPVA paulista não prevê a isenção para não motoristas e o que está ocorrendo é uma nova avalanche de ações no Judiciário para pleitear que além de não pagar o ICMS, os deficientes graves também não paguem o IPVA.
Os motivos elencados nos mandados de segurança são comuns. Pleiteia-se que a isenção é devida em razão dos princípios constitucionais da igualdade , da dignidade humana e da isonomia.
Existe um argumento absurdo de que , se não for concedida a isenção, o deficiente terá que arcar com o pagamento do imposto, causando-lhe prejuízo financeiro, como se uma obrigação de pagar impostos fosse uma afronta à Constituição.
Não há dúvida que um deficiente grave merece o beneplácito do Estado com isenções, mas aqui deve ser considerado o critério da essencialidade, por exemplo, quando se tratar da compra de medicamentos para o tratamento da pessoa. A prevalecer a tese defendida nos mandados de segurança de que o deficiente não motorista teria direito à isenção pelo Princípio da Dignidade da Pessoa Humana , estaria consagrada uma conclusão totalmente sem sentido de que o deficiente grave, pela sua própria condição teria direito a isenções de toda ordem, seja para a compra de veículo, seja para tratamento médico, seja para a compra de remédios e vai por aí adiante, para a compra de qualquer coisa.
No caso da compra de veículo, não se trata de um bem essencial, pois estamos falando de carros com valor de mercado de R$ 70.000,00 e portanto, acessível somente a famílias de classe média e alta, com poder aquisitivo satisfatório e para as quais não se justifica de maneira nenhuma que sejam concedidos benefícios fiscais como a isenção do IPVA.
O que a prática tem demonstrado é que muitas famílias possuem vários carros e agora esta aproveitando essa facilidade para, usando o filho deficiente, comprar mais um carro, beneficiando-se da isenção do ICMS e pleiteando judicialmente a isenção do IPVA. Aqui cai por terra também a justificativa de que o veículo é necessário para a locomoção do deficiente, pois esta locomoção está perfeitamente garantida pelos vários veículos que a família já possui.
Ou seja, o que se pode constatar é que usando justificativas de igualdade, dignidade e isonomia o que está por trás efetivamente é usar o Judiciário, para a conquista de um privilégio fiscal desnecessário e injusto, pois significa usar a existência de um problema de saúde , a que qualquer família pode estar sujeita, para furtar-se ao pagamento de um tributo essencial como o IPVA, que está associado ao desgaste de pavimentos pela circulação de veículos.
Esperemos que os tribunais superiores, para onde os Mandados de Segurança irão chegar em sede de recurso, atentem para os fatos aqui ressaltados. O Poder Judiciário não pode ser instrumento de consagração de privilégios, mas cabe a ele também zelar pela sanidade das contas públicas e isso só é possível com critérios justos de arrecadação , onde quando todos pagam , todos pagam menos.
Este autor não está sozinho em sua tese de que subsídios não se justificam. Luigi Zingales, professor da Universidade de Chicago é autor de A Capitalism for the People e Salvando o Capitalismo . Para ele, o modelo de capitalismo ideal é o que não tem benefícios.“ Idealisticamente, todos os subsídios deveriam ser eliminados , porque estimulam esse tipo de relação entre as empresas e o governo. As políticas públicas mais saudáveis, ao contrário , são aquelas que reduzem as barreiras aos investimentos e ao ingresso de um maior número de competidores. É assim que age um governo decidido a fazer o mercado funcionar melhor. Mas o que se nota é que, quando a concentração no mercado é excessiva, os governos tendem a adotar políticas que beneficiam um pequeno grupo de grandes empresas em detrimento dos consumidores e da economia como um todo”. ( Revista Veja, 29.10.2014, p. 25-27) .
Por isso, considerando que a situação atual chegou a um tal estado de distorção que não é possível fazer qualquer tipo de controle ou ajuste, torna-se imperativo restaurar uma situação de igualdade entre todos e daí dever-se-ia pura e simplesmente abolir a isenção do IPVA para deficientes físicos, que não se justifica mais pelo excesso de pessoas que dela estão se beneficiando sem serem efetivamente deficientes físicos no sentido mais estrito do termo . Com isso seria possível a redução da alíquota do IPVA, dentro do princípio de que quando todos pagam, todos pagam menos.