RESUMO:Versa o presente artigo sobre a aplicação da Teoria da perda de uma chance na Justiça do Trabalho. O estudo tem o intuito de determinar o atual panorama da responsabilidade civil no direito brasileiro e ressaltar a necessidade de mecanismos mais eficientes para preencher as lacunas jurídicas neste campo, mormente no que diz respeito às ações de competência da Justiça do Trabalho. A clara situação fática da posição de inferioridade do empregado na relação de emprego o torna vulnerável no momento do ajuste das cláusulas contratuais, sendo necessário que se lhe empreste tutela jurídica específica a fim de possibilitar a garantia do equilíbrio contratual. Assim, com o intuito de sopesar o desnível dessa relação (princípio da proteção), admite-se a aplicação desta teoria com o fito de indenizar integralmente o empregado, principalmente em hipóteses de acidente de trabalho nas quais há uma gama imensurável de chances perdidas.
PALAVRAS-CHAVE: Reparação civil, perda da chance, doutrina estrangeira, vulnerabilidade do empregado, jurisprudência trabalhista brasileira.
1 INTRODUÇÃO
Depois da recente reformulação do Código Civil e da ampliação da competência da Justiça do Trabalho engendrada pela EC n. 45/2004, o sistema de responsabilidade trabalhista tornou-se mais abrangente, aceitando conceitos de dano e responsabilidade civil até antes não existentes.
Além da objetivação da responsabilidade civil, a coletivização dos direitos também contribuiu para a reparação mais ampla dos danos ocasionados à vítima. Assim, com o desenvolvimento contemporâneo, toda a sociedade passou a arcar com o ônus de reparar certos tipos de danos.
É princípio de responsabilidade civil que aquele que cause dano a outrem fique obrigado a reparar os prejuízos decorrentes de seu ato, de forma integral. Além dos prejuízos já definidos como danos emergentes e lucros cessantes, em razão de um ato ilícito e injusto praticado por outrem, pode alguém ficar privado da oportunidade de obter determinada vantagem ou, então, de evitar um prejuízo. Trata-se, como vem sendo discutido jurisprudencialmente e doutrinariamente, da indenização pela perda de uma chance ou oportunidade (perte d´une chance).
O que se indeniza não é o valor patrimonial total da chance por si só considerada, mas a possibilidade de obtenção de resultado esperado. Assim, como não se pode exigir a prova cabal e inequívoca do dano, mas apenas a demonstração provável da sua ocorrência, a indenização, logicamente, deve ser proporcional à possibilidade maior ou menor em auferir a oportunidade desejada.
Os casos mais emblemáticos da aplicação da teoria da perda de uma chance dizem respeito à seara trabalhista. Considerando que o meio ambiente de trabalho mescla o fator de produção com as chances aleatórias de cada trabalhador, muitas vezes a vítima encontra-se em uma situação vulnerável diante do poderio econômico do empregador sem ter elementos que possibilitem a comprovação do dano sofrido.
A clara situação fática da posição de inferioridade do empregado na relação de emprego o torna vulnerável no momento do ajuste das cláusulas contratuais, sendo necessário que se lhe empreste tutela jurídica específica a fim de possibilitar a garantia do equilíbrio contratual.
Assim, com o intuito de sopesar o desnível dessa relação (princípio da proteção), admite-se a aplicação desta teoria com o fito de indenizar integralmente o empregado, principalmente em hipóteses de acidente de trabalho nas quais há uma gama imensurável de chances perdidas.
Dentro desta perspectiva, será feito um estudo a respeito da aplicação da Teoria da perda de uma chance na Justiça do Trabalho, analisando posicionamento doutrinário e jurisprudências diversas.
2 TEORIA DA RESPONSABILIDADE CIVIL PELA PERDA DE UMA CHANCE
Diferentemente do que ocorria no passado, as vítimas de danos recorrem cada vez mais ao Poder Judiciário visando à reparação de seus prejuízos. Inúmeras são as situações na vida cotidiana em que, tendo em vista o ato ofensivo de um infrator, alguém se vê privado da oportunidade de se obter determinada vantagem ou de evitar um prejuízo, o que muitas vezes pode vir a irromper a aplicação da teoria da responsabilidade civil pela perda de uma chance.
2.1 CONSIDERAÇÕES SOBRE A TEORIA
A objetivação da responsabilidade civil significa a ruptura com a sociedade egocêntrica e voluntarista que criou os códigos liberais do século XIX e início do século XX. Desta maneira, com o surgimento da nova ordem massificada (sociedade de riscos), o sistema de culpa, nitidamente individualista, evoluiu para um sistema solidarista da reparação do dano.[2]
Além da objetivação da responsabilidade civil, a coletivização dos direitos também contribuiu para a reparação mais ampla dos danos ocasionados à vítima. Assim, com o desenvolvimento contemporâneo, toda a sociedade passou a arcar com o ônus de reparar certos tipos de danos.[3]
Ao estudar a enorme alteração produzida pelo surgimento do paradigma solidarista, percebe-se que os autores costumam indicar a relativização de apenas um dos requisitos aludidos como conseqüência da objetivação da reparação de danos: a culpa. No entanto, acredita-se piamente que o desenvolvimento contemporâneo da responsabilidade civil também provoca modificações profundas em outros requisitos da responsabilidade, como o nexo causal e o dano.
A dinamicidade da vida moderna fez surgir a necessidade de se repararem danos que possuem causas intangíveis e emocionais, mesmo que não se saiba precisar o seus reais causadores. Desse modo, fatos como quebra de expectativa e confiança, quebra de privacidade, estresse emocional, risco econômico, perda de uma chance e perda da escolha já podem ser considerados ressarcíveis.[4] Nestes casos, a teoria da perda de uma chance estriba-se em mais uma maneira de possibilitar ao lesado receber alguma reparação.
A impossibilidade de se provar que a perda da vantagem esperada (dano final) é a conseqüência certa e direta da conduta do infrator faz com que o operador do direito utilize parâmetros de estatística e probabilidade para aferir e reparar o dano injusto causado à vítima.
A Teoria da Responsabilidade Civil pela Perda de uma Chance, surgiu e se desenvolveu, como prelúdio, na França (perte d’une chance). Logo após, a doutrina e jurisprudência de outros países europeus passaram a adotar a teoria, inclusive a Itália, que a princípio ofereceu certa resistência às inovações trazidas por essa nova concepção de dano hipotético.
A importância e a utilidade da teoria da perda de uma expectativa favorável fizeram com que o instituto também refletisse nos países de tradição da Common Law, gerando uma quantidade infindável de leading cases, precipuamente em relação à seara médica. Inclusive, pode-se notar uma evolução jurisprudencial no sentido de reparar integralmente a vítima em situações em que há um dano perpetrado por uma conduta mínima do agressor.
Alguns autores associam o aparecimento da responsabilidade pela perda de uma chance à utilização menos ortodoxa do nexo de causalidade, ora se manifestando em forma de causalidade parcial, ora em forma de presunção de causalidade, nos moldes da responsabilidade coletiva ou grupal. Outra corrente defende que a teoria da perda de uma chance constitui perfeito exemplo de ampliação do conceito de dano reparável, mantendo a aplicação mais rígida do nexo causal.
Dois são os critérios apontados pela doutrina e jurisprudência para a correta aplicação da teoria da perda de uma chance. O primeiro diz respeito à seriedade das chances ultrajadas; para que a demanda seja digna de procedência, a chance deve representar muito mais do que uma simples esperança subjetiva. O segundo prescreve que a reparação da chance perdida sempre deverá ser inferior ao valor da vantagem final.
A teoria, em linhas gerais, reconhece a possibilidade de indenização nos casos em que alguém se vê privado da oportunidade de obter um lucro ou de evitar um determinado prejuízo. Pode-se utilizá-la em hipóteses fáticas regidas tanto pela responsabilidade civil objetiva (orientada pela teoria do risco), assim como pela tradicional responsabilidade civil subjetiva, que tem na culpa o seu maior fundamento e requisito.
2.2 PERDA DE UMA CHANCE COMO DANO ESPECÍFICO
Esta vertente da teoria tem por escopo reconhecer a existência de uma nova categoria de dano indenizável, um dano autônomo e específico consistente na chance perdida, o qual independe do resultado final. Atribui-se um valor pecuniário, de conteúdo patrimonial, à probabilidade de obter um lucro, sem a certeza da efetivação, no caso concreto, da vantagem derradeira.
Não se concede a indenização pela vantagem perdida, mas sim pela possibilidade real e séria de consegui-la. Para tanto, a teoria faz uma distinção entre resultado perdido e as chances vituperadas, relativizando o conceito de dano.
Um dos expoentes desta corrente é Joseph King Jr. O autor americano propugna que os tribunais têm falhado em identificar a chance perdida como um dano reparável, pois a interpretam equivocadamente como uma possível causa para a perda definitiva do lucro esperado pela vítima.[5]
King Jr. defende a autonomia das chances perdidas a partir do conceito de predisposições (preexinting conditions). Utilizada principalmente na seara médica, a teoria das predisposições serve para averiguar qual dano a vítima já havia sofrido antes do erro médico. Assim, as predisposições se distanciam das causas concorrentes por serem propensões relativas a eventos naturais como câncer, hepatite, etc., sem constituírem a causa necessária para o desencadeamento do dano.[6]
Na lição do referido doutrinador, as probabilidades medem a ignorância humana e não uma chance legítima, que já existe por si só. Portanto, a única forma sensível de se avaliar, no caso concreto, a oportunidade perdida pela vítima é quantificar o dano sofrido, levando-se em conta a probabilidade que tinha a vítima de aferir, ao final do processo aleatório, a vantagem pretendida.
2.3 PERDA DE UMA CHANCE COMO CAUSALIDADE ALTERNATIVA
A teoria clássica da perda de uma chance imprimiu um caráter autônomo em relação às chances perdidas. Essa referida independência serviria para distinguir o dano representado pela paralisação do processo aleatório no qual se encontrava a vítima (oportunidade perdida) do prejuízo representado pela perda da vantagem pretendida, que também se denominou dano final.
A falta de causalidade necessária (conditio sine qua non) entre o dano final e o ato do agente ofensor que causou a interrupção do processo aleatório impossibilita a reparação integral da vantagem final esperada. Entretanto, servindo-se da mesma linha evolutiva utilizada para respaldar a atenuação do pressuposto da culpa, a doutrina passou a considerar uma teoria capaz de modificar os requisitos necessários do nexo de causalidade, criando, para tanto, a propalada causalidade alternativa.
No sistema jurídico brasileiro de tradição romano-germânica, a condição necessária deve encontrar respaldo num juízo de certeza sólido entre a conduta e o dano. Dessa maneira, não existe possibilidade de gradação causal, ou o nexo de causalidade é totalmente provado, gerando todos os efeitos reparatórios pertinentes, ou a pretensão indenizatória restará improcedente, mesmo comprovando-se parte da relação causal. Tal padrão de responsabilidade civil é denominado pelos juristas de “tudo ou nada”.[7]
Já no sistema norte-americano a jurisprudência consolidou o entendimento de que a valoração de um ato ofensivo como causa do dano num patamar acima de 50% (cinqüenta por cento) de probabilidade é suficiente para considerá-lo como causa necessária (condição but for). Porém, igualmente ao sistema romano-germânico, as conseqüências devem ser logicamente previsíveis para a responsabilização do infrator.[8]
Em ambos os sistemas o problema de estabelecer precisamente qual teoria da causalidade adotar persiste, visto que não existe certeza absoluta em relação à prova do nexo causal, bastando uma carga probatória que forneça os elementos de convencimento do magistrado ou, no sistema norte-americano, do júri.
O estabelecimento de presunções é uma das maneiras pelas quais é relativizado o princípio geral de que incumbe ao autor provar a causalidade entre o ato do infrator e o dano ocasionado. Isso ocorre quando o processo causal escapa a uma observação mais direta ou quando a multiplicidade de causas gera grande complexidade. Essas presunções podem advir com o trabalho da jurisprudência ou pela ação do legislador, como nos casos de acidente de trânsito, atividades nucleares, acidentes de trabalho e ações nocivas ao meio ambiente.
Duas são as soluções de causalidade alternativa apontadas pela doutrina para resolverem a questão da responsabilidade civil pela perda de uma chance. A primeira utiliza uma espécie de presunção causal, nos mesmos moldes vislumbrados na responsabilidade civil dos grupos, alcançando, inclusive, a reparação do dano final em casos de perda de uma chance médica, é o que os americanos alcunham de “fator substancial”. A segunda solução, ao contrário, alterca que a reparação deve ficar limitada ao valor das chances perdidas. Os autores não fazem qualquer distinção entre a responsabilidade pela perda de uma chance na seara médica e as outras modalidades. Essa posição refuta o conceito alargado de dano, apropriando-se da idéia de “causalidade parcial”, a qual é utilizada para identificar a proporção de causalidade entre a ação ou omissão do agente e o dano final, cujo resultado será identificado como “chances perdidas”.[9]
2.3.1 Causalidade parcial
Autores como Jacques Boré e John Makdisi defendem que as chances perdidas são apenas um meio de quantificar o nexo de causalidade entre a ação do agente e o dano final (perda da vantagem pretendida). Assim, caso a conduta do ofensor não represente uma condição necessária (condição but for) para a interrupção do processo aleatório, pode-se conceder a reparação para um prejuízo parcial e relativo, reduzindo o prejuízo na medida do vínculo causal constatado com o erro do infrator.[10]
Makdisi ensina que a reparação deverá ser mensurada de acordo com a probabilidade de causalidade provada. Se existem 70% de probabilidade de que a conduta do ofensor tenha causado prejuízo à vítima, o dano será quantificado em 70% da perda total suportada. Da mesma forma, quando o conjunto probatório indica uma estimativa causal de 30%, é exatamente segundo esta proporção que será calculada a indenização.[11]
Destarte, a idéia de causalidade parcial ministrada pelos autores citados esbarra no requisito da condição necessária, indispensável para todas as teorias sobre o nexo causal. É nesse sentido que a causalidade alternativa seria utilizada, já que flexibiliza o ônus da prova da conditio sine qua non.
Estar-se-ia, então, não diante de um dano independente do dano final, mas de certa dispensa da prova da causalidade, responsabilizando-se o réu a pagar pelo dano que, segundo uma correlação estatística pré-científica, se espera que ele tenha causado.
Cumpre registrar que a análise econômica das instituições jurídicas, que tem como finalidade encontrar a solução economicamente mais eficiente, é um processo bastante rotineiro entre os juristas da Common Law.
Com base no sistema do “tudo ou nada”, se uma falha médica apresenta 30% de chances de ter causado determinado dano, o médico responsável não seria condenado a reparar qualquer tipo de dano. Assim, a função pedagógica da responsabilidade civil não se verificaria, pois o médico não teria razões jurídicas para mudar o seu comportamento. Porém, constatando-se que o referido médico cause em seu paciente um prejuízo de sobrevivência de 70%, segundo os critérios da Common Law, a atividade médica é considerada economicamente insuficiente, visto que é responsável pela criação de um lucro adicional inferior à despesa criada. Neste caso, o médico estaria reparando os elementos aleatórios do prejuízo, que não estão em relação de causalidade com a falha médica.[12]
Todavia, alguns autores como Lori Ellis sustentam que a aplicação da teoria da perda de uma chance deve ser aplicada apenas aos casos em que a conduta do ofensor não tenha causado more likely than not o dano final, ou seja, que retire menos de 50% da probabilidade de a vítima auferir a vantagem esperada. Assim, nas hipóteses em que a conduta danosa cruze a linha dos 50% a reparação do prejuízo final pelo agente seria irremediavelmente integral.[13]
Lori Ellis assevera que a teoria da perda de uma chance tem por escopo mitigar as injustiças em casos médicos devido à dificuldade de prova do nexo causal. Ademais, com supedâneo na função pedagógica da responsabilidade civil, não seria crível que médicos deixassem de indenizar falhas que contribuíram para o dano, que não constituem em condições but for, ocasionando uma licença para a ocorrência reiterada de falhas de menor porte.
2.3.2 Presunção causal e fator substancial
A teoria do fator substancial foi criada precipuamente para amparar casos em que o padrão da prova da condição but for se mostrava inadequado e gerador de iniqüidades. Desse modo, mesmo que o dano possa ter ocorrido sem a participação única do infrator, comprovada sua contribuição substancial (presunção causal), este deve arcar com a reparação integral do dano final, isto é, com a total indenização da vantagem que a vítima poderia alcançar ao final do processo aleatório.
O fator substancial se aproxima bastante do exemplo clássico do twin fires, no qual um agente dá início a um incêndio que acaba se somando a outro, sendo os dois incêndios capazes, individualmente, de destruir a propriedade da vítima. No caso, a propriedade da vítima seria destruída mesmo sem a ocorrência do incêndio causado pelo agressor.[14]
O mais famoso leading case é Higs v. United States, julgado em 1966. Uma paciente que sofria de graves dores abdominais foi medicada pelo médico plantonista e liberada para retornar somente depois de oito horas. Horas depois a paciente veio a falecer devido a uma obstrução intestinal. Os peritos constataram que a conduta médica fora um fator substancial para a morte da paciente. O dano final (morte) foi indenizado, mesmo sem a prova inequívoca da conditio sine qua non, ou seja, a vítima poderia ter falecido pela evolução normal da doença, mesmo que adequadamente tratada.[15]
Entretanto, Patrice Jourdain e Geneviève Viney defendem a utilização do fator substancial apenas na seara médica, posto que em tais casos a vítima não conseguiria estabelecer com certeza a relação de causalidade entre o fato do ofensor e o dano, mas apenas apontaria o responsável pelo prejuízo. Assim, a indenização seria concedida apenas pela constatação de que a conduta do agente havia criado um risco injustificado ou devido a uma “presunção de realização de riscos.” [16]