4. O REGULAMENTO PARA O RECONHECIMENTO DO PATRIMÔNIO CULTURAL DO MERCOSUL
O continente europeu, por diversas razões já mencionadas, ocupa posição de vanguarda na discussão e na adoção de instrumentos de proteção à paisagem, notadamente com relação ao patrimônio cultural. Nesse contexto, destaca-se a Convenção Europeia da Paisagem de Florença, assinada em 2000, consoante oportunamente aqui tratado.
Entretanto, o Conselho do Mercado Comum, em decisão tomada recentemente[2], criou o Patrimônio Cultural do MERCOSUL e aprovou o Regulamento para o Reconhecimento desse patrimônio, tendo por premissas a contribuição do patrimônio cultural para o reconhecimento e a valorização da identidade cultural regional e para a compreensão de referências, princípios e valores compartilhados entre os países da região, além de constituir importante fator para a promoção da integração regional.
4.1. Estrutura do Regulamento
O Regulamento para Reconhecimento do Patrimônio Cultural do MERCOSUL, Anexo à Decisão n. 55/12 do Conselho do Mercado Comum, é composto de seis seções e dois apêndices, sendo que o Apêndice I lista a documentação mínima para apresentação de propostas de reconhecimento de bens como Patrimônio Cultural do MERCOSUL (PCM) e o Apêndice II contempla a marca de identificação de PCM, bem como sua aplicação.
Quanto às seções que compõem o Regulamento, a primeira retrata seus objetivos e propósitos; as segunda e terceira seções apontam, respectivamente, os critérios de reconhecimento do PCM e os procedimentos para candidaturas e inscrição de bens; a quarta seção estabelece as regras para gestão dos bens reconhecidos; a quinta seção dispõe sobre a assistência técnica e cooperação entre os países membros do MERCOSUL e; por fim, a sexta seção trata das disposições finais.
4.2 Principais aspectos do Regulamento
O Regulamento para Reconhecimento do Patrimônio Cultural do MERCOSUL, diversamente do que ocorre com a Convenção de Florença, é bastante superficial em matéria de proteção da paisagem, traçando objetivos mais restritos e menos audasiosos que a Convenção adotada em sede europeia.
Feita a devida ressalva, o Regulamento em questão tem por objetivo o reconhecimento do PCM, o qual, por sua vez, pretende fortalecer a identidade cultural e promover o diálogo, a integração e o desenvolvimento regional” (artigo 1o) e, como propósito, estabelecer os critérios para reconhecimento de bens culturais e os procedimentos para submissão, análise, avaliação, aprovação e homologação de candidaturas, assim como aspectos referentes à gestão dos bens reconhecidos e à assistência e cooperação para preservação e promoção de tais bens.
Sob outro aspecto, enquanto a Convenção Europeia da Paisagem tutela a paisagem em sentido amplo, o Regulamento se ocupa da paisagem em sentido estrito ou, em outras palavras, essencialmente do patrimônio cultural, conforme o disposto em seu artigo 3o, in verbis:
Poderá ser reconhecido como Patrimônio Cultural do MERCOSUL (PCM) qualquer bem cultural, de natureza material e/ou imaterial que:
a) manifeste valores associados a processos históricos vinculados aos movimentos de autodeterminação ou expressão comum da região perante o mundo;
b) expresse os esforços de união entre os países da região;
c) esteja diretamente relacionado a referências culturais compartilhadas por mais de um país da região;
d) constitua fator de promoção da integração dos países, com vistas a um destino comum.
Outrossim, cumpre frisar que apenas os organismos nacionais competentes dos países proponentes (ou seja, aqueles designados pelas autoridades máximas da área da Cultura dos Estados-Parte e dos Estados Associados) poderão encaminhar candidaturas à Comissão de Patrimônio Cultural do MERCOSUL (artigo 5o).
Em outras palavras, a participação popular, importante mecanismo para assegurar a legitimidade da escolha e a efetiva conservação dos bens é dispensada pelo Regulamento.
Ademais, em matéria de assistência técnica e cooperação, o artigo 8o menciona expressamente apenas e tão somente o apoio na gestão dos bens considerados PCM, deixando aberta a possibilidade de outras modalidades de cooperação bilateral e multilateral sem, contudo, especificá-las.
No tocante à gestão dos bens reconhecidos como PCM, o artigo 7o do Regulamento estipula prazos para implementação efetiva do plano de diretrizes apresentadas para gestão do bem, prevendo desde a possibilidade de solicitação de esclarecimentos pela Comissão de Patrimônio Cultural do MERCOSUL até a exclusão do bem da lista em caso de descumprimento. Ou seja, ao invés de mecanismos de incentivo, o Regulamento prevê mecanismos de punição.
Por fim, quanto aos casos omissos no Regulamento, o documento estabelece que, se não puderem ser esclarecidos pela Comissão de Patrimônio Cultural do MERCOSUL, serão dirimidos pela Reunião de Ministros da Cultura.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como visto, a conscientização pública da importância da proteção das paisagens em âmbito europeu encontra-se em estágio mais avançado que em outros continentes, devido a inúmeros fatores, em especial históricos, sociais e econômicos, trazidos no próprio preâmbulo da Convenção Europeia da Paisagem.
Essa realidade reflete-se na amplitude da participação da sociedade civil, não apenas nas discussões do projeto que deu origem ao texto final da Convenção de Florença, mas, especialmente, no papel fundamental da sociedade no processo de tomada de decisões referentes à proteção e gestão das paisagens europeias. Nada mais desejável dos pontos de vista de legitimidade e efetividade, eis que a população, ao se identificar com as áreas e bens protegidos, torna-se parceira do Poder Público na conservação do patrimônio natural e cultural.
Lamentavelmente, o Regulamento aprovado no âmbito do MERCOSUL, na contramão da tendência atual, atribuiu exclusivamente a organismos governamentais a possibilidade de encaminhar candidaturas à Comissão de Patrimônio Cultural do MERCOSUL para integração de bens ao PCM. Logo, a participação popular ocorrerá apenas nos casos em que a legislação nacional dos Estados-Parte ou associados ao MERCOSUL a estipulem.
Ademais, quanto aos propósitos e abrangência de aplicação, notou-se outra distância enorme entre o previsto na Convenção Europeia da Paisagem e o disposto no Regulamento para Recuperação do Patrimônio Cultural do MERCOSUL. Enquanto a Convenção de Florença abrange a proteção do patrimônio natural e cultural, incluindo as paisagens comuns, que ilustram a vida quotidiana, o Regulamento do MERCOSUL se limita a regular a proteção do patrimônio cultural com valor histórico, cultural ou com importância para a integração regional.
Sob outro prisma, cabe ressaltar que a Convenção Europeia se preocupa com o desenvolvimento de políticas sólidas de proteção, gestão e ordenamento da paisagem, coordenadas nas esferas local, regional, nacional e internacional, e na sustentabilidade dessas políticas a longo prazo, de modo a promover um real equilíbrio entre os aspectos social, ambiental e econômico. A fim de manter e melhorar a eficácia das medidas tomadas com fulcro nas disposições da citada Convenção, referido instrumento prevê com destaque a necessidade de investimento em educação para formação de profissionais multidisciplinares.
O Regulamento, por seu turno, se ocupou especificamente da catalogação e recuperação de bens que se enquadram no conceito de PCM, objetivos mais imediatistas, deixando em segundo plano a questão do desenvolvimento de políticas coordenadas e de longo prazo nas diversas esferas envolvidas no processo de proteção das paisagens culturais.
Com relação ao mecanismo de acompanhamento do cumprimento do disposto nos instrumentos internacionais em cotejo, a Convenção de Florença prevê um mecanismo de “compliance” baseado em instrumentos de incentivo. Os relatórios emitidos pelos Comitês de Peritos do Conselho da Europa e apresentados periodicamente ao Conselho de Ministros, além da função de monitoramento, indicam os projetos e políticas sustentáveis e bem sucedidos no âmbito da Convenção para fins de premiação.
O Regulamento para recuperação do PCM, por outro lado, estabeleceu mecanismos de “compliance” baseados em instrumento de comando e controle, porquanto aqueles projetos que não forem cumpridos conforme as diretrizes apresentadas poderão, após prestar esclarecimentos à Comissão de Patrimônio Cultural do MERCOSUL, ser penalizados com a exclusão da lista de PCM, os quais tendem a ser ineficazes a longo prazo.
Por fim, conclui-se que a Convenção Europeia da Paisagem foi um documento elaborado através de um processo democrático, com vistas a tutelar a paisagem de modo abrangente, integrado e estabelecendo medidas visando a sustentabilidade das políticas desenvolvidas sob seu abrigo a longo prazo. Já a aprovação do Regulamento para recuperação do PCM se deu em contexto diverso, em decisão administrativamente tomada pelo Conselho do Mercado Comum do MERCOSUL, sem participação popular efetiva, possuindo caráter mais imediato e com escopo menos ambicioso, deixando a cargo das políticas nacionais de seus membros e de instrumentos de aplicação em âmbito global a proteção da paisagem em sentido amplo.
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1988.
______. Decreto-lei n.o 25, de 30 de novembro de 1937. Organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional. Brasilia, DF, D.O.U. de 06.12.1937. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del0025.htm>. Acesso em 30 jan. 2013.
CONVENÇÃO EUROPEIA DA PAISAGEM. Florença, 20/10/2000. Disponível em <http://www.dgotdu.pt/cp/European%20Landsacpe%20Convention.pdf>. Acesso em 20 nov. 2012.
MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 18 ed. – São Paulo: Malheiros, 2010.
MERCOSUL. Decisão N.º 55/12 do Consellho do Mercado Comum. Disponível em: < http://www.iphan.gov.br/baixaFcdAnexo.do?id=3152>. Acesso em 15 jan. 2013.
MILARE, Édis. Direito do ambiente – a gestão ambiental em foco. 7. ed. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.
NETO, Antonio Zanollo. Direito à Paisagem. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 8, p. 29-37, outubro/2010. Disponível em: <http://www.reid.org.br/?CONT=00000202>. Acesso em 21 jan. 2013.
UNESCO. Orientações para inscrição de tipos específicos de bens na lista do Patrimônio Mundial. In: Orientações para aplicação da Convenção do Patrimônio Mundial, Anexo III. Disponível em: <http://whc.unesco.org/>. Acesso em: 17 dez. 2012.
Notas
[1] Orientações para aplicação da Convenção do Patrimônio Mundial, Anexo III. Disponível em:<http://whc.unesco.org/>
[2] MERCOSUL/CMC/DEC. n. 55, de 06 de dezembro de 2012. Disponível em: <http://www.iphan.gov.br/baixaFcdAnexo.do?id=3152>