O dolo eventual nos homicídios de trânsito e breves apontamentos sobre a Lei nº 12.971/2014

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04/02/2015 às 16:19
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O presente trabalho tem por objetivo avaliar quando é possível a configuração do dolo eventual nos homicídios na direção de veículo automotor, bem como as implicações que a Lei 12.971/2014 pode trazer.

1  INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por objetivo a análise dos institutos do dolo eventual e da culpa consciente, demonstrando a linha tênue que os distingue no âmbito dos homicídios de trânsito.

A escolha do tema tem sua justificativa no forte apelo social que homicídios causados na direção de veículos automotores causam, mormente pela busca de um maior rigor nas penas impostas aos infratores da lei, resultando, em alguns casos, na aplicação da teoria do dolo eventual, que resulta em uma pena maior e o julgamento pelo tribunal do júri.

Nesse passo, o objetivo geral deste estudo é verificar as circunstâncias em que há possibilidade da aplicação do dolo eventual no homicídio de trânsito, de modo a concluir pelo acerto ou não de tal tese, bem como se os critérios adotados são ou não coerentes.

Para tanto, em um primeiro momento, o trabalho visará discorrer sobre os conceitos de dolo e culpa, bem como as distinções doutrinárias entre o dolo eventual e a culpa consciente, tratando da descrição de cada teoria, seus tipos, modalidades e elementos.

Assim, serão expostas as circunstâncias em que vem sendo aplicado o dolo eventual no homicídio de trânsito, verificando-se o posicionamento doutrinário e jurisprudencial do Tribunal de Justiça de Santa Catarina.

Por fim, procurar-se-á realizar uma breve reflexão das possíveis mudanças que a Lei 12.971/2014 poderá trazer especificamente em relação ao homicídio de trânsito.

A metodologia aplicada neste trabalho é de cunho bibliográfico e jurisprudencial, pois se baseia na pesquisa em livros, artigos retirados da internet e julgados.

2  DESENVOLVIMENTO

2.1 DO DOLO

O dolo é a vontade consciente de realizar os elementos contidos em determinado tipo penal. Com muita propriedade, Prado[1] esclarece que o tipo doloso pode ser definido como “a consciência e a vontade de realização dos elementos objetivos do tipo de injusto doloso (tipo objetivo)”.

Segundo os ensinamentos de Capez[2], dolo “é a vontade e a consciência de realizar os elementos constantes do tipo legal. Mais amplamente, é a vontade manifestada pela pessoa humana de realizar a conduta.”

O dolo, que é elemento essencial da ação final, compõe o tipo subjetivo e é constituído por dois elementos: um cognitivo que configura o conhecimento do fato típico e um volitivo que traz a vontade de realizar os elementos constitutivos do tipo.[3]

A grande maioria dos crimes capitulados na Codificação Brasileira são dolosos, conforme o disposto no parágrafo único do art. 18 do Código Penal[4], a regra é que todo crime é doloso, somente sendo possível a punição pela prática culposa, quando expressamente previsto em lei. Ou seja, o dolo é a regra e a culpa é a exceção.[5]

2.1.1 Elementos do dolo

A partir do conceito do dolo anteriormente explanado, pode-se extrair a presença de dois elementos fundamentais para a sua configuração, quais sejam o elemento cognitivo e o elemento volitivo.

O elemento cognitivo diz respeito à consciência daquilo que o agente pretende praticar. Tal consciência deve se fazer presente no momento em que a ação está sendo realizada.

Cognição é conhecimento da prática de determinado ato. O agente deve ter plena faculdade das condutas por ele realizadas para concorrer a título de dolo.

Importante frisar que a previsão do resultado deve abarcar todos elementos essenciais do tipo. Todavia, tal previsão diz respeito tão somente a consciência dos elementos que integram o tipo penal, excluindo-se a consciência da ilicitude. Portanto, “é desnecessário o conhecimento da configuração típica, sendo suficiente o conhecimento das circunstâncias de fato necessárias à composição do tipo.”[6]

Por sua vez, o elemento volitivo diz respeito à vontade do agente de praticar o tipo penal. Tal vontade, necessariamente, deve ser atual e presente no momento da ação e esta, dirigida à consecução do fim almejado, devendo, ainda, ser determinante para o acontecimento, de modo que o resultado típico seja obra do autor e não uma mera esperança ou desejo.

Em verdade, os elementos cognitivo e volitivo são fundamentais para a caracterização do dolo. De nada basta a consciência sem a vontade, uma está intimamente ligada à outra para que o dolo se configure.

2.1.2 Teorias sobre o dolo

São três as teorias que tentam elucidar com maior precisão o conceito de dolo. São elas: a da vontade, a da representação e a do assentimento (ou consentimento).

Para a teoria da vontade, age com dolo o agente que pratica a ação de forma consciente e voluntária. Nesse sentido, é necessário que haja a consciência da conduta por parte do agente, assim como a consciência do resultado e que essa conduta seja praticada de forma voluntária.[7]

Para Bitencourt[8], tal teoria, tida como a clássica no Direito Penal, a vontade é dirigida ao resultado. A essência do dolo deve estar presente na vontade de realizar a ação e obter o resultado e não em violar a lei, sendo esta teoria, a que melhor exprime os limites entre o dolo e a culpa.

Para a teoria da representação o dolo é a simples previsão do resultado como provável, certo ou possível (representação subjetiva).[9] O que importa para esta teoria é que haja a previsão do resultado, sem, contudo, desejá-lo.

A teoria do assentimento (ou do consentimento) defende que, para a configuração do dolo, basta que o agente atue consentindo em causar o resultado, ainda que não o queira. Para tal teoria, o agente não quer o resultado de forma direta, mas o entende como possível e o aceita.[10]

Dito isso, o Código Penal Brasileiro adotou as teorias da vontade, no que diz respeito ao dolo direto, e a teoria do assentimento, no que tange ao dolo eventual.

2.1.3 Espécies de dolo

O Códex Penal em seu artigo 18, inciso I aduz que o crime é doloso “quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo”. Da análise desse dispositivo legal, extrai-se a existência de duas espécies de dolo: o direto e o indireto ou eventual.

Tal classificação surge a partir da relação entre a vontade e os elementos constitutivos do tipo[11] e tal divisão é pura e simplesmente doutrinária, tendo em vista que o Código Penal brasileiro deu o mesmo tratamento às duas espécies, devendo haver a distinção somente na aplicação da pena.

De acordo com os ensinamentos de Juarez Tavares, citado por Cezar Roberto Bitencourt[12]:

Não há mesmo razão científica alguma na apreciação da terminologia de dolo de ímpeto, dolo alternativo, dolo determinado, dolo indireto, dolo específico ou dolo genérico, que podem somente trazer confusão à matéria e que se enquadram ou entre os elementos subjetivos do tipo ou nas duas espécies mencionadas.

Dito isso, no presente trabalho, nos limitaremos a demonstrar os conceitos de dolo direto e dolo eventual, objeto principal deste estudo.

2.1.3.1 Dolo Direto

É previsto na primeira parte do inciso I do artigo 18 do Código Penal no qual dispõe “diz o crime doloso, quando o agente quis o resultado”. Seguindo esse entendimento, o agente pratica a sua conduta agindo finalisticamente para a produção do resultado por ele pretendido.

Segundo o entendimento de Nucci[13], o dolo direto “é a vontade dirigida especificamente à produção do resultado típico, abrangendo os meios utilizados para tanto.” Ou seja, é o dolo por excelência. No dolo direto o agente diz: “eu quero”.[14]

Luiz Regis Prado, Cezar Roberto Bitencourt, Guilherme de Souza Nucci e Rogério Greco ainda propõem uma subdivisão do dolo direto: o dolo direito de primeiro grau e o dolo direito de segundo grau. O primeiro é relacionado “ao fim proposto e aos meios escolhidos”[15], o objetivo principal é o resultado delitivo. Já o segundo refere-se “aos efeitos colaterais, representados como necessários”[16], quando o resultado é almejado como consequência necessária do meio escolhido para a obtenção do resultado.

2.1.3.2 Dolo Eventual

A previsão legal para o dolo eventual está disposta na segunda parte do inciso I, do artigo 18 do Código Penal, quando expressa "ou assumiu o risco de produzi-lo".

Nessa esteira, pode-se afirmar que o dolo eventual ocorre quando o agente assume o risco de produzir o resultado da conduta delitiva. Trata-se de um caso mais complexo, onde “o agente não quer o segundo resultado diretamente, embora sinta que ele pode se materializar juntamente com aquilo que pretende, o que lhe é indiferente.”[17]

No dolo eventual o agente antevê o resultado como provável e possível, mas apesar disso, pratica o ato, aceitando o risco de produzi-lo. Segundo os ensinamentos de Bitencourt[18] “assumir o risco é alguma coisa mais do que ter consciência de correr o risco: é consentir previamente no resultado, caso este venha efetivamente a ocorrer”. Para o referido autor, este tipo de dolo pode ocorrer tanto “quando a intenção do agente dirige-se a um fim penalmente típico como quando dirige-se a um resultado extratípico."

Dito isso, importante observar que tanto a consciência quanto a vontade devem estar presentes no dolo eventual, porquanto representam a essência do dolo.

Rogério Greco[19] destaca o grande problema que se tem diante da caracterização do dolo eventual, visto que não é possível identificar a vontade do agente, como um de seus elementos integrantes, ocorrendo, somente a consciência. Todavia, Nucci[20] esclarece que o dolo eventual, extrai-se em grande parte dos casos, da análise do caso concreto, da situação fática e não da mente do agente.

2.2 DA CULPA

Dispõe o artigo 18, inciso do II do Códex Penal que diz-se culposo o crime “quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia”. Todavia, para que seja corretamente aferida a conduta do agente, se ela foi culposa ou não, tal conceituação não se faz suficiente.

Do escólio de Mirabete[21], extrai-se o conceito de culpa como “a conduta voluntária (ação ou omissão) que produz resultado antijurídico não querido, mas previsível, e excepcionalmente previsto, que podia, com a devida atenção, ser evitado.”

Por sua vez, Zaffaroni e Pierangeli[22] complementam da seguinte forma:

O tipo culposo não individualiza a conduta pela finalidade e sim porque, na forma em que se obtém essa finalidade, viola-se um dever de cuidado, ou seja, como diz a própria lei penal, a pessoa, por sua conduta, dá causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia.

Algo que se pode ter em mente é a infinidade de diferentes modos de culpa que se pode apresentar na produção do resultado morte, mais especificamente na direção de veículo automotor.

Para o presente estudo, entender-se-á a culpa como sendo aquela que decorre “da comparação que se faz entre o comportamento realizado pelo sujeito no plano concreto e aquele que uma pessoa, de prudência normal, mediana, teria naquelas mesmas circunstâncias”.[23]

2.2.1 Elementos da culpa

Segundo os ensinamentos de Greco[24], são elementos do crime culposo a conduta humana voluntária comissiva ou omissiva; a inobservância de um dever objetivo de cuidado (negligência, imprudência ou imperícia); o resultado lesivo não querido; nexo de causalidade; previsibilidade; e tipicidade.

Não obstante, alguns doutrinadores classificarem os elementos da culpa de forma diversa, sua essência permanece inalterada.[25]

No que tange a conduta humana voluntária, necessário se faz entender que qualquer conduta (dolosa ou culposa) deve ter uma finalidade. O que difere a conduta culposa da dolosa é que na última existe uma finalidade ilícita, já na primeira a finalidade do agente é lícita, no entanto, os meios empregados não observam o do dever de diligência exigido pela norma.

Por sua vez, há o dever de cuidado objetivo, que deve ser observado por todos. São regras básicas e gerais de atenção e cautela que são exigidos de todos indistintamente que convivem em sociedade, sem as quais poderá resultar em um caos social.

Do escólio de Bitencourt[26] extrai-se que a observância do dever objetivo de cuidado, ou seja, a diligência devida, “constitui o elemento fundamental do tipo de injusto culposo, cuja análise constitui uma questão preliminar no exame da culpa.”

O dever de cuidado objetivo dirige-se a todos, indistintamente, estando intrinsecamente ligado ao princípio da confiança.

Somada à inobservância do dever de cuidado, tem-se a presença do resultado que deve consistir na lesão de um bem jurídico tutelado. Não haverá crime se da ação, ainda que inobservante o dever de cuidado, não sobrevier resultado.

Evidentemente que para haver um crime culposo, além dos elementos supracitados, obrigatoriamente deve estar presente o nexo de causalidade entre a ação e o resultado. Ou seja, “é indispensável que o resultado seja consequência da inobservância do cuidado devido, ou, em outros termos, que este seja a causa daquele.”[27]

A previsibilidade, por sua vez, diz respeito à possibilidade do agente antever que a sua conduta possa produzir um resultado lesivo a um bem jurídico alheio, ou seja, consiste na “possibilidade de conhecer o perigo que a conduta descuidada do sujeito cria para os bens jurídicos alheios, e a possibilidade de prever o resultado conforme o conhecimento do agente”.[28]

Assim, o homem médio, quando da prática de determinada conduta, exige-se que ele possa prever as consequências de seus atos, adotando todo o dever de cuidado possível.

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Parte da doutrina classifica a previsibilidade em dois tipos: a objetiva e a subjetiva. A primeira dispõe sobre “a possibilidade de qualquer pessoa dotada de prudência mediana prever o resultado”. Já a previsibilidade subjetiva é “a possibilidade que o agente, dadas as suas condições peculiares, tinha de prever o resultado”. O que importa para a previsibilidade subjetiva é “se o agente poderia ou não o ter feito”. [29]

Por fim, a tipicidade, elemento também indispensável à caracterização do delito culposo.

Como bem aponta Mirabete[30], “a tipicidade nos crimes culposos determina-se através da comparação entre a conduta do agente e o comportamento presumível que, nas circunstâncias, teria uma pessoa de discernimento e prudência ordinários.”

Em outros termos, a ação é típica quando provoca um resultado devido à ausência de cuidado e atenção adequados por parte do agente.

2.2.2 Modalidades de Culpa

As modalidades de culpa estão expressas no inciso II do artigo 18 do Código Penal: imprudência, negligência ou imperícia.

A imprudência é a conduta praticada pelo agente por não observar o dever de cuidado, causando resultado lesivo que lhe era previsível.[31]

A negligência trata do fato quando o agente, podendo tomar as cautelas exigíveis não o faz por indiferença ou displicência. É a ausência de precaução.

Já a imperícia é a inaptidão (momentânea ou não) ou a falta de conhecimento técnico para o exercício de um ato, normalmente ligada à profissão.

2.2.3 Espécies de culpa

A doutrina refere-se à culpa inconsciente e à culpa consciente, que também é conhecida como culpa com precisão.

A culpa inconsciente é aquela sem previsão. Existe quando o agente não antevê o resultado que é previsível.

Já a culpa consciente é também chamada de culpa com previsão e se dá quando o agente deixa de observar a diligência à qual estava incumbido, prevê o resultado, mas acredita que ele não ocorrerá. Segundo Nucci[32]: “Há no agente a representação da possibilidade do resultado, mas ele a afasta, de pronto, por entender que a evitará e que sua habilidade impedirá o evento lesivo”.

2.3 DOLO EVENTUAL VERSUS CULPA CONSCIENTE

A diferença entre dolo eventual e culpa consciente é um dos problemas mais tempestuosos no direito penal. A diferenciação entre as duas situações é complexa e difícil, mas plausível. Isso porque, nos dois casos está presente a previsão do resultado proibido.

Cezar Roberto Bitencourt delimita com muita propriedade a diferença entre ambos:

Enquanto no dolo eventual o agente anui ao advento desse resultado, assumindo o risco de produzi-lo, em vez de renunciar à ação, na culpa consciente, ao contrário, repele a hipótese de superveniência do resultado, na esperança convicta de que este não ocorrerá.[33]

O que se observa é que o dolo eventual se posiciona como um tipo mais brando de dolo, enquanto a culpa consciente se situa em um tipo mais grave da culpa.

Especificamente em relação aos crimes de trânsito, Nucci revela em sua obra que é tênue a linha divisória que distingue um e outro:

Se há anos atrás, um racha, com vítimas fatais, terminava sendo punido como delito culposo (culpa consciente), hoje não se deixa de considerar o desprezo pela vida por parte do condutor do veículo, punindo-se como crime doloso (dolo eventual).[34]

Em suma, na culpa consciente o agente acredita que pode evitar o resultado, já no dolo eventual o agente não quer produzir o resultado diretamente, mas, vindo a acontecer, pouco importa.

No presente estudo, é imprescindível a diferenciação entre um e outro, tendo em vista que, no caso concreto, se caracterizado um homicídio doloso a pena aplicada poderá ser de 6 (seis) a 20 (vinte) anos, nos termos do artigo 121, caput do Código Penal. Por sua vez, o homicídio na direção de veículo automotor (culposo), previsto no artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro, prevê uma pena de 2 (dois) a 4 (quatro) anos.

2.4 O DOLO EVENTUAL NOS HOMICÍDIOS DE TRÂNSITO

O homicídio culposo de trânsito está expresso no artigo 302 da Lei n. 9.503 de 23 de setembro de 1997 (Código de Trânsito Brasileiro): “Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor: Penas - detenção, de dois a quatro anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.”

Segundo Damásio de Jesus[35], o homicídio culposo no trânsito pode ser concebido como sendo “a morte de um homem provocada culposamente por outro na direção de veículo automotor.”

Para Greco[36] a fórmula “embriaguez + velocidade excessiva = dolo eventual” vem se espalhando por todos os tribunais, mormente pelo movimento midiático que exige maior rigor na punição dos delitos cometidos nessas circunstâncias. Não obstante, o referido autor prossegue demonstrando que essa fórmula criada não merece prosperar visto que “não se pode partir do princípio de que todos aqueles que dirigem embriagados e com velocidade excessiva não se importam em causar a morte ou mesmo lesões em outras pessoas”, ainda que em alguns casos, possa ocorrer tal hipótese. O que deve ser rejeitada, para o referido autor, é a fórmula matemática que vem sendo aplicada pelos tribunais.

Nesta esteira, Julio Fabbrini Mirabete:

[...] Há o dolo eventual, portanto, quando o autor tem seriamente como possível a realização do tipo legal se praticar a conduta e se conforma com isso. Exemplos de dolo eventual são o do motorista que avança o automóvel contra uma multidão porque está com pressa de chegar a seu destino, por exemplo, aceitando o risco da morte de um ou mais pedestres.[37]

Para Leonardo Schimitt de Bem, a diferença entre o dolo eventual e culpa consciente nos delitos de trânsito deve ser aferida em um plano cognitivo (conhecimento da prática de determinado ato). Nesse sentido, “a consciência do perigo é fundamental para a punição do agente, pois na sua ausência não há dolo.”[38]

De acordo com o escólio de Guilherme de Souza Nucci[39], as inúmeras campanhas realizadas demonstram o perigo no trânsito na direção de veículo automotor ligado ao racha, direção em alta velocidade e/ou sob embriaguez. Todavia, continua crescente o número de acidentes em que o condutor do veículo age dessa forma, “demonstrando seu desapego à incolumidade alheia” o que tem levado os tribunais a verificar a presença do dolo eventual nos homicídios de trânsito em alguns casos, com o fito de demonstrar à sociedade a necessidade do Estado em responder de forma mais enérgica à atitude de quem comete esses homicídios.

Tendo em mente que o dolo eventual, conforme já exposto anteriormente, se dá quando o agente assume e aceita a produção do resultado, ainda que o Código de Trânsito Brasileiro defina os crimes de homicídio de trânsito como culposos, não se pode deixar de reconhecer a existência do dolo eventual em alguns casos.

Para a aferição do dolo eventual, caberá ao julgador uma minuciosa apreciação dos fatos, conforme preleciona Damásio de Jesus:

O juiz, na investigação do dolo eventual, deve apreciar as circunstâncias do fato concreto e não buscá-lo na mente do autor, uma vez que, como ficou consignado, nenhum réu vai confessar a previsão do resultado, a consciência da possibilidade ou probabilidade de sua causação e a consciência do consentimento. Daí valer-se dos chamados “indicadores objetivos”, dentre os quais incluem-se quatro de capital importância: 1.º) risco de perigo para o bem jurídico implícito na conduta (ex.: a vida); 2.º) poder de evitação de eventual resultado pela abstenção da ação; 3.º) meios de execução empregados; e 4.º) desconsideração, falta de respeito ou indiferença para com o bem jurídico.[40]

 

No que tange aos homicídios na direção de veículo automotor, quando este vem somado ao condutor sob efeito de álcool ou entorpecentes, disputando racha, com a impressão de velocidade extremamente excessiva ou na contramão, vem sendo aplicado pelos tribunais a presença do dolo eventual pelo princípio do in dubio pro societate.

Nesta senda, superada a definição do método de aferição do dolo eventual nos homicídios de trânsito pela doutrina, passa-se a comentar os principais casos em que geram a discussão a respeito da incidência do dolo eventual e da culpa consciente na doutrina e na jurisprudência.

2.4.1 Análise Jurisprudencial do Tribunal de Justiça Catarinense

Conforme anteriormente demonstrado, o maior desafio para a aplicação do dolo eventual, especificamente no que tange aos homicídios praticados na direção de veículo automotor, reside no campo processual.

Dito isso, conforme mencionado alhures, tal aferição é de extrema importância, tendo em vista que, feita erroneamente, terá ao acusado implicações práticas. Se caracterizado o dolo eventual, além de uma pena substancialmente maior, será ele submentido ao tribunal do júri.

Nesse sentido, foram colhidos os julgados mais recentes do Tribunal de Justiça de Santa Catarina em que foi reconhecido o dolo eventual nos crimes de homicídio na direção de veículo automotor.

O primeiro julgado colacionado diz respeito à prática de racha, que segundo Leonardo Schmitt de Bem[41], deve ser bem precisada a sua diferença em relação a “velocidade excessiva”. Vejamos:

RECURSO CRIMINAL. CRIME CONTRA A VIDA. HOMICÍDIO E LESÃO CORPORAL PRATICADAS NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR DURANTE A SUPOSTA PRÁTICA DE "RACHA" (ART. 121, CAPUT, E ART. 129, § 1º, II, AMBOS DO CÓDIGO PENAL, EM CONCURSO FORMAL, E ART. 308 DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO). DECISÃO DE PRONÚNCIA. RECURSO DA DEFESA. ALMEJADA ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA. INVIABILIDADE. HIPÓTESES DO ART. 415 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL NÃO DEMONSTRADAS ESTREME DE DÚVIDA. ANÁLISE QUE INCUMBE AO CONSELHO DE SENTENÇA.   DESCLASSIFICAÇÃO PARA A MODALIDADE CULPOSA. IMPOSSIBILIDADE. MATERIALIDADE INCONTESTE. INDÍCIOS SUFICIENTES DA AUTORIA. INDICATIVOS DE QUE O RECORRENTE, EM TESE, DIRIGINDO SOB A INFLUÊNCIA DE ÁLCOOL E EM VELOCIDADE EXCESSIVA, PARTICIPAVA DE "RACHA" NO TRÂNSITO QUANDO PERDEU O CONTROLE DO AUTOMÓVEL E COLIDIU CONTRA MURETA EXISTENTE EM PRAÇA DE PEDÁGIO, OCASIONANDO A MORTE DO CARONEIRO E LESÕES CORPORAIS QUE RESULTARAM PERIGO DE VIDA AO PASSAGEIRO. DOLO EVENTUAL, EM TESE, CONFIGURADO. DÚVIDA ACERCA DO ELEMENTO SUBJETIVO DO TIPO. MATÉRIA DE COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DO JÚRI. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO IN DUBIO PRO SOCIETATE. "Para a pronúncia é preciso que o juiz se convença da existência do crime e da probabilidade de que o acusado o tenha cometido. Havendo dúvida a respeito do elemento subjetivo do tipo, torna-se imperativo pronunciar o réu, observando-se, assim o princípio do in dubio pro societate, que informa esta etapa do procedimento" (Recurso Criminal n. 2009.016861-5, de São Lourenço do Oeste, rel. Des. Sérgio Paladino, j. em 13-10-2009).   RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.[42]

 

Do corpo do acórdão supracitado, extrai-se que, segundo a relatora, o apelante assumiu o risco de produzir o resultado lesivo, tendo em vista a sua indiferença quanto as consequências que sua atitude voluntária pudesse atingir, imprimindo velocidade extremamente excessiva e efetuando uma manobra conhecida como “cavalo-de-pau”, o que resultou na perda do controle de seu veículo, ceifando a vida  de seu caroneiro, restando, portanto, configurado o dolo eventual.

No que tange aos homicídios na condução de veículos automotores, conexos ao estado de embriaguez, é importante atentar-se para a aplicação do dolo eventual de forma imoderada pelos tribunais. Para De Bem[43], não é possível a equiparação do consumo moderado com o consumo abusivo em relação aos efeitos do álcool. Para o referido autor, “é evidente que o agente que consome moderadamente bebidas alcoólicas cria um perigo reduzido ao bem jurídico, devendo responder por homicídio culposo.”

O que se extrai da jurisprudência da Corte Catarinense é que normalmente a configuração do dolo eventual nos homicídios de trânsito em que demonstrado o estado de embriaguez do condutor, vem acompanhada de outros elementos, quais sejam: velocidade incompatível; invasão de pista contrária; ultrapassagem em local proibido; colisão sobre pista contrária. Ou seja, somente a embriaguez “não pode conduzir à conclusão de que agiu com indiferença”.[44] Observa-se:

 

RECURSO EM SENTIDO ESTRITO - IRRESIGNAÇÃO MINISTERIAL - HOMICÍDIO SIMPLES (CP, 121, CAPUT) - DECISÃO DESCLASSIFICATÓRIA PARA HOMICÍDIO CULPOSO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR (CTB, ART. 302) - IMPOSSIBILIDADE - EXISTÊNCIAS DE ELEMENTOS CONCRETOS QUE INDICAM A PRESENÇA DE DOLO EVENTUAL - DÚVIDA A SER DIRIMIDA PELO TRIBUNAL POPULAR - PREVALÊNCIA DO PRINCÍPIO DO IN DUBIO PRO SOCIETATE - PRONÚNCIA DETERMINADA - RECURSO PROVIDO.   Em se tratando de morte causada por acidente de trânsito, mormente nas hipóteses em que se evidencia a embriaguez do condutor do automóvel, reputa-se salutar distinguir-se o dolo eventual da culpa consciente, a fim de perquerir o elemento subjetivo do agente e determinar a competência para processar e julgar a ação penal. No dolo eventual, o agente prevê a possibilidade do resultado lesivo e assume o risco e consente em causar o dano que porventura ocorra, ao passo que na culpa consciente o agente assume o risco, porém acredita que o resultado não ocorrerá. Existindo nos autos indícios de que, no momento do acidente o réu conduzia o veículo sob o efeito de álcool e em velocidade incompatível, além de ter invadido a pista contrária, há necessidade de ser encaminhado os autos ao Conselho de Sentença a fim de decidir acerca do animus necandi do agente, bem como dirimir a dúvida a respeito da conduta, se praticada com dolo eventual ou na modalidade culposa.[45]

 

Ainda:

 

PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO (ART. 581, IV, DO CP). PRONÚNCIA. DUPLO HOMICÍDIO SIMPLES NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR COM DOLO EVENTUAL (CAPUT DO ART. 121 C/C ART. 18, AMBOS DO CP). RECURSO DA DEFESA. DESCLASSIFICAÇÃO PARA HOMICÍDIO CULPOSO. IMPOSSIBILIDADE. INDÍCIOS DE DOLO EVENTUAL. NECESSIDADE DE APRECIAÇÃO PELO PLENÁRIO DO JÚRI. PRONÚNCIA MANTIDA. - Só é cabível a desclassificação quando houver prova inconteste e que permita juízo de convicção pleno de que o crime cometido é diverso daquele apontado na denúncia. - Os elementos colhidos até o momento indicam a possibilidade de que o acusado tenha agido com dolo eventual, haja vista o somatório de situações propensas a ocasionar graves acidentes de trânsito (embriaguez ao volante, ultrapassagem proibida, velocidade acima do limite permitido no local e colisão sobre a pista contrária à que deveria trafegar o agente), de modo que a controvérsia deve ser submetida ao Tribunal do Júri. - Parecer da PGJ pelo conhecimento e desprovimento do recurso. - Recurso conhecido e desprovido.[46]

 

E mais:

 

RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. TRIBUNAL DO JÚRI. HOMICÍDIO SIMPLES. OMISSÃO DE SOCORRO E FUGA DO LUGAR DO EVENTO (ARTS. 121, "CAPUT", C/C 18, I, AMBOS DO CÓDIGO PENAL E ART. 304 DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO). PLEITO DE DESCLASSIFICAÇÃO PARA O DELITO DE HOMICÍDIO CULPOSO COMETIDO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR (ART. 302 DO CTB). INVIABILIDADE. PRESENÇA DE ELEMENTOS CONCRETOS QUE INDICAM A POSSIBILIDADE DE DOLO EVENTUAL. DÚVIDA A SER DIRIMIDA PELO TRIBUNAL POPULAR. PREVALÊNCIA DO PRINCÍPIO DE QUE DÚVIDA RESOLVE-SE EM FAVOR DA SOCIEDADE. OMISSÃO DE SOCORRO E FUGA DO LUGAR DO EVENTO. PRETENSÃO DE IMPRONÚNCIA. IMPOSSIBILIDADE. EVASÃO DO LOCAL. MORTE INSTANTÂNEA DO OFENDIDO QUE NÃO AFASTA O ALUDIDO TIPO PENAL. ALEGAÇÃO DE AMEAÇA À SUA INTEGRIDADE FÍSICA. NÃO COMPROVAÇÃO. PRONÚNCIA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO. Há evidências a respeito do dolo eventual que motivou o crime pelo qual o recorrente foi pronunciado, uma vez que existem nos autos fortes indícios de que, no momento do sinistro, conduzia o veículo automotor em excessiva velocidade e sob o efeito de álcool. Constatação pela apreensão de uma garrafa de bebida destilada (vodka) contendo apenas 150 ml do restante do seu conteúdo, como também do auto de constatação de sinais de embriaguez, que apontou a diminuição dos reflexos e agressividade do condutor, elaborado diante da negativa em realizar o teste do etilômetro. Dessa maneira, justifica-se a pronúncia, a fim de que o conselho de sentença dirima a controvérsia, prevalecendo-se, no sumário da culpa, o princípio da dúvida em favor da sociedade[47].

 

Observa-se, portanto, que o Tribunal de Justiça de Santa Catarina possui uma tendência em adotar de forma mais cautelosa o dolo eventual nos homicídios na direção de veículo automotor, não bastando que reste demonstrada a embriaguez com o resultado morte e sim, todo um conjunto fático-probatório, analisado caso a caso que venha a demonstrar que o agente possa prever o resultado e, embora não querendo produzi-lo, não se importou com a ocorrência.

Não obstante a determinação da ocorrência do dolo eventual ser subjetiva tem-se que é possível dispor de critérios objetivos para a verificação do dolo indireto, analisando os elementos externos da conduta do agente de acordo com a teoria da probabilidade.

2.5 A ALTERAÇÃO NO CRIME DE HOMICÍDIO CULPOSO NO TRÂNSITO COM A LEI 12.971/2014

Muitas discussões jurídicas vêm sendo tomadas diante do grande número de acidentes envolvendo veículos automotores. A comoção social e midiática pressionam para um maior rigor na aplicação da lei para os motoristas que ceifam vidas inocentes.

Para Greco[48], a solução correta para cessar o erro praticado por todos os operadores de direto, que pervertem conceitos básicos do direito penal (o dolo eventual e a culpa consciente) nos casos homicídios de trânsito, em prol de condenações mais rígidas contra esses motoristas infratores, residia na mudança da Lei.

E após sucessivas mudanças legislativas no Código de Trânsito Brasileiro, foi publicada em 9 de maio de 2014 a Lei 12.971/2014 (em vacatio legis até 1º de novembro de 2014, conforme o disposto no artigo 2º da referida Lei), que dentre mudanças na parte de infrações administrativas, modificou, também, o homicídio culposo e a lesão corporal culposa na direção de veículo automotor (artigo 302 e 303, respectivamente); a embriaguez ao volante (artigo 306); e o “racha” (artigo 308).

Não obstante a iminência de mudanças no Código de Trânsito Brasileiro, a lei supracitada é um grande erro[49], senão vejamos.

O artigo 302 do CTB, antes da nova redação, possuía apenas o caput e um parágrafo único com os seus respectivos incisos:

Art. 302. Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor:

Penas - detenção, de dois a quatro anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

Parágrafo único. No homicídio culposo cometido na direção de veículo automotor, a pena é aumentada de um terço à metade, se o agente:

I - não possuir Permissão para Dirigir ou Carteira de Habilitação;

II - praticá-lo em faixa de pedestres ou na calçada;

III - deixar de prestar socorro, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à vítima do acidente;

IV - no exercício de sua profissão ou atividade, estiver conduzindo veículo de transporte de passageiros.

Com a nova redação, o artigo 302 passa a ser acrescido do § 2°, sendo o antigo “parágrafo único” transformado em § 1º:

§ 2° Se o agente conduz veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência ou participa, em via, de corrida, disputa ou competição automobilística ou ainda de exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo automotor, não autorizada pela autoridade competente:

Penas - reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

 

O que se observa é que o legislador tentou inserir uma forma qualificada para o homicídio de trânsito que resultou, na verdade, em uma grande barbeiragem e derrapagem[50]. Para Rogério Greco[51], o absurdo foi tão grande que ao invés de criar a forma qualificada, o legislador manteve a mesma pena prevista no caput, mudando, apenas, a pena de detenção para reclusão, que na prática não implicará em nenhuma mudança.

Isso porque, de acordo com o disposto no artigo 33 do Código Penal, a diferença entre a reclusão e a detenção é que na primeira, a pena poderá ser cumprida em regime fechado, semiaberto ou aberto. Já a segunda, a pena poderá ser cumprida em regime semiaberto ou aberto. Todavia, a pena máxima prevista para o delito em questão é de 4 anos, sendo, portanto, aplicável o regime aberto, nos termos do artigo 33, § 2º, “c”, do CP e por consequência, a pena será substituída por restritiva de direitos (artigo 44 do CP). Somente não se aplicará o regime aberto se o agente for reincidente.

E os problemas não se encerram. Ainda que o objetivo do presente estudo seja discutir as alterações do homicídio na direção de veículo automotor, previsto no artigo 302 do Código de Trânsito, é inevitável que tenhamos que apresentar a inserção do § 2° do artigo 308. Vejamos:

Art. 308. Participar, na direção de veículo automotor, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística não autorizada pela autoridade competente, gerando situação de risco à incolumidade pública ou privada:

Penas - detenção, de 6 (seis) meses a 3 (três) anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

§ 1° [...]

§ 2° Se da prática do crime previsto no caput resultar morte, e as circunstâncias demonstrarem que o agente não quis o resultado nem assumiu o risco de produzi-lo, a pena privativa de liberdade é de reclusão de 5 (cinco) a 10 (dez) anos, sem prejuízo das outras penas previstas neste artigo.

Fazendo-se uma análise do § 2º do artigo supratranscrito, infere-se que este tem uma redação similar à segunda parte do § 2º do artigo 302, ou seja, para o condutor de veículo que participa de “racha” e causa morte de forma culposa a pena será de 2 a 4 anos conforme o disposto no artigo 302, § 2º ou de 5 a 10 anos nos termos do artigo 308, § 2º?

Para Nucci[52], inevitavelmente o agente deve responder pelo artigo 302, § 2°. Isso porque, o homicídio é um crime de dano, ainda que culposo e o “racha” é delito de perigo. “Desse modo, quando o agente praticar ‘racha’ na via pública e matar alguém, desaparece o crime de perigo para que surja a punição pelo dano causado (homicídio)”.

Além do mais, havendo estes dois tipos possíveis de aplicação ao mesmo caso, aplicar-se-á àquele que mais beneficiará o réu, ou seja, o homicídio culposo (artigo 302, § 2º).

Não obstante, Márcio André Lopes Cavalcanti[53], sobre qual dos tipos deverá ser aplicado ao caso concreto e suas consequentes conclusões, tentou resumir da seguinte forma:

1) Se o agente queria causar a morte (agiu com dolo direto quanto ao resultado): deverá responder pelo delito do art. 308, caput, do CTB em concurso formal com o art. 121 do CP.

Ex: o condutor percebeu que seu inimigo estava assistindo ao “racha” na calçada e joga o veículo contra ele.

2) Se o agente assumiu o risco de causar a morte (agiu com dolo eventual quanto ao resultado): deverá responder pelo delito do art. 308, caput, do CTB em concurso formal com o art. 121 do CP.

Ex: o condutor percebe que há muitos expectadores próximos à pista, mesmo assim resolve fazer a curva fechada, sem se importar caso alguém seja atingido. Em seu íntimo, tanto faz se alguém for atropelado.

3) Se o agente não queria nem assumiu o risco de causar a morte, mas apesar disso atuou de forma negligente, imprudente ou imperita (agiu com culpa CONSCIENTE): deverá responder pelo delito do art. 308, § 2º do CTB (ou pelo art. 302, § 2º, a depender da interpretação que seja dada pelos Tribunais).

Ex: o condutor percebe que há muitos expectadores próximos à pista, mas mesmo assim resolve fazer a curva fechada, confiando sinceramente nas suas habilidades e que poderia concluir a manobra sem atingir ninguém.

4) Se o agente não queria nem assumiu o risco de causar a morte, mas apesar disso atuou de forma negligente, imprudente ou imperita (agiu com culpa INCONSCIENTE): deverá responder pelo delito do art. 302, § 2º do CTB.

Ex: é madrugada e o condutor que estava participando do “racha” não percebe que há um pedestre próximo à pista (apesar de isso ser previsível); ao fazer a curva, perde o controle do carro e acerta o transeunte, causando a sua morte.

Agora, com a vigência da nova Lei, no que concerne a aplicabilidade do dolo eventual nos homicídios de trânsito, tem-se que este será cada vez mais excepcional.

Para Nucci[54], a aplicação do dolo eventual continuará a ser adotada, tendo em vista que as alterações da Lei não afetam esta posição. Este também é o entendimento defendido por Leonardo Schmitt de Bem[55]:

Imperioso ressaltar que a incidência da qualificadora não modifica a natureza jurídica do delito, sendo que a diferenciação entre as espécies de culpa – inconsciente, consciente, ou, ainda, temerária – será realizada pelo magistrado quando da fixação da pena-base e, com efeito, poderá suscitar a incidência do regime fechado para o cumprimento da pena privativa de liberdade. Essa análise reforça a tese jurisprudencial de serem culposos os crimes de trânsito. Mas o contexto da embriaguez continuará a comportar exceção, pois a regra geral não passou a ser regra absoluta, a ponto de não ser mais possível a caracterização do dolo eventual.

Adotando outro posicionamento, Rogério Greco aduz que as hipóteses discriminadas no § 2° do artigo 302, somente tiveram “o condão de ratificar as hipóteses como sendo as de um crime culposo, com as mesmas penas para ele previstas”, o que afastaria a aplicação do dolo eventual. E diz mais: que os agentes que foram condenados por homicídio de trânsito a título de dolo eventual, poderão requerer revisão criminal, com base na nova redação.

Sendo assim, nos resta aguardar para sabermos qual posição que os tribunais irão adotar: a possibilidade ou não da aplicação do dolo eventual nos homicídios de trânsito com as alterações advindas da Lei 12.971/2014. Todavia, a revogação da Lei, seria a melhor solução a ser adotada.

3 CONCLUSÃO

Após a realização da pesquisa dos institutos do dolo e culpa, especificando as diferenças entre o dolo eventual e a culpa consciente, apesar de ser tênue a diferença entre um e outro no plano teórico, verifica-se que, nos casos de homicídio na direção de veículo automotor, a diferenciação não é complexa no plano prático, sendo necessária a minuciosa análise do caso concreto para que reste demonstrado o dolo eventual, tendo em vista não ser possível adentrar a mente do agente para saber se este consentiu ou não o resultado lesivo.

Portanto, nos homicídios de trânsito é imprescindível que o julgador estabeleça a ocorrência ou não do dolo eventual com critérios determinados a fim de decidir pela pronúncia ou desclassificação do crime praticado pelo acusado.

Nesse sentido, a jurisprudência catarinense tem adotado com cautela a aplicação do dolo eventual nos homicídios de trânsito. O que se observou é que nos casos em que restou demonstrada a prática do “racha”, tem-se aplicado a figura do dolo eventual de forma inequívoca.

De outro lado, para a configuração do dolo eventual nos homicídios de trânsito em que demonstrado o estado de embriaguez do condutor, verifica-se que é necessária, para o Tribunal de Justiça de Santa Catarina, a presença de outros elementos como: velocidade incompatível, invasão de pista contrária, ultrapassagem em local proibido, etc., não bastando, para tanto, somente a embriaguez.

E, em que pese o clamor social por mudanças no Código de Trânsito Brasileiro, principalmente na aplicação de sanções mais severas aos infratores que comentem homicídios na direção de veículo automotor, foi editada a Lei 12.971/2014, que ao invés que trazer soluções, trouxe problemas ainda maiores.

O que se observou é que, em relação a figura do homicídio no trânsito, a nova Lei não veio com o objetivo de aumentar a punição penal dos infratores, tampouco criar uma forma qualificada para o tipo penal (tendo em vista que as penas permanecem as mesmas), resultando, ainda, num conflito de normas entre § 2º do art. 302 e o § 2º do art. 308, no qual, deverá prevalecer àquele que mais beneficiará o réu, ou seja, o homicídio culposo (artigo 302, § 2º).

Diante do exposto, apesar das derrapagens do legislador, a priori, o dolo eventual poderá ainda ser verificado em alguns casos excepcionais de homicídios na direção de veículo automotor, tendo em vista que o tipo penal previsto no caput do artigo 302 do Código de Trânsito não foi alterado. Para tal configuração, todavia, deve prevalecer uma análise objetiva do caso concreto pelo julgador.

Não obstante, se o objetivo da alteração legislativa dada pela Lei 12.971/2014 seria reprimir mais severamente os casos de homicídios de trânsito, de fato, tal tentativa foi frustrada.

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Sobre a autora
Sabrina Zunino

Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Estácio de Sá de Santa Catarina.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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