SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO; 2. RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL; 3. RESPONSABILIZAÇÃO ADMINISTRATIVA; 4. CONCLUSÃO; 5. BIBLIOGRAFIA.
1. INTRODUÇÃO.
O indivíduo pode ser responsabilizado por um único comportamento, no Direito brasileiro, de três formas: civil, penal e administrativamente.
A Lei Anticorrupção regulou apenas as esferas civil e administrativa de responsabilização, sem inovar no âmbito da responsabilização criminal da pessoa jurídica, apesar de já amplamente difundida, em especial na seara ambiental.[1]
O diploma em apreço tratou em seu Capítulo III da responsabilização administrativa, disciplinando o processo administrativo de responsabilização em seu Capítulo IV e, por fim, dedicou-se ao acordo de leniência previsto no Capítulo V.
Os Capítulos III e IV da Lei Anticorrupção serão desenvolvidos a seguir, ao passo que a análise detida acerca do acordo de leniência será aprofundada em artigo próprio.
2. RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL.
No tocante à responsabilização civil, tratada no Capítulo VI da Lei nº 12.846/2013 sob a designação de “da responsabilização judicial”, é necessário realizar alguns apontamentos.
O artigo 18, que inaugura o Capítulo VI da Lei nº 12.846/13, traz à baila o princípio da independência das instâncias, ao considerar que a responsabilização da pessoa jurídica na esfera administrativa não afasta a responsabilização judicial. Conforme resta consolidado na doutrina:
Quer-se dizer que as pessoas podem vir a ser responsabilizadas em dimensões diversas ao atuar no mundo, pois as relações jurídicas são extremamente complexas, exigindo de cada ser humano que aja conforme o direito em sua vida pública e privada, de modo a se eximir das múltiplas responsabilidades que o ordenamento jurídico pode lhe impor em decorrência de um agir defeituoso, desconectados dos valores queridos pelas normas jurídicas.[2]
Destarte, independentemente do que venha a ser decidido administrativamente, é possível pleitear em juízo a responsabilização civil da pessoa jurídica que incorra na prática de atos lesivos à Administração
Nesse sentido, o artigo 19 da Lei Anticorrupção legitima a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios e o Ministério Público a ajuizar ação com vistas à aplicação das sanções que arrola em seus incisos. Observe-se:
Art. 19. Em razão da prática de atos previstos no art. 5º desta Lei, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, por meio das respectivas Advocacias Públicas ou órgãos de representação judicial, ou equivalentes, e o Ministério Público, poderão ajuizar ação com vistas à aplicação das seguintes sanções às pessoas jurídicas infratoras:
I - perdimento dos bens, direitos ou valores que representem vantagem ou proveito direta ou indiretamente obtidos da infração, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé;
II - suspensão ou interdição parcial de suas atividades;
III - dissolução compulsória da pessoa jurídica;
IV - proibição de receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou entidades públicas e de instituições financeiras públicas ou controladas pelo poder público, pelo prazo mínimo de 1 (um) e máximo de 5 (cinco) anos.
O inciso I trata do perdimento de bens, direitos ou valores obtidos em decorrência da prática de alguma das infrações previstas no artigo 5º, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé. Tais bens, nos termos do artigo 24, serão destinados preferencialmente aos órgãos ou entidades públicas lesadas.
Percebe-se que o dispositivo atua em observância ao princípio da vedação ao enriquecimento ilícito, fundado na equidade e aplicado desde o Direito Romano, possuindo tratamento expresso no Código Civil de 2002, que dedicou o Capítulo IV ao enriquecimento sem causa, no título concernente aos atos unilaterais.[3]
Nesse sentido, as lições de Caio Mario, in verbis:
[...] toda aquisição patrimonial deve decorrer de uma causa, ainda que seja ela apenas um ato de apropriação por parte do agente, ou de um ato de liberalidade de uma parte em favor de outra. Ninguém enriquece do nada. O sistema jurídico não admite, assim, que alguém obtenha um proveito econômico às custas de outrem, sem que esse proveito decorra de uma causa juridicamente reconhecida.[4]
Nesse viés, resguardado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé, aqueles elencados no caput do artigo 19 podem ajuizar ação visando o perdimento dos bens, direitos ou valores que representem vantagem ou proveito, direta ou indiretamente, obtidos da prática do ato lesivo podendo, nos termos do §4º do mesmo artigo, requerer a indisponibilidade de bens, direitos ou valores necessários à garantia do pagamento da multa ou da reparação integral do dano causado.
A pessoa jurídica infratora pode, também, sofrer suspensão ou interdição, desde que parcial, de suas atividades ou até ser dissolvida compulsoriamente, nos termos dos incisos II e III acima transcritos.
No tocante à dissolução compulsória, o §1º do artigo 19 estabelece que será determinada quando tiver sido a personalidade jurídica utilizada de forma habitual para facilitar ou promover a prática de atos ilícitos ou tiver sido constituída para ocultar ou dissimular interesses ilícitos ou a identidade dos beneficiários dos atos praticados.[5]
A última sanção prevista no artigo 19 é a proibição de receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou entidades públicas e de instituições financeiras públicas ou controladas pelo poder público, pelo prazo mínimo de 1 (um) e máximo de 5 (cinco) anos, podendo ser beneficiada pelo acordo de leniência, como será demonstrado no item 4.2 deste trabalho.
O §2º do artigo de 19 previa a necessidade de comprovação de culpa ou dolo para a aplicação das sanções previstas nos incisos II, III e IV acima tratados. Ocorre que, em decorrência de o dispositivo contrariar a lógica do diploma, que é centrado na responsabilidade objetiva da pessoa jurídica que comete ato lesivo à Administração, foi ele objeto de veto pela Presidente da República.[6]
Assim, a forma de responsabilização da pessoa jurídica pela prática de atos lesivos à Administração é objetiva, tanto no âmbito administrativo quanto no civil, não excluída a responsabilidade individual de seus dirigentes, administradores ou de qualquer pessoa natural que seja autora, coautora ou partícipe do ato ilícito, na medida de sua culpabilidade, nos termos dos artigos 2º e 3º da Lei Anticorrupção, in verbis:
Art. 2º As pessoas jurídicas serão responsabilizadas objetivamente, nos âmbitos administrativo e civil, pelos atos lesivos previstos nesta Lei praticados em seu interesse ou benefício, exclusivo ou não.
Art. 3º A responsabilização da pessoa jurídica não exclui a responsabilidade individual de seus dirigentes ou administradores ou de qualquer pessoa natural, autora, coautora ou partícipe do ato ilícito.
§ 1º A pessoa jurídica será responsabilizada independentemente da responsabilização individual das pessoas naturais referidas no caput.
§ 2º Os dirigentes ou administradores somente serão responsabilizados por atos ilícitos na medida da sua culpabilidade.
Responder objetivamente significa ser responsabilizado pela prática de determinado ato independentemente da existência ou não de culpa lato sensu (culpa em sentido estrito ou dolo). A culpa pode ou não existir, mas será irrelevante para auferir a responsabilidade do agente.[7]
Nesse sentido, feliz a previsão do artigo 4º da referida Lei ao estabelecer que subsiste a responsabilidade da pessoa jurídica na hipótese de alteração contratual, transformação, incorporação, fusão ou cisão societária.
No caso de fusão e incorporação, a sucessora responderá apenas pelo pagamento de multa (na seara administrativa) e pela reparação integral do dano causado (na seara cível) até o limite do patrimônio transferido, não lhe aplicando as demais sanções decorrentes de atos e fatos anteriores à fusão ou incorporação, salvo no caso de simulação ou evidente intuito de fraude devidamente comprovados, nos termos do §1º do artigo 4º.
No que se refere às pessoas jurídicas que integram o mesmo grupo econômico, as sociedades controladoras e controladas, consideradas aquelas como a sociedade que detém o poder de ditar o futuro e a administração destas, exercendo seu controle direta (por possuir a maioria dos votos dos quotistas ou da assembleia geral e o poder de eleger a maioria dos administradores) ou indiretamente (por utilizar uma outra sociedade como instrumento para o controle), bem como as sociedades coligadas (aquela de cujo capital outra sociedade participa com dez por cento ou mais do capital da outra, sem controlá-la) e consorciadas (associação de sociedades, sob mesmo controle ou não, para obter finalidade comum),[8] são solidariamente responsáveis pela prática dos atos previstos nesta Lei, restringindo-se tal responsabilidade à obrigação de pagamento de multa e reparação integral do dano causado, nos termos do §2º do artigo 4º.
Saliente-se de logo que as pessoas jurídicas apontadas no parágrafo acima, por integrarem um mesmo grupo econômico, poderão, nos termos do que será exposto no item 4.1 deste trabalho, ser beneficiadas em conjunto pela celebração do acordo de leniência.
Todas as sanções poderão ser aplicadas de forma isolada ou cumulativa, nos termos do §3º do artigo 19, observando a tramitação processual prevista para a Ação Civil Pública na Lei nº 7.347/85[9], sem prejuízo de, nas ações ajuizadas pelo Ministério Público, serem aplicadas as sanções administrativas que deveriam ter sido instituídas mas não o foram por omissão das autoridades competentes para promover a responsabilização administrativa, devidamente constatada, conforme a dicção do artigo 20 da Lei Anticorrupção.
Por fim, ressalte-se que a condenação judicial torna certa a obrigação de reparar o dano causado pelo ilícito, cujo valor deve ser apurado em posterior liquidação[10], se já não constar expressamente da sentença, conforme se depreende do parágrafo único do artigo 20 da Lei 12.846, dispositivo que encerra o trato da responsabilização judicial no diploma.
3. RESPONSABILIZAÇÃO ADMINISTRATIVA
Inicialmente, cumpre destacar que é possível conceituar infração administrativa como o descumprimento voluntário de uma norma administrativa para a qual se prevê uma sanção, decidida e imposta por uma autoridade no exercício da função administrativa.[11]
A natureza administrativa de uma infração é reconhecida pela natureza da sanção que lhe corresponde, e se reconhece a natureza da sanção através da Autoridade competente para impô-la, não se vislumbrando diferença substancial quando comparada às infrações penais[12], lembrando que, conforme o artigo 2º da Lei Anticorrupção, a responsabilização da pessoa jurídica será objetiva, nos termos já mencionados no item anterior quanto à responsabilização judicial.
Embora a imposição da sanção pelo cometimento de uma infração administrativa seja de alçada da Administração Pública, nem sempre a sua aplicação será por ela concretizada. Há casos em que será necessário recorrer ao judiciário para efetivar a sanção, como para a cobrança de uma multa cujo sujeito passivo se recuse a adimplir.[13]
Como são diversas as relações jurídicas reguladas pelo Direito Administrativo, o são também as modalidades de sanção, como advertência, sanções pecuniárias, interdição de local ou estabelecimento, inabilitação temporária para certa atividade, dentre outras.[14]
A Lei nº 12.846/13, entretanto, tratou de apenas duas sanções a serem aplicadas no âmbito administrativo àquele que comete qualquer dos atos lesivos previstos no artigo 5º do referido diploma. Veja-se:
Art. 6º Na esfera administrativa, serão aplicadas às pessoas jurídicas consideradas responsáveis pelos atos lesivos previstos nesta Lei as seguintes sanções:
I - multa, no valor de 0,1% (um décimo por cento) a 20% (vinte por cento) do faturamento bruto do último exercício anterior ao da instauração do processo administrativo, excluídos os tributos, a qual nunca será inferior à vantagem auferida, quando for possível sua estimação; e
II - publicação extraordinária da decisão condenatória.
A primeira sanção administrativa prevista é, portanto, a multa pecuniária, que deverá ser aplicada no valor de 0,1% (um décimo por cento) a 20% (vinte por cento) do faturamento bruto do último exercício anterior ao da instauração do processo administrativo, excluídos os tributos, embora criticável tal parâmetro em decorrência de que, embora a pessoa jurídica tenha praticado um ato lesivo, parte do faturamento bruto pode ter origem lícita, o que não se mostra razoável sua utilização no cômputo da penalidade[15].
No caso de impossibilidade de utilização deste critério, a multa será de R$ 6.000,00 (seis mil reais) a R$ 60.000.000,00 (sessenta milhões de reais), conforme dicção do §4º do artigo em comento.
Todavia, os critérios de variação da multa quando não for possível auferir o faturamento não são claros o que, numa diferença tão grande de valores, pode conduzir a desmandos e, consequentemente, causar insegurança jurídica a ponto de não tornar atrativa a negociação com o Poder Público aos empresários.[16]
A redação original do diploma previa, no §6º do artigo 6º, que o montante seria estabelecido tendo como teto o valor total do bem ou serviço contratado ou previsto. Tal dispositivo, contudo, foi objeto de veto pela Presidente da República. Pela importância da decisão, transcrever-se-á abaixo as razões do veto:
O dispositivo limita ao valor do contrato a responsabilidade da pessoa jurídica que pratica atos ilícitos lesivos contra a administração pública. Contudo, os efeitos danosos do ilícito podem ser muito superiores a esse valor, devendo ser consideradas outras vantagens econômicas dele decorrentes, além de eventuais danos a concorrentes e prejuízos a usuários. A limitação da penalidade pode torna-la insuficiente para punir efetivamente os infratores e desestimular futuras infrações, colocando em risco a efetividade da lei. [17]
Nesse sentido, parece que a Chefia de Estado optou por resguardar o caráter punitivo do diploma, correndo o risco de não tornar atrativa a negociação com o Poder Público aos empresários, graças à insegurança jurídica decorrente da ausência de parâmetros objetivos de fixação da penalidade.
Considerando a extensão do valor da multa, há quem a entenda como forma de enriquecimento ilícito da Administração. Nesse sentido:
A magnitude dessa multa não é prevista em nenhum - frise-se, nenhum - diploma normativo vigente no país e pode ser considerada como critério de enriquecimento sem causa da Administração. De fato, não se previu relação ou vinculação de sua destinação, dentro do contexto da arrecadação e do orçamento, a exemplo das multas de trânsito, que devem ser direcionadas para a educação dos motoristas.[18]
Feita essa crítica ao legislador, pela leitura do caput acima transcrito, percebe-se ainda que a multa não poderá ser inferior à vantagem auferida, quando possível sua estimação, devendo ser destinada, preferencialmente, aos órgãos ou entidades públicas lesadas, nos termos do artigo 24 da Lei em comento.
A segunda e última sanção prevista na Lei é a publicação extraordinária da decisão condenatória que, nos moldes do §5º do artigo 6º, ocorrerá na forma de extrato de sentença, por conta da pessoa jurídica, em meios de comunicação de grande circulação na área da prática da infração e de atuação da pessoa jurídica ou, na sua falta, em publicação de circulação nacional, bem como por meio de afixação de edital, pelo prazo mínimo de 30 (trinta) dias, no próprio estabelecimento ou no local de exercício da atividade, de modo visível ao público, e no sítio eletrônico na rede mundial de computadores.
Em decorrência da previsão legal para que a publicação extraordinária da decisão condenatória seja feita na forma de extrato de sentença, há posições na doutrina que entendem sua inserção no rol de responsabilização administrativa como inadequada.[19]
Não parece, entretanto, que tal entendimento deva prosperar. Ocorre que a Lei Anticorrupção prevê apenas que a publicação ocorrerá na forma de extrato de sentença, o que leva a entender que consistirá na divulgação do extrato da decisão, com menção da condenação em razão do fato que virá sintetizado, e indicando as penalidades aplicadas[20], seguindo os moldes formais estabelecidos no artigo 458 do Código de Processo Civil para a sentença judicial.[21]
De toda forma, os parâmetros considerados pela Lei Anticorrupção quando da aplicação das sanções estão previstos no seu artigo 7º, in verbis:
Art. 7º Serão levados em consideração na aplicação das sanções:
I - a gravidade da infração;
II - a vantagem auferida ou pretendida pelo infrator;
III - a consumação ou não da infração;
IV - o grau de lesão ou perigo de lesão;
V - o efeito negativo produzido pela infração;
VI - a situação econômica do infrator;
VII - a cooperação da pessoa jurídica para a apuração das infrações;
VIII - a existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica;
IX - o valor dos contratos mantidos pela pessoa jurídica com o órgão ou entidade pública lesados; e
X - (VETADO).
Parágrafo único. Os parâmetros de avaliação de mecanismos e procedimentos previstos no inciso VIII do caput serão estabelecidos em regulamento do Poder Executivo federal.
Assim, a Autoridade Administrativa competente, considerando as circunstâncias acima transcritas, aplicará fundamentadamente, isolada ou cumulativamente, de acordo com as peculiaridades do caso concreto e com a gravidade e natureza das infrações, a sanção na forma que for mais razoável, sempre precedida da manifestação jurídica elaborada pela Advocacia Pública ou pelo órgão de assistência jurídica, ou equivalente, do ente público, nos termos dos §§1º e 2º do artigo 6º do diploma analisado.
O inciso X do artigo 7º, objeto de veto presidencial, dispunha que deveria ser levado em consideração na aplicação das sanções eventual contribuição da conduta do servidor público para a ocorrência do ato lesivo. Nas razões, a Presidente justifica o veto por não vislumbrar sentido em valorar a penalidade em razão do comportamento do servidor público que colaborou para a execução do ato lesivo à Administração. O dispositivo, portanto, igualaria indevidamente a participação do servidor público para fins de dosimetria da penalidade a ser aplicada à pessoa jurídica.[22]
Ratificando a independência das instâncias já tratada no item anterior, o §3ºdo artigo 6º estabelece que “a aplicação das sanções previstas neste artigo não exclui, em qualquer hipótese, a obrigação da reparação integral do dano causado”.
No tocante ao processo administrativo de responsabilização a ser observado, conforme o caput do artigo 8º, sua instauração e julgamento cabem à autoridade máxima de cada órgão ou entidade de quaisquer dos três Poderes, que agirá de ofício ou mediante provocação, observados o contraditório e a ampla defesa. Tal competência, contudo, poderá ser delegada, vedada a subdelegação, nos termos do §1º do mesmo artigo.
Nele, a pessoa jurídica será representada na forma do seu estatuto ou contrato social. Se não possuir personalidade jurídica, a representação ficará a cargo da pessoa a quem couber a administração dos bens e, se tratando de pessoa jurídica estrangeira, será representada pelo gerente, representante ou administrador de sua filial, agência ou sucursal aberta ou instalada no Brasil, nos termos do artigo 26, caput e §§ 1º e 2º.
A Controladoria-Geral da União (CGU), entretanto, possui competência concorrente para a instauração (e apenas para a instauração) dos referidos processos administrativos, bem como para avocar para si os que já foram instaurados com fundamento na Lei Anticorrupção, a fim de verificar sua regularidade ou para corrigir-lhes o andamento, conforme se depreende da dicção do §2º do artigo 8º.
Por expressa previsão no artigo 9º, a competência é da CGU para a apuração, o processo e, também, o julgamento dos atos ilícitos praticados contra a administração pública estrangeira.
A comissão responsável pela apuração da responsabilidade da pessoa jurídica tem regulamentação prevista no artigo 10, in verbis:
Art. 10. O processo administrativo para apuração da responsabilidade de pessoa jurídica será conduzido por comissão designada pela autoridade instauradora e composta por 2 (dois) ou mais servidores estáveis.
§ 1º O ente público, por meio do seu órgão de representação judicial, ou equivalente, a pedido da comissão a que se refere o caput, poderá requerer as medidas judiciais necessárias para a investigação e o processamento das infrações, inclusive de busca e apreensão.
§ 2º A comissão poderá, cautelarmente, propor à autoridade instauradora que suspenda os efeitos do ato ou processo objeto da investigação.
§ 3º A comissão deverá concluir o processo no prazo de 180 (cento e oitenta) dias contados da data da publicação do ato que a instituir e, ao final, apresentar relatórios sobre os fatos apurados e eventual responsabilidade da pessoa jurídica, sugerindo de forma motivada as sanções a serem aplicadas.
§ 4º O prazo previsto no § 3º poderá ser prorrogado, mediante ato fundamentado da autoridade instauradora.
Nesse sentido, pelo o que se infere da leitura o caput, a apuração da prática infracional ficará a cargo de comissão designada pela autoridade instauradora, sendo composta por dois ou mais servidores estáveis.
Essa previsão mínima de dois membros tem sido criticada pela doutrina, ao passo que, ao não prever um número ímpar, pode-se chegar a situações em que, existindo divergência entre os integrantes da comissão, o processo fique sem solução e, considerando o valor elevado que a multa pode atingir, o ideal seria que a decisão fosse tomada por um colegiado com maior número de pessoas.[23]
A comissão, que deverá concluir seus trabalhos em 180 (cento e oitenta) dias (prorrogável por ato fundamentado da autoridade instauradora) contados da data do ato que a instituir, apresentando ao final relatórios sobre os fatos apurados e eventual reponsabilidade da pessoa jurídica (sugerindo de forma motiva as sanções a serem aplicadas), pode pedir ao Ente Público que integrar que ele requeira judicialmente as medidas necessárias para a investigação e o processamento das infrações, inclusive de busca e apreensão podendo, ainda, propor à Autoridade instauradora que suspenda os efeitos do ato ou processo objeto da investigação.[24]
Após a intimação da pessoa jurídica, ser-lhe-á conferido prazo de 30 (trinta) dias para apresentação de defesa, na qual poderão ser articulados os fatos, propostos procedimentos, audiências e produção de provas em toda a sua extensão, em observância ao contraditório e à ampla defesa. [25]
Após as diligências que se mostrem necessárias, o relatório da Comissão será encaminhado à Autoridade instauradora, para julgamento[26], nada impedindo que se apliquem instrumentos previstos na Lei nº 9.784/99 (Lei de Processo Administrativo), como a apresentação de alegações finais, vedada a recusa pela Administração Pública de receber petições e documentos.[27]
Ademais, encerrado o procedimento administrativo, a Comissão ainda deverá dar conhecimento ao Ministério Público de sua existência, para apuração de eventuais delitos, nos termos do artigo 15 da Lei Anticorrupção.
O artigo 13 da Lei Anticorrupção prevê, ainda, que a instauração de processo administrativo específico visando à reparação integral do dano não prejudica a aplicação imediata das sanções nela previstas. Ao ser concluído o processo administrativo de reparação, caso não haja adimplemento voluntário, o crédito será inscrito na dívida ativa da Fazenda Pública.
Por fim, um dos mais importantes dispositivos trazidos pela Lei Anticorrupção é o que trata da desconsideração da personalidade jurídica, previsto em seu artigo 14, in verbis:
Art. 14. A personalidade jurídica poderá ser desconsiderada sempre que utilizada com abuso do direito para facilitar, encobrir ou dissimular a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei ou para provocar confusão patrimonial, sendo estendidos todos os efeitos das sanções aplicadas à pessoa jurídica aos seus administradores e sócios com poderes de administração, observados o contraditório e a ampla defesa.
O Direito confere às pessoas jurídicas personalidade distinta da de seus membros. Em decorrência disso, há quem se aproveite de tal autonomia com a intenção de se locupletar em detrimento de terceiros, utilizando a pessoa jurídica como um véu para proteger os seus negócios escusos.[28]
Eis que entra em cena o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, que já possuía previsão no Código Civil[29] e no Código de Defesa do Consumidor[30].
Ele pode ser definido como a desconsideração, no caso concreto, do princípio de que as pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros, buscando atingir e vincular os bens particulares de seus integrantes a fim de satisfazer as dívidas sociais.[31]
A regulamentação do instituto no Código Civil, por possibilitar uma ampla aplicabilidade, é comumente chamada na doutrina de teoria maior. É que o artigo 50 autoriza a desconsideração da personalidade jurídica quando houver abuso de tal prerrogativa, caracterizado pelo desvio de finalidade para a qual foi criada a pessoa jurídica ou confusão entre o patrimônio dos sócios e da pessoa que integram.[32]
Embora o Código de Defesa do Consumidor também disponha acerca da teoria maior quando fala na primeira parte de seu artigo 28 que o abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social possibilitam a desconsideração da personalidade jurídica, no mesmo dispositivo regula a chamada teoria menor, ao autorizar a desconsideração no caso de simples inadimplemento para com os credores, independentemente da existência de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial..[33]
Como se depreende do dispositivo acima transcrito, a Lei Anticorrupção trouxe mais uma hipótese de aplicação da chamada teoria maior, sendo cabível a desconsideração da personalidade jurídica sempre que esta for utilizada para facilitar, encobrir ou dissimular a prática dos atos ilícitos previstos na Lei Anticorrupção (desvio de finalidade) ou para provocar confusão patrimonial, sendo todos os efeitos das sanções aplicáveis à pessoa jurídica estendidos aos administradores e sócios com poderes de administração.
Saliente-se, contudo, que atribui-se, em regra, ao judiciário o “poder subjetivo de decidir em que casos isso poderá ocorrer, ao estabelecer a possibilidade de estender aos bens particulares dos administradores (e também sócios) certas e determinadas relações de obrigações"[34], embora parte da doutrina entenda que os princípios constitucionais da juridicidade, da moralidade, da supremacia e da indisponibilidade do interesse público, que orientam o ordenamento jurídico como um todo, são suficientes para fundamentar a aplicação da teoria da desconsideração no âmbito administrativo [35] e haja precedentes nos Tribunais reconhecendo tal tese. Nesse sentido, veja-se a decisão abaixo proferida pelo Superior Tribunal de Justiça:
ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANCA. LICITAÇÃO. SANÇÃO DE INIDONEIDADE PARA LICITAR. EXTENSÃO DE EFEITOS À SOCIEDADE COM O MESMO OBJETO SOCIAL, MESMOS SÓCIOS E MESMO ENDEREÇO. FRAUDE À LEI E ABUSO DE FORMA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NA ESFERA ADMINISTRATIVA, POSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA E DA INDISPONIBILIDADE DOS INTERESSES PÚBLICOS.
- A constituição de nova sociedade, com o mesmo objeto social, com os mesmos sócios e com o mesmo endereço, em substituição a outra declarada inidônea para licitar com a Administração Pública Estadual, com o objetivo de burlar a aplicação da sanção administrativa, constitui abuso de forma e fraude à Lei de Licitações, Lei n.º 8.666/93, de modo a possibilitar a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica para estenderem-se os efeitos da sanção administrativa à nova sociedade constituída.
- A Administração Pública pode, em observância ao princípio da moralidade administrativa e da indisponibilidade dos interesses públicos tutelados, desconsiderar a personalidade jurídica de sociedade constituída com abuso de forma e fraude à lei, desde que facultado ao administrado o contraditório e a ampla defesa em processo administrativo regular. (grifo nosso) [36]
Ademais, conquanto encontre amparo no direito brasileiro, a desconsideração da personalidade jurídica deve ser aplicada com cautela, diante da previsão de autonomia e existência de patrimônios distintos entre as pessoas físicas e jurídicas[37], ainda mais no que se refere à Lei Anticorrupção, que atribui responsabilidade de forma objetiva pela prática de ato lesivo à Administração nela contemplado.
4. CONCLUSÃO.
Objetivando proteger o erário, o diploma estabeleceu determinados comportamentos que julgou merecedores de tutela específica, responsabilizando civil e administrativamente, de forma objetiva, as pessoas jurídicas que incorressem em sua prática. É o que o diploma chamou de atos lesivos à Administração.
Ao tratar de forma independente as esferas civil e administrativa, a Lei nº 12.846/13 possibilitou que a corrupção fosse enfrentada de maneira mais ampla. Na primeira, estabeleceu a obrigatoriedade do ressarcimento integral do dano causado e, no tocante a esta última forma de responsabilização, instrumentalizou o Poder Público de modo a resguardar o erário e punir o causador do dano da maneira mais adequada ao caso concreto.
5. BIBLIOGRAFIA.
[1] NASCIMENTO, Melillo Dinis (Org.). Lei anticorrupção empresarial: aspectos críticos à lei nº 12.846/2013. Belo Horizonte: Fórum, 2014. pp. 32-34.
[2] PEREIRA E SILVA, Igor Luís. Princípio da independência das instâncias. Disponível em <www.editorajuspodivm.com.br>. Acesso em 13/10/2014.
[3] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, vol. 3: Contratos e atos unilaterais. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2012. pp. 622-623.
[4] SILVA PEREIRA, Caio Mário apud Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, vol. 3: Contratos e atos unilaterais. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 623.
[5] vide item 3.1.
[6] BRASIL. Mensagem nº314, de 1º de Agosto de 2013. Diário Oficial da União. Poder Executivo. Brasília, DF, 2 de Agosto de 2013.
[7] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, vol. 4: Responsabilidade civil. 7 ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 40.
[8] MAMEDE, Gladston. Manual de Direito Empresarial. 6 ed. São Paulo: Atlas, 2012. pp. 200-204.
[9] “Art. 21. Nas ações de responsabilização judicial, será adotado o rito previsto na Lei no 7.347, de 24 de julho de 1985.”
[10] Conforme disposto no artigo 19 da Lei nº 7.347/85, aplica-se à Ação Civil Pública, no que couber, o Código de Processo Civil, razão pela qual deve eventual liquidação seguir o rito dos artigos 475-A e seguintes do CPC.
[11] MELLO, Celso A. Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 30 ed. São Paulo: Malheiros, 2013. p. 863.
[12] VITTA, Heraldo Garcia apud MELLO, Celso A. Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 30 ed. São Paulo: Malheiros, 2013. p. 863.
[13] MELLO, Celso A. Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 30 ed. São Paulo: Malheiros, 2013. p. 864.
[14] MELLO, Celso A. Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 30 ed. São Paulo: Malheiros, 2013. p. 864.
[15] NASCIMENTO, Melillo Dinis (Org.). Lei anticorrupção empresarial: aspectos críticos à lei nº 12.846/2013. Belo Horizonte: Fórum, 2014. p. 43.
[16] NASCIMENTO, Melillo Dinis (Org.). Lei anticorrupção empresarial: aspectos críticos à lei nº 12.846/2013. Belo Horizonte: Fórum, 2014. p. 42.
[17] BRASIL. Mensagem nº314, de 1º de Agosto de 2013. Diário Oficial da União. Poder Executivo. Brasília, DF, 2 de Agosto de 2013.
[18] NASCIMENTO, Melillo Dinis (Org.). Lei anticorrupção empresarial: aspectos críticos à lei nº 12.846/2013. Belo Horizonte: Fórum, 2014. p. 42.
[19] NASCIMENTO, Melillo Dinis (Org.). Lei anticorrupção empresarial: aspectos críticos à lei nº 12.846/2013. Belo Horizonte: Fórum, 2014. p. 42.
[20] RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilização das Pessoas Jurídicas por Atos Lesivos à Administração Pública. Disponível em <www.lex.com.br>. Acesso em 13/10/2014.
[21] Art. 458. São requisitos essenciais da sentença: I - o relatório, que conterá os nomes das partes, a suma do pedido e da resposta do réu, bem como o registro das principais ocorrências havidas no andamento do processo; II - os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito; III - o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões, que as partes Ihe submeterem.
[22] BRASIL. Mensagem nº314, de 1º de Agosto de 2013. Diário Oficial da União. Poder Executivo. Brasília, DF, 2 de Agosto de 2013.
[23] NASCIMENTO, Melillo Dinis (Org.). Lei anticorrupção empresarial: aspectos críticos à lei nº 12.846/2013. Belo Horizonte: Fórum, 2014. p. 44.
[24] Artigo 10, §§ 1º, 2º, 3º e 4º da Lei nº 12.846/13.
[25] NASCIMENTO, Melillo Dinis (Org.). Lei anticorrupção empresarial: aspectos críticos à lei nº 12.846/2013. Belo Horizonte: Fórum, 2014. p. 103.
[26] Artigos 11 e 12 da Lei nº 12.846/13.
[27] NASCIMENTO, Melillo Dinis (Org.). Lei anticorrupção empresarial: aspectos críticos à lei nº 12.846/2013. Belo Horizonte: Fórum, 2014. pp. 103-104.
[28] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, vol. 1: Parte Geral. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 249.
[29] Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.
[30] Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.
[31] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, vol. 1: Parte Geral. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 249.
[32] ASSIS, Nicole Vieira de. As teorias e os pressupostos de aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro. Disponível em: <www.ambito-juridico.com.br>. Acesso em 21/09/2014.
[33] ASSIS, Nicole Vieira de. As teorias e os pressupostos de aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro. Disponível em: <www.ambito-juridico.com.br>. Acesso em 21/09/2014.
[34] CARVALHO, Lucila de Oliveira apud RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilização das Pessoas Jurídicas por Atos Lesivos à Administração Pública. Disponível em <www.lex.com.br>. Acesso em 13/10/2014.
[35] KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A teoria da desconsideração da personalidade jurídica: aplicação no direito administrativo. Disponível em <www.ambito-juridico.com.br>. Acesso em 13/10/2014.
[36] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso ordinário em mandado de segurança nº 15166 BA 2002/0094265-7. Relator Ministro Castro Meira, 07 de Julho de 2003. Disponível em <www.stj.jusbrasil.com.br>. Acesso em 14/10/2014.
[37] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, vol. 1: Parte Geral. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 253.