Introdução
Tema pertinente e que se afigura atual para os estudiosos do processo penal é, sem dúvida, a possibilidade de fixação, na sentença condenatória, do valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido, como se lê do artigo 387, IV, do Código de Processo Penal, na redação dada pela Lei 11.719, de 20 de junho de 2008.
No caso específico da ação penal 470, o Ministro Celso de Mello, ao tratar das condenações por crime de peculato, entendeu que o Supremo Tribunal Federal deve fixar uma indenização mínima para que os réus, no caso do ¨mensalão¨, que forem condenados, promovam o ressarcimento aos cofres públicos. Foi sugerido, inclusive, o valor de R$1,07 milhões para o caso em discussão, pois, para ele, a Lei 11.719 permite ao Supremo Tribunal Federal analisar, em sede de ação penal originária, o caso, indicando o valor mínimo para as indenizações cíveis.
Ocorre que o Relator da ação penal referenciada, Ministro Joaquim Barbosa, havia dito que não era o caso de analisar tal ponto na ação penal, pois o pedido do Procurador-Geral da República se dera na fase de alegações finais, não tendo sido formulado na denúncia. Após, diante de novos argumentos, passou a apoiar a proposta assim como o Ministro Luiz Fux.
Para o Ministro Marco Aurélio Mello se a Lei a aplicar é de 2008, não poderia retroagir para prejudicar os réus, que foram condenados por desvios ocorridos anos antes.
O Ministro Carlos Ayres Britto, presidindo a Suprema Corte na sessão, registrou que iria tratar do tema, no final do julgamento, sem colher os demais votos com relação aos crimes de peculato (artigo 312 do Código Penal) ocorridos na Câmara dos Deputados e no Banco do Brasil, sociedade de economia mista.
1. A fixação da indenização civil no juízo penal: sistemas existentes e evolução no Brasil.
Como ensina Fernando da Costa Tourinho Filho (2004, pág. 2), quando praticado um crime, além da repressão através da pena, pode ser cabível sanção administrativa ou disciplinar e ainda a reparação do dano patrimonial causado à vítima.
O magistrado não está obrigado a fixar a verba indenizatória, podendo deixar de fazê-lo diante da inexistência de qualquer dano suscetível de reparação, ou ainda complexidade da questão de natureza civil, da ausência de elementos probatórios em torno da existência do dano.
Temos no direito comparado diversos modelos no que tange à possibilidade de que o juízo criminal fixe diretamente, na própria sentença penal, o valor da indenização civil. Cito os sistemas da separação e da adesão. O sistema da separação proíbe que seja postulada reparação civil no processo penal, como se vê nos modelos anglo-americano e holandês. No sistema da adesão, previsto na Itália, Alemanha e Portugal, determina-se a fixação da indenização pelo juízo penal, seja por postulação da vítima e seus sucessores ou pelo Ministério Público.
Em sua evolução legislativa no Brasil, o tema foi objeto de análise no Código Criminal do Império, de 1830, quando foi adotada a adesão facultativa, uma vez que a vítima poderia requerer a reparação no juízo civil.
Posteriormente surgiu o modelo da adesão obrigatória, a partir do Código de Processo Criminal do Império, de 1832.
Com o advento da Lei nº 261, de 1841, passou-se a adotar o sistema de separação entre as instâncias civil e criminal, que vige até os dias de hoje e desvincula a sanção penal da responsabilidade civil.
Lembro que o projeto do novo Código de Processo Penal, em tramitação no Congresso Nacional, prevê a adesão facultativa da parte civil, mas ainda vige o modelo de separação de instâncias, que foi consagrado no artigo 1.525 do Código Civil de 1916 e foi reproduzido no Código Civil de 2002, no artigo 935, no sentido de que ¨A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal.¨
É sabido que nosso sistema de separação das instâncias não previa a fixação de indenização em favor da vítima no processo penal, mas sempre atribuiu ao lesado a ação civil ex delicto, ajuizada no juízo civil para obtenção da indenização, ainda que na pendência da ação penal, como se lê do artigo 64 do Código de Processo Penal. De outro modo, a vítima que foi lesada tem ainda a opção de aguardar o trânsito em julgado da lide criminal e utilizar a sentença penal condenatória como titulo executivo na esfera civil, como preconiza o artigo 475 – N, II, do Código de Processo Civil, uma vez que um dos efeitos genéricos da sentença penal condenatória, automático e que não precisa sequer ser mencionado pelo juiz na sentença, é tornar certa a obrigação de indenizar, como se vê, de forma peremptória, no artigo 91, I, do Código Penal.
Mesmo sendo título executivo judicial, a sentença penal condenatória transitada em julgada, como não continha a fixação do valor da indenização, era um título que era carente de liquidez. Por essa razão, era necessária a instauração de procedimento prévio de liquidação de sentença, no sentido de quantificar o valor do dano para que fosse executada civilmente a condenação criminal.
Tal cenário, por vezes longo e tortuoso, foi mitigado diante da reforma processual, que houve em 2008, quando foram modificados os artigos 63 e 387, IV, do Código de Processo Penal, onde se afirmou que o juiz fixará o valor mínimo da indenização dos danos decorrentes da infração penal, tornando o titulo executivo parcialmente líquido. A interpretação sistemática com o artigo 63, parágrafo único do Código de Processo Penal permite a conclusão de que o valor fixado na sentença penal não impedirá que a parte busque a liquidação para apuração de quantia superior, visando obter a integração reparação do dano.
Permito-me dizer que o sistema atual, trazido pela Lei 11.719, não quebra o modelo da separação das instâncias. As instâncias continuam independentes, até porque a vítima poderia recorrer ao juízo civil para obter a total reparação do dano. Apenas se tenta tornar ágil a quantificação do quantum devido, num valor mínimo sem que se faça uma ampliação cognitiva na atividade probatória a respeito do dano civil para não causar, inclusive, desvios procedimentais que possam perturbar a correta condução do processo penal cuja finalidade precípua é a solução da pretensão punitiva.
2. A Aplicação retroativa do artigo 387, IV, do Código de Processo Penal
A fixação do valor mínimo para os danos causados pela infração deve ser vista dentro do quadrante de um efeito secundário da sentença penal. Especificamente o artigo 91, I, do Código Penal, é apontado por reconhecer a certeza e a obrigação da indenização do dano causado pelo crime.
Estudando a finalidade do instituto em tela, Sauvei Lai (2011, pág. 260) considera que a Lei 11.719 teve como objetivo simplificar e acelerar a reparação patrimonial da vítima, aproveitando-se a produção probatória do processo penal e a respectiva cognição judicial do crime, para implementar a satisfação patrimonial e a reprimenda penal, sem a necessidade de deflagração da ação indenizatória e/ou processo de liquidação.
Para Eugênio Pacelli de Oliveira (2012, pág. 657) ainda que sem pedido ou participação da vítima no processo, o citado dispositivo legal sempre autorizou a formação de título executivo no juízo civil, já afirmada a obrigação de indenização do dano pela prolação da sentença penal condenatória. No civil, resta a liquidação e a execução da sentença.
De um lado, dir-se-ia que a sentença condenatória funciona como comando que é meramente declaratório no tocante a indenização civil, pois nela não há mandamento expresso de o réu reparar o dano resultante do crime. Fico com a lição de José Carlos Barbosa Moreira, citado por Júlio Fabbrini Mirabete (2004,pág. 346), para quem não há, na hipótese, sentença condenatória ou declaratória, sendo a exeqüibilidade civil da sentença criminal apenas a constituição de título para a execução.
A reforma processual penal ocorrida em 2008 não tratou de fixar um valor total de recomposição patrimonial. Atentou-se apenas para um valor mínimo que se revele suficiente para recompor os prejuízos que fiquem de todo evidenciados na ação penal. Eventuais acréscimos da responsabilidade civil, sob a rubrica dos lucros cessantes e eventuais e ainda os danos morais devem ser fixados na instância civil.
Aliás, a expressão prejuízo sugere dano material, pois no dano moral há um sofrimento, dor ou abalo psicológico profundo, algo que deve ser definido, no juízo civil. Insisto que, em muitas hipóteses, dificilmente os danos morais podem ser provados sem grandes incidentes probatórios, como, por exemplo, a prova exclusivamente documental. O dano moral precisa de prova onde a cognição deve ser plena, exauriente, alongada para a sua aferição.
Cristalina a lição de Jorge de Figueiredo Dias (2004, pág. 543) quando leciona que ¨a natureza da reparação arbitrada em processo penal não deverá suscitar – e não tem efectivamente suscitado – fundadas dúvidas: trata-se de uma verdadeira e própria indemnização de perdas e danos, com natureza exclusivamente civil.¨
Ora, o próprio artigo 91, I, do Código Penal, do que se lê da redação dada pela Lei 7.209, 11 de julho de 1984, que traçou a parte geral do diploma criminal, sempre autorizou a formação do título executivo no juízo civil para pagamento de indenizações geradas em face de sentenças penais condenatórias. Se for autorizado o máximo, pode a legislação superveniente autorizar o mínimo, sem afronta ao princípio da Lex mitior, a lei mais favorável ao réu.
A matéria apesar de poder transparecer seu lado material é de direito processual. Aliás, o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial 1.176.708/RS, Relator Ministro Sebastião Reis Júnior, em 12 de junho de 2012, DJe de 20 de junho de 2012, concluiu que a regra estabelecida pelo artigo 387, IV, do Código de Processo Penal, por ser de natureza processual, aplica-se aos processos em curso. Isso porque a Lei 11.719, de 2008, não criou um direito da vitima, uma vez que a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime já existia no ordenamento jurídico consoante dispõe o artigo 91, I, do Código Penal, tendo ocorrido apenas uma modificação no momento de fixação do valor, o que significa que estamos diante de uma norma processual, cuja aplicação é imediata.
Poder-se-ia afirmar que a norma é realmente de direito material. A favor dessa tese há as palavras de Rômulo de Andrade Moreira (2011, pág. 2) que assim arremata:
“(...) Ora, nada obstante o caráter processual de um dispositivo legal que estabeleça o conteúdo de uma sentença condenatória, entendemos que o fato de a lei também prescrever que dentre os requisitos integrantes da decisão está a questão da reparação do dano, torna-se uma norma processual penal material.
È norma jurídica de direito processual, pois trata da decisão final a ser proferida em um processo, sem, no entanto, deixar de ser uma norma de direito material. visto que também trata de Direito Civil e ao próprio Direito Constitucional. Nestas condições, ditas normas não são puramente processuais (ou formais, técnicas), mas processuais penais materiais.¨
Tais ilações se põem na vereda do que traçou Carlos Maximiliano(1955, pág. 314) quando disse que:
¨quanto aos institutos jurídicos de caráter misto, observam-se as regras atinentes ao critério indicado em espécie determinada. Sirva-se de exemplo a querela: direito de queixa é substantivo; processo de queixa é adjetivo; segundo uma e outra hipótese orienta-se a aplicação do Direito Intertemporal. O preceito sobre observância imediata refere-se a normas processuais no sentido próprio; não abrange casos de diplomas que, embora tenham feição formal, apresentam, entretanto, prevalentes os caracteres do Direito Penal Substantivo; nesta hipótese, predominam os postulados do Direito Transitório Material.¨
Estaríamos, pois, diante de normas de caráter misto.
Data vênia, as normas processuais que tratam de indenização por litigância de má-fé são processuais embora o tema tenha origem em indenização, que é matéria civil. Isso porque estamos diante de normas que dizem respeito ao processo.
Com o devido respeito, é o caso de normas de caráter predominante instrumental, de caráter processual. O que se quer é saber se é possível executar no civil sentença condenatória oriunda do processo criminal, no que diz respeito á formação de um título executivo.
É o que se diz é, seja para fixação do valor total ou mínimo, que deve ser registrado pelo juiz na sentença, que o prejudicado (para o caso do ¨mensalão¨, a União Federal) não será obrigado, no juízo civil, a comprovar a materialidade, a autoria e a ilicitude do fato, já assentes na esfera penal para obter reparação do dano causado pelo ilícito penal (artigo 935 do Código Civil). Estamos diante de um título executivo incompleto, como valor mínimo.
O ofendido obtém, na sentença condenatória criminal, um montante qualquer pelo que sofreu, mas pode demandar um valor maior na esfera civil. Não significa pleitear, na esfera criminal, a indenização civil.
Para Paulo de Lacerda (1924, pág. 211) ¨os atos meramente formais de um processo já iniciado devem obedecer ex nunc a lei superveniente; isto é, cada um dos atos do processo irá se reger pela lei em vigor ao tempo em que se praticar.¨
No caso do julgamento da ação penal 470, já referenciada, na época da fase de dosimetria da pena, estava em vigência a Lei que permitia a fixação mínima de danos a serem reparados.
As leis processuais incidem de forma imediata, sem que se possa falar em retroatividade. Essa a conclusão (BATALHA, 1980, pág. 572)
Carlos Maximiliano (1955, pág. 276) pondera que o direito ao processo executivo se rege pela norma contemporânea à decisão final da causa. Essa a lição.