Breves anotações sobre o Estado Democrático Brasileiro

11/02/2015 às 11:49
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Constituição, Estado e Democracia são três ideias mestras que regem a organização da Ordem Jurídica Brasileira. Nesse sentido, busca-se compreender de maneira sucinta os conceitos que interferem, atualmente, em todos os ramos do Direito.

I. ESTADO DEMOCRATICO DE DIREITO: CONSTITUIÇÃO E DEMOCRACIA

1.1. NOÇÕES INTRODUTÓRIAS

Na Constituição Federal, logo em seu 1º artigo, está escrito que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito. Pela própria expressão utilizada, pode-se extrair que o Estado brasileiro está alicerçado na lei e na democracia, ideias que norteiam todo o sistema jurídico brasileiro. No entanto, Estado Democrático de Direito vai além disso e refere-se ao modelo estatal alcançado após o desenvolvimento e decadência dos Estados Liberal e Social.

Primeiramente, é necessário esclarecer o alcance da expressão Estado de Direito. O conceito Estado não é único e pode ser examinado dos pontos de vista filosófico, sociológico e estritamente jurídico. Segundo o primeiro ponto, o Estado seria uma realidade da vida ética, decorrente da dialética entre família e sociedade. De acordo com o conceito sociológico, o Estado seria um agrupamento de dominação com caráter institucional que monopolizou a força física legítima, como instrumento de domínio. Por fim, o conceito estritamente jurídico, desenvolvido por Georg Jellinek expressa que o Estado seria o detentor do poder político constituído sobre determinado território e dirigido a certa população[1], assim, o Estado seria consequência de um fenômeno histórico, em que certa população, fixada em determinado local, é dotada de poder de mando. Ademais, esse conceito é dividido em três etapas: a retrospectiva, referente à origem e desenvolvimento do Estado no passado; perspectiva, aos elementos constitutivos do Estado e prospectiva, relativa às modificações e as tendências (MORAES, 2007, p. 1)

Já o Direito é um conjunto de normas que ordena fatos sociais em conformidade com certos valores. O Estado de Direito está associado à contenção do Estado pelo Direito e possui como exigências fundamentais: (i) império da lei: expressão da vontade geral; (ii) divisão de poderes: legislativo, executivo e judiciário; (iii) legalidade da administração: atuação segundo a lei como suficiente para o controle judicial; (iv) direitos e liberdades fundamentais: garantia jurídico-formal e efetiva realização material.

No decorrer do desenvolvimento histórico, o Estado de Direito surgiu como expressão do liberalismo, segundo o qual as leis deveriam limitar a atuação dos governantes de forma negativa, ou seja, os direitos dos cidadãos corresponderiam ao não agir do Estado. Esse modelo, Estado Liberal, surgiu como forma de realização da ideologia liberal burguesa, ou seja, simples instrumento de realização legitimação do seu conjunto de ideias e proposições (MENDES, COELHO e BRANCO, 2008, P. 46).

Por ser um modelo unilateral, consolidado na ideologia de apenas uma classe, o Estado Liberal logo se desgastou, sofrendo mudanças, as quais culminaram na adoção de um novo paradigma: o Estado Social. Com objetivo de superar o individualismo, agora o objetivo era instaurar o bem-estar, fundamentado num agir positivo do Estado, para garantir as necessidades da sociedade. O Estado era intervencionista e ao dedicar atenção preferencial aos direitos sociais, absorvia boa parte da economia. O Estado Social tampouco prosperou, pois logo se viu incapaz de realizar a completa democratização econômica e social.

Por fim, chegou-se ao modelo do Estado Democrático de Direito que reúne caracteres dos dois modelos anteriores coadunados com a ideia de democracia. Por meio dele, é realizada a integração conciliadora dos valores da liberdade e da igualdade, da democracia e de welfare. Ao mesmo tempo em que os direitos individuais são resguardados e é valorizada a autonomia privada, o Estado funciona como espécie de propulsor da justiça social e regula a economia para garantir a prestação de serviços adequados à população.

Esse é o modelo adotado pelo Brasil e como tal exerce influência em toda ordem jurídica constitucional. Há duas principais pressupostos para a concretização desse Estado: a salvaguarda da legalidade e, como consequência da supremacia da Constituição, e da democracia.

De acordo com a legalidade, o Estado aparece subordinado à Constituição e alicerçado na lei. Como Estado de Direito que é, deve ser resguardado pela lei, enquanto ato jurídico de regulamentação fundamental produzido segundo um procedimento constitucionalmente qualificado. A lei, nesse contexto, não deve restringir-se à esfera normativa, pois precisa influir na realidade social.

A democracia reflete a participação do povo nas decisões políticas. Há de ser um processo de convivência numa sociedade livre e justa, na qual o poder emana do povo, diretamente ou por representantes; de forma participativa e pluralista (SILVA, 2004).

Feitos breves comentários acerca desses dois pressupostos: existência uma ordem jurídica constitucional e democracia, necessário adentrar mais a fundo esses conceitos.

1.2. ORDEM JURÍDICA CONSTITUCIONAL

Como dito anteriormente, um sistema organizado de leis, de modo hierarquizado com obediência necessária à Constituição é elemento essencial à consolidação de um Estado do Direito.

A Constituição, não raro, é descrita como a norma fundamental de um Estado e regula as bases essenciais de um Estado e os direitos mais relevantes para o povo, de modo que as demais legislações devem obedecer-lhe, ou ao menos, não contrariá-la. As ideias de Constituição e norma fundamental aparecem intrinsecamente ligadas, mas algumas ressalvas devem ser feitas. Norma fundamental é aquela que, numa determinada comunidade política, unifica e confere validade às suas normas jurídicas, as quais, em razão dela, se organizam e estruturam em sistema. Como estabelecido por Hans Kelsen (1996), norma fundamental é aquela que constitui a unidade de uma pluralidade de normas, representante do fundamento de validade de todas as normas pertencentes a essa ordem normativa. Por esse motivo, ela há de ser pressuposta, visto que não pode ser posta, por nenhuma autoridade; aquela norma, enfim, cuja validade não pode ser derivada de outra e cujo fundamento não pode ser posto em questão. A norma fundamental seria uma ficção, utilizada para basear a validade não apenas da primeira Constituição como, a partir dessa, estabelecer a validade de todas as normas que integram o ordenamento jurídico.

O conceito de Constituição é alvo de debates e questionamentos, podendo ser encarada de diversas maneiras. Como instrumento de governo, seria uma lei processual, em cujo texto apenas se estabelecem competências, regulam processos e definem-se limites para a atuação política. Por meio dessa concepção, pode-se separar a Constituição da realidade social, mas ao tornar-se excessivamente formal, acaba por tornar-se ordem de domínio dos agentes de determinada ideologia. Esclarecem Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco: “ porque atrás de todo positivismo jurídico, de toda neutralidade estatal, ou de todo indiferentismo político, escondem-se aqueles que lograram positivar a Lei Fundamental de acordo com as suas próprias ideias, interesses e aspirações ” (2008, p. 7).

A Constituição também pode ser vista como um processo público de interpretação realizado por uma sociedade aberta de intérpretes. Segundo Haberle, a Constituição escrita, como ordem quadro da República, é uma lei fragmentária, indeterminada e carente de interpretação. A verdadeira Constituição será o resultado de um processo de interpretação conduzido à luz da publicidade. Somente entendida como ordem jurídica fundamental de um Estado e da sociedade, a Constituição será aberta, passível de diversas compreensões e verdadeiramente democrática.

A Carta também pode ser vista como legitimação do poder soberano, como estatuto do poder. Essa ideia de constituição aparece imbricada com o Estado de Direito, do qual ela se apresenta como pressuposto, tanto como referência aos governantes como em relação ao próprio poder. Segundo Burdeau, criador da teoria, a Constituição deve ser considerada como verdadeiramente criadora do Estado de Direito, porque a partir dela o poder político de fato transforma-se em poder de direito.

Outras concepções muito prestigiadas são a de Konrad Hesse, segundo a qual a Constituição deve ser entendida como ordem jurídica fundamental de uma comunidade, segundos princípios fundamentais; Carl Schimitt, que dissolve em quatro pontos de vista o conceito integral da Constituição: absoluto, relativo, positivo e ideal; Ferdinand Lassalle, que identifica a Constituição de um país como a soma dos fatores reais de poder que regem a convivência em sociedade. (MENDES, COELHO e BRANCO, 2008, p. 6).

Notória a divergência acerca das concepções de Constituição, é preferível descrevê-la a partir de seu objeto e elementos, sempre com enfoque na carta a brasileira de 1988.

Constituição significa o modo de ser de alguma coisa (SILVA, 2004), e, em sentido político, significa o modo de ser de uma sociedade politicamente organizada, concernindo, pois, ao conjunto de normas que organiza os elementos constitutivos do Estado, ou seja, estrutura os poderes públicos, dispondo sobre competências e limites, e disciplina os direitos e as garantias fundamentais dos cidadãos. Conforme destaca o doutrinador André Ramos Tavares:

Esta [Constituição] por sua vez, entende-se como o documento básico e supremo de um povo que, dando-lhe a necessária unidade organiza o Estado, dividindo os poderes (constituídos) e atribuindo competências, que assegura a necessária proteção aos direitos e garantias fundamentais dos indivíduos e traça outras regras que terão caráter cogente para o legislador ordinário (definindo isso, ainda que em linhas gerais, qual o sentido que validamente se poderá esperar do restante do ordenamento jurídico), para o governante (oferecendo os contornos aceitáveis de sua atuação) e para a maior parte das funções públicas da República.(TAVARES, 2007, p. 29)

No contexto brasileiro, outras observações ainda podem ser feitas quando ao modelo ao constitucional. No Brasil, houve adoção pelo modelo de Constituição escrita representada pela Constituição de 1988. A Constituição Federal de 1988, quanto ao conteúdo, é formal porque tem a forma escrita, consubstanciada em um documento solene estabelecido pelo poder constituinte originário. Além disso, quanto ao modo de elaboração, ela é dogmática porque foi elaborada por um órgão constituinte, e sistematiza os dogmas e as idéias fundamentais da teoria política e dos direitos dominantes. Por haver se originado de um órgão constituinte composto por representantes do povo, eleitos com a finalidade de elaborá-la, quanto à origem, a CF/88 pode ser classificada como democrática (promulgada). Quanto à estabilidade, é uma Constituição rígida, como se pode verificar nas disposições do seu artigo 60, ou seja, ela só pode ser alterada por um processo legislativo especial e dificultoso do que o existente para a elaboração das demais espécies normativas. Por fim, é analítica (dirigente), quanto à extensão e à finalidade, porque além de estabelecer os princípios e normas gerais de regência do Estado, examina e regulamenta todas as matérias relevantes à formação, destinação e funcionamento do Estado.

1.2.1. Poder Constituinte

Ao classificar a Constituição de 1988 em escrita, formal, dogmática, democrática, rígida e analítica, algumas referências foram feitas ao poder constituinte. De fato, não é possível analisar uma Constituição sem levar em conta o segundo conceito acima mencionado.

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O poder constituinte é o supremo fornecedor das diretrizes normativas que farão parte do documento jurídico mais importante. Poder constituinte nada mais é do que o poder criador, que tem por finalidade positivar a Constituição.

Para melhor compreensão do conceito, é de costume distinguir o poder constituinte em originário e derivado.

O poder constituinte originário tem três características básicas. Ele é inicial, ilimitado e incondicionado. Inicial porque é ponto de começo de direito, não pertence à ordem jurídica, não está regido por ela. Incondicionado, não pode ser regido pelo Direito pré-existente. Ilimitado, pois não pode ser limitado por disposições da ordem jurídica pré-existente. No entanto, essa última característica deve ser vista em termos já que há limitações políticas inerentes ao exercício do poder político. (MENDES, COELHO e BRANCO, 2008, p. 50).

Na atual perspectiva do Estado brasileiro, atualmente o Poder Constituinte originário reside no povo, como destaca o parágrafo único do art. 1º da atual CF: “Todo poder emana o povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Não há dúvidas, uma vez admitido o postulado da soberania popular, que a titularidade do Poder Constituinte é do povo, o problema está no fato de como o povo deve exercitar tal direito. Para criar uma Constituição, por meio do poder constituinte originário, o povo encontra variados mecanismos, desde a revolução para derrubar um governo até o processo pacífico de formação de uma Assembleia Constituinte com a eleição de representantes para externar a sua vontade soberana. A diferença entre o poder constituinte revolucionário e o pacífico reside no reconhecimento da legalidade da ordem derrubada posteriormente. No caso da CF/88, sua elaboração ocorreu por contada de uma Assembleia Constituinte, eleita pelo povo. Assim, o povo figurou como titular passivo do Poder Constituinte, porque não chegou a exercê-lo, apenas transferiu essa vontade constituinte a um grupo de pessoas para expressar o desejo social. O efetivo exercício do Poder Constituinte originário, assim, terminou sob o encargo de uma minoria e o povo de fato poderia não estar bem representado na Assembleia. Por isso, seria ato claramente ilegítimo invocar a “soberania popular” para cassar desse mesmo povo um direito fundamental.

A concepção de Poder Constituinte será utilizada também para resolver conflito de leis com a Constituição. Como a Carta Magna é produto do Poder Constituinte originário, elevando-a condição de obra suprema, iniciadora do ordenamento jurídico, ela se impõe ao diploma inferior com ela inconciliável, sendo, o ato contrário à Constituição eivado por nulidade absoluta.

Para prevenir os efeitos do engessamento de todo texto constitucional e a incoerência entre a ordem jurídica e a realidade social, o próprio Poder Constituinte originário prevê no texto da própria Lei Maior a possibilidade de reforma da Constituição, acrescentando, modificando ou suprimindo normas constitucionais. Trata-se do poder derivado, subordinado ao originário e por este limitado, lhe estabelecendo o procedimento a ser seguido e as limitações a serem observadas. Destaca-se que o tema do poder constituinte de reforma somente ganha relevo quando se está tratando de Constituição rígida, somente alterável por meio de procedimentos especiais, mais complexos do que aqueles próprios à atividade comum do Poder Legislativo. A Constituição flexível equipara-se no que tange ao rito de reforma às legislações comuns.

Como a CF/88, é uma constituição rígida, está previsto este poder de reforma, em algumas modalidades. Há previsão de poder de revisão (art. 3º, ADCT), efetuado em período determinado sobre o texto constitucional como um todo e poder de reforma. Quanto ao poder constituinte derivado, pode-se desmembrá-lo em federal e decorrente, este refere-se ao poder dos municípios e estados ao elaborar suas Constituições estaduais e leis orgânicas e aquele refere-se à competência reformadora da CF/88, o qual ocorre por meio de emenda constitucional.

O Poder Constituinte derivado, que também pode ser chamado de poder instituído, poder constituinte reformador, poder constituinte de segundo grau é exercido pelo Congresso Nacional, submetido a limitações de diversas ordens: procedimental; circunstancial; material.  

Segundo a CF/88, há restrições de ordem procedimental porque exige-se quórum qualificado para aprovação da emenda, é necessário que a proposta reúna o voto de 3/5 dos membros de cada Casa legislativa, em dois turnos. Ademais, a proposta deve ser apresentada por 1/3, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal; Presidente da República; mais da metade das Assembléias Legislativas das unidades da federação, manifestando-se cada uma delas pela maioria relativa de seus membros. Ademais, proíbe-se a reapresentação na mesma sessão legislativa, de proposta de emenda nela rejeitada ou tida por prejudicada (art. 60, §5º).

Há também limitações circunstanciais no texto constitucional, proíbe-se a mudança em certos contextos históricos adversos à livre deliberação dos órgãos constituintes, como a intervenção federal, estado de sítio e estado de defesa (art. 60, § 1º).

Por fim, há as limitações materiais, estabelecidas pelo Poder Constituinte originário como intangíveis, visam a prevenir um processo de erosão na Constituição e tem como missão inibir a tentativa de abolir o seu próprio projeto básico. Os limites são as cláusulas pétreas implícitas ou explícitas. Estas são descritas no art. 60, §4º: forma federativa de Estado; separação dos poderes; voto direito, secreto, universal e periódico; direitos e garantias individuais e aquelas ideais ínsitas à identidade da Constituição: as normas concernentes ao titular do Poder Constituinte, as referentes ao titular do poder reformador e as que disciplinam o próprio procedimento de emenda.

1.3 DEMOCRACIA

A Constituição Federal de 1988 desde que criada pelo Poder Constituinte originário, teve como preocupação especial tratar a democracia como um dos baluartes do Estado brasileiro. Aliás, a própria noção de que o povo é o titular do Poder Constituinte advém da ideia de democracia. Mas o que seria democracia? Que a termo democracia refere-se ao sistema político, à maneira pela qual o poder é adquirido e exercido não há dúvida, porém são diversas as conceituações específicas do vocábulo. Nesse trabalho, serão comentadas abordagens de três autores sobre a ideia de democracia, quais sejam, Aléxis de Tocqueville, Norberto Bobbio e Jürgen Habermas.

1.3.1. Aléxis de Tocqueville

Aléxis de Tocqueville buscou sistematizar a idéia de democracia, não como teoria, mas como práxis incorporada às instituições. Em sua principal obra, escrita no século XIX, “Da Democracia da América” (TOCQUEVILLE, 1998), faz uma análise comparativa da democracia da América do Norte com a democracia instaurada na Europa e acaba por vangloriar o êxito americano em detrimento da estrutura européia. Segundo o autor, para que haja democracia real e efetiva, são necessários alguns fatores que aparecem como num somatório: liberdade; igualdade e soberania popular. Para Tocqueville, a liberdade é essencial na conquista democrática e tal valor seria muito exaltado na América pela vontade de independência e ordem a serem almejados com base na luta, na união e no combate do colonialismo inglês. Não menos importante seria a igualdade, alcançada por meio da progressiva igualação das condições dos indivíduos e povos. Essa igualdade é conseguida por meio do profundo patriotismo e pela consciência do povo acerca da participação do poder. No sistema americano, há peculiaridade de que a soberania popular é elevada à condição de garantia da igualdade. O autor ressalta ainda que a soberania popular não significa dinastia e tirania de muitos, porque aparece limitada pela justiça. Nesse sentido, vale a pena citá-lo:“Na América, o povo nomeia aquele que faz a lei e aquele que a executa; ele mesmo constitui o júri que pune as infrações à lei. Não apenas as instituições são democráticas, em seu princípio, mas também todos os seus desdobramentos.” (TOCQUEVILLE, 1998). Por fim, o autor tem como conclusão que a democracia é um imperativo que só pode construir-se com perfeitas condições se estiver em compasso com a liberdade e a igualdade.

1.3.2. Norberto Bobbio

O segundo autor já do século XX, Norberto Bobbio, um crítico dos sistemas e formas de governo, possui extensa produção intelectual que beirou as dimensões do jurídico e do político. Sua posição acaba sendo a de um democrata, aliado a um sistema que preservasse direitos e garantisse o pacifismo do convívio social. A democracia é um valor político cultuado pela doutrina de Bobbio e entre vários conceitos apresentados apresentou o seu conceito:

“Liberdade e Igualdade são os valores que servem de fundamento à democracia. Entre as muitas definições possíveis de democracia, uma delas – a que leva em conta não só as regras do jogo, mas também os princípios inspiradores é a definição segundo a qual a democracia não é tanto uma sociedade de livres e iguais (porque, como disse, tal sociedade é apenas um ideal-limite), mas um sociedade regulada de tal modo que os indivíduos que a compõem indivíduos que a compõem são mais livre e iguais do que em qualquer outra forma de convivência.” (BOBBIO, 1997)

Para Bobbio, o que compõe de modo substancial a democracia é a participação ativa no espaço público. O autor assume que a democracia direta deixou de ser modelo para o Estado Moderno que tem funcionado, com variações, em maior escala como democracia representativa. Dessa forma, o critério da maioria e da validade da decisão assim tomada é essencial para identificar a idéia de governo democrático. Ademais, Bobbio ressalta que para que é necessária a democratização de todas as instituições da sociedade, e não só uma modificação da estrutura dos Estados para que a democracia obtenha sucesso.

1.3.3. Jürgen Habermas

Outro autor que possui relevante obra no campo da democracia é Jürgen Habermas. Este escreve a obra “Direito e Democracia entre facticidade e validade” (HABERMAS, 2003), cujo ponto central é a questão da legitimação, ou da justificação do direito. O autor trabalha a idéia de democracia como princípio, posicionando-o como a condição de possibilidade da legitimidade do direito. O princípio da democracia em Habermas aparece entrelaçado a conceitos bem complexos, quais sejam, racionalidade comunicativa, teoria da argumentação e forma jurídica. Segundo o próprio Habermas (2003):

“O princípio da democracia resulta da interligação que existe entre o princípio do discurso e a forma jurídica. Eu vejo esse entrelaçamento como uma gênese lógica de direitos, a qual pode ser reconstruída passo a passo. Ela começa com a aplicação do princípio do discurso ao direito a liberdades subjetivas de ação geral - (...) - e termina quando acontece a institucionalizacção jurídica de condições para um exercício discursivo da autonomia política, a qual pode equiparar retroativamente a autonomia privada, inicialmente abstrata, com a forma jurídica. Por isso, o princípio da democracia só pode aparecer como núcleo de um sistema de direitos. ”

Para melhor entendimento desse autor, é necessário esclarecer alguns conceitos. A noção de forma jurídica é obtida a partir da análise entre direito e moral e é constituída pela liberdade subjetiva de ação e pela coação. O princípio do discurso advém a partir da ideia de racionalidade comunicativa, com a participação de todos para atingir um consenso. O princípio do discurso pode ser especificado de duas formas: princípio da universalização, aplicável á moral, e princípio da democracia, aplicável ao direito. Com o princípio da democracia, chega-se ao entendimento de que só haveria validade legitima das leis capazes de encontrar assentimento de todos, num processo de ampla discussão. Da intersecção do princípio do discurso e da forma jurídica, nasce um sistema de direitos, constituído por cinco direitos fundamentais, os quais formam o próprio código jurídico. E, segundo Habermas, não poderá existir qualquer direito legitimo sem esses direitos. Entre esses cinco direitos, o quarto trata da institucionalização, sob a forma jurídica, do princípio do discurso: “4. Direitos fundamentais à participação, em igualdade de chances, em processos de formação de opinião e da vontade, nos quais os civis exercitam sua autonomia política e através dos quais eles criam direito legitimo.”(HABERMAS, 2003) Por meio desse direito, a liberdade comunicativa é assegurada juridicamente. Segundo Habermas, a idéia desse direito reside na assertiva “Todo poder emana do povo”, na forma de liberdades de opinião, informação, reunião, associação, consciência e fé e de autorizações para participação em eleições e votações públicas, em partidos políticos ou movimentos civis.

Assim, para Habermas, o princípio da democracia estabelece que o consenso que dá legitimidade ao direito. No entanto, esse consenso deve resultar de todos. Para dar efetividade a essa democracia, ela passa por dois processos de limitação, sem que deixe de preencher as condições de um procedimento democrático, ainda que de modo aproximado. O primeiro processo é aquele pelo qual a soberania popular se exerce de forma representativa ou delegada, e o segundo ocorre pela introdução da regra da maioria como forma de decisão em pleitos. O autor ressalta que, como Tocqueville, os direitos fundamentais das minorias devem frear a atuação da maioria.

1.3.4. Conclusão quanto ao conceito de democracia no Estado brasileiro

A partir dessa análise quanto ao conceito de democracia, conclui-se que democracia implica na livre participação na esfera pública de todos os componentes de uma sociedade em igualdade de condições e de acesso. Democracia repousa, portanto, em dois fundamentos primários: a soberania popular, segundo o qual o poder emana do povo, e a participação direta ou indireta do povo no poder, para que seja efetiva a expressão da vontade popular. Ademais, liberdade e igualdade são valores integrantes da idéia de democracia, como meios de realização prática desta.

O regime político brasileiro da CF/88 baseia-se no princípio da democracia, essencial na estruturação no Estado Democrático de Direito. Nesse contexto, a efetivação da democracia ocorre por um modelo representativo, de acordo com a ideia de maioria, mas sem olvidar-se dos direitos das minorias. Atrelado a esse modelo, há institutos no sistema constitucional brasileiro de participação direta dos cidadãos, entre os quais figuram o referendo, o plebiscito, a iniciativa popular e a participação no Júri.

Para finalizar o artigo, que teve início com a ideia de Constituição, passou pelo Poder Constituinte, teceu considerações sobre democracia e sobre o Estado Democrático de Direito, deve-se destacar que não se pode negar aplicação a princípios, direitos e garantias constitucionais inseridos pelo Poder Constituinte sob pena de se questionar a supremacia da Lei Maior, colocando em risco a própria soberania popular.


Referência Bibliográfica

BOBBIO, Norberto. Igualdade e liberdade, Brasília: UNB, 1997.

_____. Liberalismo e Democracia, 3ª ed. São Paulo: Ed. Brasiliense.

_____. O futuro da democracia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

_____. Teoria das formas de governo. Brasília: UNB, 1998.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. Coimbra:Almedina, 1993.

DWORKIN, Ronald. O império do direito. Martins Fontes: São Paulo, 1998.

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HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre facticidade e validade, 2ª ed., tradução Flávio Beno Siebenneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.

KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. Martins Fontes. 5ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

MENDES, Gilmar Ferreira. Os direitos fundamentais e seus múltiplos significados na ordem constitucional.. Repertório IOB Jurisprudência: Tributária Constit. Adm., São Paulo, v. maio, n. 9, p. 333-337, 2002.

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MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Coimbra: Coimbra, 1988-91. V.2

MORAES, Guilherme Peña de. Direito Constitucional: Teoria do Estado. 2ª edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

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TAVARES, André Ramos Tavares. Curso de Direito Constitucional. 5ª edição, São Paulo: Saraiva, 2007.

TOCQUEVILLE, Aléxis de. Da Democracia na América. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 1998.


Nota

[1] Nesse conceito, está clara a conhecida ideia de que Estado é povo, território e governo.

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Sobre a autora
Fernanda Molyna

Promotora de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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