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As sociedades simples no novo Código Civil

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01/02/2003 às 00:00
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5. A "VONTADE" DA SOCIEDADE

A sociedade deve praticar atos no mundo dos fatos, e em muitas vezes se encontra diante de vários caminhos que podem ser seguidos, vale dizer, é necessária uma decisão. A tomada de tais decisões decorrerá da soma das vontades dos sócios, que deverão atentar ao dever de lealdade (art. 1.010, § 3º), não votando quanto tiverem interesses contrários aos da sociedade.

Quando assim exigir a lei ou o contrato social, os sócios deverão se reunir, ou por qualquer outra forma chegar a um encontro de suas vontades, como por exemplo, uma manifestação por escrito. Nesses casos, de acordo com o princípio democrático, deve prevalecer como regra geral a opinião que obtiver a maioria dos votos, contados pelo valor das quotas e não pelo número de sócios, ou seja, exige-se o consentimento de sócios que representem mais da metade do capital social, se o contrato social não exigir a unanimidade. No entanto, para a modificação das cláusulas essenciais do contrato social exige-se a legalmente a unanimidade dos sócios (art. 999 do Novo Código Civil). Em caso de empate, prevalecerá a opinião sufragada pelo maior número de sócios, e persistindo o empate, a decisão será atribuída a um juiz.

A exigência de tal quorum elevado (maioria absoluta ou unanimidade) deve-se a natureza personalista da sociedade simples, as quais não se destinam a um número muito grande de sócios, sendo relativamente simples que se alcance essa maioria.

Expressa a vontade social, a mesma precisa ser concretizada por meio dos administradores da sociedade, que além de por em prática a vontade social, também gerem a sociedade, tomando decisões de menor relevo pela sociedade [26], pois seria impossível exigir a deliberação da sociedade para todos os atos, como por exemplo, a compra de uma caneta.


6. ADMINISTRAÇÃO DA SOCIEDADE

Expressa a vontade da sociedade pelos sócios, ou sendo necessária uma decisão não sujeita à deliberação dos sócios, surge a figura do administrador seja para tomar a decisão, seja para por em prática a vontade social.

6.1 – NATUREZA JURÍDICA DA RELAÇÃO ADMINISTRADOR-SOCIEDADE

A ausência de substrato concreto das pessoas jurídicas torna imprescindível a intermediação de um órgão, para a exteriorização da vontade social, bem como para a administração da sociedade no âmbito interno. "É evidente que uma pessoa moral não pode obrar por si mesma, sendo necessário que se exteriorize por mecanismos, por órgãos, sem os quais seria como se não existisse" [27].

Tal órgão, todavia, não é um representante, no sentido técnico, da pessoa jurídica, conquanto seja essa a terminologia usada na linguagem corriqueira. Não se pode falar em representação legal ou convencional, seja porque a pessoa jurídica não é incapaz, seja porque a função do órgão é essencial à própria vida sociedade, seja porque não há relação de subordinação, não se podendo falar em mandato. Tanto não se trata de mandato, que se aplicam à atividade dos administradores apenas supletivamente e não diretamente, as normas sobre o mandato [28] (art. 1.011 § 2º do novo Código Civil).

Quando o órgão age quem age é a pessoa jurídica, por meio do órgão se faz presente a vontade da pessoa jurídica, daí se falar que o órgão é o presentante [29] da pessoa jurídica, e não seu representante. O Professor Rubens Requião lança mão de uma analogia extremamente clara na definição de tal natureza, ao afirmar que "o órgão executa a vontade da pessoa jurídica, assim como o braço, a mão, a boca executam a da pessoa física." [30]

A importância de tal qualificação reside no fato de que qualquer problema como a incapacidade ou a morte da pessoa física (órgão da sociedade que praticou o ato) não afeta sua existência e validade, porquanto se trata de ato da sociedade, simplesmente manifestado por meio de seu órgão. Sendo ato da sociedade, a morte da pessoa física que praticou concretamente o ato pela sociedade não traz quaisquer problemas, uma vez que a autora do ato continua existindo.

6.2 – NOMEAÇÃO E DESTITUIÇÃO

A administração das sociedades simples pode competir a pessoas físicas ou pessoas jurídicas, tendo em vista a inexistência de proibição em relação a estas últimas. Em se tratando de pessoas físicas, as mesmas devem demonstrar sua idoneidade para administrar a sociedade. Há que se impor restrições, protegendo à própria sociedade e o mercado consumidor.

Se a pessoa era servidora pública e cometeu crime contra a administração pública, que se dirá o que pode fazer com a sociedade. Caso tenha agido mal no mercado da livre iniciativa, fraudando credores, causando prejuízos, não seria razoável dar-lhe mais uma chance de prejudicar o interesse geral do mercado. Assim sendo, não podem ser administradores os condenados a pena que vede, ainda que temporariamente, o acesso a cargos públicos; ou por crime falimentar, de prevaricação, peita ou suborno (corrupção ativa ou passiva), concussão, peculato; ou contra a economia popular, contra o sistema financeiro nacional, contra as normas de defesa da concorrência, contra as relações de consumo, a fé pública ou a propriedade, enquanto perdurarem os efeitos da condenação (art. 1.011 §1º), além de outros impedimentos decorrentes de leis específicas.

Não incorrendo nos impedimentos legais, os administradores, que podem ser sócios ou não sócios, devem ser indicados no contrato social, ou em instrumento separado que deverá ser averbado a margem do registro da sociedade, para assegurar ao público em geral o conhecimento de quem pode praticar atos pela sociedade. Antes de tal averbação, o administrador assume responsabilidade solidária com a sociedade pelos atos praticados, pois sem a averbação, o terceiro de boa fé não tem como aferir a regularidade ou não da atuação do administrador.

Os sócios administradores nomeados no contrato social não poderão ser destituídos, salvo justa causa reconhecida judicialmente, a pedido de qualquer dos sócios (art. 1.020 do novo Código Civil). Tal solução se justificaria pelo fato de que a destituição desse sócio administrador implicaria a alteração do contrato social, a qual exige a unanimidade dos sócios, que não seria alcançada [31]. Por isso, exige-se que a justa causa seja reconhecida em juízo, porquanto autorizaria a exceção à regra da unanimidade. Assegura-se, pois, um direito ao cargo de administrador àqueles nomeados no contrato social, que não descumpram seus deveres.

Tal irrevogabilidade dos poderes do sócio administrador nomeado no contrato social é um retrocesso, podendo ser prejudicial ao bom andamento da sociedade. É fato notório a morosidade da tramitação de processos no judiciário brasileiro, os quais por vezes se arrastam por mais de uma década. Imagine-se uma sociedade funcionando por dez anos com um administrador não desejado, o que isso poderia gerar para tal sociedade? Ademais, a comprovação de tal justa causa é extremamente difícil.

Questões de oportunidade ou de mera conveniência podem tornar determinado administrador inadequado aos interesses da sociedade, independentemente do descumprimento de qualquer dever. Por isso, melhor seria assegurar além da destituição judicial por justa causa, de iniciativa de qualquer sócio, a destituição extrajudicial deliberada pela maioria do capital social, ou ao menos pela unanimidade dos demais sócios, independente de justa causa [32].

No caso de sócios administradores nomeados em ato estranho ao contrato social, ou administradores não sócios prevalece a revogabilidade a qualquer tempo, deliberada pela maioria do capital social (art. 1.020).

Não havendo designação dos administradores, a administração compete a cada um dos sócios isoladamente, como atributo inerente a tal qualidade. Cada sócio está investido do poder de administrar podendo praticar quaisquer atos dentro do objeto social [33].

6.3 – EXERCÍCIO DO PODER DE ADMINISTRAÇÃO

O contrato social pode organizar o poder de administração, dividindo as atribuições entre diversas pessoas, definindo a competência de cada um, ou exigindo que os atos sejam praticados em conjunto. Nesse último caso, há que se obedecer ao estipulado no contrato social, salvo casos de urgência, nos quais um sócio poderá praticar os atos isoladamente a fim de evitar danos à própria sociedade (art. 1.014 do novo Código Civil).

Todavia, nem sempre há essa organização da administração social. Nesta hipótese, os administradores podem praticar isoladamente os atos necessários à gestão da sociedade, entre os quais não se encontra a venda ou oneração de imóveis, que dependem de decisão dos sócios, a menos que esse seja o próprio objeto social (art. 1.015 do Novo Código Civil).

No caso de não indicação dos administradores, vale dizer, quando a administração cabe a todos os sócios isoladamente, qualquer outro sócio pode se opor às operações concluídas por um sócio, suscitando a decisão em conjunto dos sócios, para que prevaleça efetivamente a vontade da sociedade, e não a vontade singular. Caso nenhum sócio se oponha por desconhecimento ou por qualquer outro motivo, o administrador responde por perdas e danos se sabe ou devia saber que está agindo em desacordo com a intenção da maioria (art. 1.013 § 2º do novo Código Civil).

Qualquer que seja a forma do exercício, a função do administrador é personalíssima, não se admitindo a sua substituição por terceiros, isto é, o administrador não pode delegar suas funções a terceiros. Tal fato não impede a constituição de mandatários em benefício da sociedade, para atos especificamente determinados.

6.4 – A PROIBIÇÃO DE CONCORRÊNCIA

Em norma topograficamente mal colocada, o novo Código estabelece em seu artigo 1170 a proibição de concorrência à sociedade por parte do administrador, ali tratado como preposto. O referido dispositivo proíbe o administrador, de participar de forma direta ou indireta, de operação do mesmo gênero da que lhe foi cometida, salvo autorização expressa da própria sociedade.

Não se proíbe que os administradores exerçam individualmente ou em outras sociedades, quaisquer atividades econômicas, exceto aquelas concorrentes com a sociedade da qual seja administrador. Tal proibição se justifica pela exigência de se impedir que o administrador use notícias e oportunidades que teve conhecimento em virtude do cargo, em benefício próprio e em detrimento da própria sociedade [34].

O descumprimento de tal dever acarreta ao administrador a obrigação de ressarcir os danos causados à sociedade, e a retenção dos lucros obtidos em tais operações pela sociedade.

6-5 - RESPONSABILIDADE

A condição de administrador é extremamente importante, e por isso vem acompanhada de inúmeras responsabilidades, para com a sociedade e para com terceiros.

Perante a sociedade, o administrador tem responsabilidade pelos danos causados à mesma, quando age com culpa, e quando age em desacordo com a vontade da maioria, a qual conhecia ou devia conhecer. Além disso, quando o administrador utiliza em proveito próprio ou de terceiros, bens da sociedade sem o consentimento escrito dos demais sócios, também responderá por perdas e danos.

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Com o intuito de fiscalizar os administradores, assegura-se aos demais sócios o direito de verificar os livros e documentos da sociedade, salvo se uma época própria para tanto, for fixada no contrato social. Além disso, os administradores devem prestar contas de sua administração, bem como elaborar o balanço patrimonial e o de resultado econômico, para que os sócios tenham ciência do que está acontecendo com a sociedade, e caso seja necessário tomem as medidas cabíveis.

Perante terceiros, o administrador pode ser responsabilizado quando age com culpa, abrangendo inclusive a exorbitância dos poderes que lhe foram atribuídos. Tal responsabilidade pode ser isolada ou solidária em relação à sociedade.

6.6 – VINCULAÇÃO DA SOCIEDADE

Por força da própria natureza jurídica da relação entre o gerente e sociedade, poder-se-ia afirmar que todos os atos praticados pelos administradores são atos da sociedade e conseqüentemente não responsabilizariam pessoalmente o administrador, uma vez que por força da personalidade jurídica da sociedade, esta tem existência e patrimônio distinto, o qual responde por suas obrigações.

No entanto, não há dúvida que em determinados casos, os sócios-gerentes movidos por vicissitudes pessoais, podem agir violando a lei ou o contrato social, vale dizer, em exorbitância aos poderes que lhe foram atribuídos pelo contrato social. Em tais situações, a princípio, há responsabilidade do administrador perante a sociedade e perante terceiros, neste caso solidariamente com a sociedade, porquanto o administrador ao agir dessa forma agiu com culpa [35].

Ao extrapolar seus poderes, o administrador foi além do que era permitido pelo contrato social, isto é, foi além da vontade da sociedade. Neste caso, a sociedade fica vinculada pelo ato praticado? Em outras palavras, a sociedade pode se exonerar perante terceiros, alegando o excesso de poderes praticados pelo administrador?

O novo Código Civil em seu artigo 1.015 parágrafo único, afirma que a sociedade não se vincula pelos atos praticados pelos administradores se provar uma das seguintes hipóteses: a) limitação inscrita ou averbada no registro de empresas; b) limitação conhecida por terceiro; c) ato estranho ao objeto social.

A primeira hipótese refere-se à restrições contratuais aos poderes do administrador, como por exemplo, a proibição da prestação de aval ou fiança pela sociedade. No segundo caso, pune-se a má fé do terceiro, que sabendo da limitação, ainda assim concluiu o contrato. E na terceira situação, o ato é completamente alheio ao objeto da sociedade, não se concebendo que terceiros acreditem que se trata de ato da sociedade.

Tal orientação adotada pelo novo Código vai de encontra à tendência mundial de proteção dos terceiros de boa – fé e do favorecimento da celeridade nos negócios firmados pela sociedade. Diante de tal disciplina, será sempre necessário analisar o contrato da sociedade, para verificar a extensão dos poderes dos administradores. E mais, pode haver um grande prejuízo para a própria sociedade, na medida em que, como ocorreu no direito inglês, será extremamente discutido se o ato está ou não dentro do objeto social. Esse é mais um motivo, para tal tipo societário ficar relegado ao plano teórico.

Entende-se hoje que as meras restrições contratuais aos poderes de gerência não são oponíveis perante terceiros de boa fé, uma vez que não se pode obrigar que os terceiros toda vez que forem contratar com a sociedade examinem o contrato social da mesma, para verificar os exatos limites dos poderes de gerência.

A dinâmica das relações contratuais, aliada a proteção da boa fé, impõe a aplicação da teoria da aparência, para vincular a sociedade. "É exigir demais, com efeito, no âmbito do comércio, onde as operações se realizam em massa, e por isso sempre em antagonismo com o formalismo, que a todo instante o terceiro que contrata com uma sociedade comercial solicite desta a exibição do contrato social, para verificação dos poderes do gerente..." [36]

A modernidade e a massificação das relações nos impõe neste caso a aplicação da teoria da aparência, pela qual se o ato parece regular é dessa forma que ele deve ser tratado. A boa-fé dos terceiros que contratam com a sociedade em situação que acreditam perfeitamente regular deve ser prestigiada. A sociedade e os sócios que escolheram mal o gerente não podem se beneficiar em detrimento da boa –fé de terceiros [37].

Tal posição vem sendo acolhida no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, que afirma expressamente que "é válida a fiança prestada por sócio-diretor de empresa com poderes de administração, sendo certo que a existência de vedação no contrato social pertine às relações entre os sócios, não tendo o condão de prejudicar o terceiro de boa-fé" [38].

Além disso, acolher a teoria dos atos ultra vires pela qual, os atos estranhos ao objeto social não são de responsabilidade da sociedade, mas apenas do administrador [39], é um imenso retrocesso.

Com efeito, tal teoria foi acolhida pelo artigo 316 do nosso Código Comercial de 1850, e é aplaudida por autores como Rubens Requião, que afirma que "quando, porém, a firma for usada em negócios ostensivamente diferentes do objeto da sociedade, como, por exemplo, a compra de cereais, em uma sociedade destinada ao comércio de tecidos, o terceiro não pode alegar boa fé, e a firma não obriga a sociedade." [40] Entretanto, a aplicação da mesma é extremamente difícil [41], podendo causar prejuízos ao tráfico jurídico e à própria sociedade, motivo pelo qual ele tem sido repelida em outros países.

Em primeiro lugar, modernamente é muito difícil definir o que se encontra ou não dentro do objeto da sociedade [42]. Imagine-se a compra de um imóvel por uma fábrica de veículos, o ato não está dentro do objeto social, mas pode ser extremamente útil à própria sociedade. Com a mesmo dificuldade, nos deparamos ao analisar uma padaria que compra tijolos? A compra pode ser destinar a construção de um forno ou a uma reforma urgente, que interessam à sociedade, apesar de não estarem previstas explicitamente dentro do objeto social.

Tais problemas levaram a uma nova concepção da teoria dos atos ultra vires no direito norte-americano, reduzindo bastante seu âmbito de aplicação [43]. No direito italiano, protege-se, sobretudo a boa fé, não podendo a sociedade opor aos terceiros de boa fé que o ato é estranho ao objeto social [44].

Nesses casos, há um conflito entre o interesse da sociedade e dos terceiros devendo prevalecer estes últimos, protegendo-se o tráfico jurídico. A sociedade deveria estar vinculada perante terceiros de boa fé pelos atos praticados pelo administrador proibidos pelo contrato social, ou mesmo estranhos a este. A sociedade responde perante terceiros, e posteriormente faz um acerto de contas com o administrador que extrapolou seus poderes. Apenas a má fé do terceiro deveria excluir a responsabilidade da sociedade. Portanto, neste particular o novo Código Civil representou um enorme retrocesso.

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Sobre o autor
Marlon Tomazette

procurador do Distrito Federal, advogado em Brasília (DF), professor de Direito do UniCEUB e da Escola Superior de Advocacia do Distrito Federal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TOMAZETTE, Marlon. As sociedades simples no novo Código Civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 62, 1 fev. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3691. Acesso em: 29 mar. 2024.

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