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Dupla garantia na responsabilidade civil do Estado: garantia em função do servidor ou do administrado?

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17/08/2017 às 09:30
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III - EM BUSCA DE UM “GIUSTO PROCESSO”: A ADESÃO VOLUNTÁRIA DO AGENTE ESTATAL NA RELAÇÃO PROCESSUAL ENTRE O LESADO E O ESTADO

3.1 - Esclarecimentos iniciais

Defendemos no presente trabalho que o administrado não pode ajuizar sua pretensão indenizatória diretamente em face do agente estatal, cabendo-lhe buscar a reparação em face do Estado que, nos casos de dolo ou culpa, agirá em regresso contra o agente faltoso. Com isso, apoiamos a tese da “dupla garantia” que vem sendo consagrada pelo Supremo Tribunal Federal.

Essa premissa se mantém incólume, no entanto buscamos neste momento aprimorar a relação jurídica que nasce diante de uma conduta comissiva ou omissiva do Estado, que tenha como protagonista uma conduta dolosa ou culposa de agente estatal. Lembre-se que, segundo Yussef Said Cahali, 

A identificação dos sujeitos que devem integrar o polo passivo da ação indenizatória, para saber se a demanda pode ser proposta contra o Estado e o agente em litisconsórcio facultativo possível, se deve ser proposta apenas contra o Estado ou se pode ser proposta apenas contra o agente, e se seria admissível, em qualquer caso, a denunciação recíproca da lide, deve ser examinada necessariamente a partir de uma distinção fundamental, que decorre do art. 37, § 6º, da Constituição.

Assim: a) se a pretensão inicial deduzida pelo prejudicado funda-se na responsabilidade civil objetiva do Estado, com arguição da culpa anônima do serviço público, de falha administrativa, de risco da atividade estatal desenvolvida; ou b) se a pretensão inicial deduzida pelo prejudicado funda aquela responsabilidade em ato doloso ou culposo imputado ao agente individualizado.

Desta forma, como esclarecimento inicial, impõe delimitar nosso estudo na ideia de que o lesado requer em juízo a responsabilidade civil do Estado utilizando como argumento a existência de agir culposo ou doloso de agente seu. Neste sentido, conquanto defendamos a necessidade de que o processo tenha no polo passivo, ordinariamente, somente o Estado, é certo que, pelo poder-dever de regresso, o que for decidido nos autos da ação indenizatória repercutirá na esfera de interesse jurídico do próprio agente estatal.

Com base nisso, propomos uma forma que se garanta ao agente estatal, sponte sua, intervir no feito para proteger interesse próprio, ao mesmo tempo em que ressaltamos a autonomia entre a relação existente entre o Estado e o lesado (relação externa) e o Estado e o agente estatal (relação interna).

3.2 - Pensando a intervenção do agente como terceiro: sobrevôo nas modalidades previstas no CPC

Com vistas a obter o “giusto processo”, entendemos ser crucial a participação do agente estatal sobre o qual recai a imputação de agir com dolo ou culpa na consecução do dano a ser reparado pelo Estado. Participação esta que deve advir da vontade do agente estatal, não ao talante do lesado. Eis a distinção: o que pretendemos é que o agente, instado sobre a acusação de ter, por sua conduta em nome do Estado, dolosa ou culposa, causado dano a terceiro, possa intervir nos autos da ação indenizatória em busca de proteger interesses próprios da relação interna que mantém com o Estado, a qual fundamentará a ação regressiva.

É neste sentido que propomos a intervenção do agente como um terceiro. Quando Athos Gusmão Carneiro inicia as ideias do conceito de terceiro em sua clássica obra “Intervenção de terceiros”, revela que tal conceito é obtido por negação. A seguir, identifica situações em que os terceiros são (i) totalmente indiferentes a determinada demanda; (ii) atingidos pela demanda no plano dos fatos, daí serem juridicamente indiferentes; (iii) os que possuem interesses jurídicos refletidos na demanda, mas de forma indireta e mediata; (iv) finalmente, os que, também com interesses jurídicos na demanda, ostentam interesse jurídico direto e imediato na causa.

Idealizamos o interesse do agente estatal, no caso proposto, como um interesse jurídico indireto e mediato, já que não podemos falar que seja ele um co-titular da relação jurídica pendente e, desta forma, ser um litisconsorte. Lembremos, uma vez mais, que o sistema atual, desde a Constituição de 1946, é o da regressividade, não da solidariedade.

Assim, afastamos de plano qualquer ideia de chamamento ao processo, porque não se trata de solidariedade; de nomeação à autoria, porque não há detenção da coisa em nome alheio; de oposição, porque não há pretensão sobre coisa ou direito que controvertam as partes originárias. Restam-nos as figuras da assistência e da denunciação da lide.

A denunciação da lide representa, numa primeira leitura, um encaixe com a ideia de regresso prevista no art. 37, § 6º, da CRFB, pois uma das sua hipóteses é, justamente, a situação de o terceiro estar obrigado, pela lei ou pelo contrato, a indenizar, em ação regressiva, o prejuízo do que perder a demanda.

Ocorre que, neste particular, há um problema estrutural. O Estado, para denunciar à lide o agente estatal, deverá reconhecer que ele agiu com dolo ou culpa, que representa a conditio sine qua non para o regresso, comprometendo, a um só tempo, a própria defesa do Estado e o seu ônus em responder a demanda, já que estaria transferindo o encargo ao agente estatal de defender-se. Cahali, quando aborda a denunciação, trouxe o seguinte argumento: “se na contestação a Administração defende seu servidor, sustentando que o mesmo não agiu com dolo ou culpa, não pode, ao mesmo tempo, denunciá-lo à lide. Tal contradição inviabiliza a utilização do instituto, sendo de se decretar a inépcia do pedido de intervenção”.

Outro problema é que na denunciação da lide o julgamento será conjunto nos próprios autos, e isso compromete a ideia da regressividade atinente à relação interna entre o Estado e o servidor, que é diferente, por exemplo, de uma relação entre seguradora e segurado (exemplo ordinário de denunciação da lide pela sistemática do CPC). Isso porque o agir em regresso do Estado em face do servidor não pressupõe apenas a condenação, o título executivo, mas sim o efetivo dispêndio, ou seja, a “viagem de ida” a que alude o STF nos precedentes citados no item 1.2.

Acerca da ação regressiva, Gasparini ressalta que

[...] a recuperação é feita mediante a interposição da competente ação regressiva. Ao Estado também se assegura, nessas hipóteses, o direito de regresso, como ocorre em nosso ordenamento jurídico, e assim prescrevem tanto a Constituição Federal (art. 37, § 6º) como o Código Civil (art. 43), ainda que em termos não absolutamente iguais. A ação regressiva é medida judicial de rito ordinário, que propicia ao Estado reaver o que desembolsou à justa do patrimônio do agente causador direto do dano, que tenha agido com dolo ou culpa no desempenho das suas funções.

[...]

São requisitos dessa ação: a) a condenação da Administração Pública a indenizar, por ato lesivo de seu agente; b) o pagamento do valor da indenização; c) a conduta lesiva, dolosa ou culposa do agente causador do dano. Desse modo, se não houver pagamento, não há como justificar o pedido de regresso, mesmo que haja sentença condenatória com trânsito em julgado e o agente tenha-se conduzido com dolo ou culpa.

São estas as razões pelas quais entendemos que o regresso previsto no art. 37, § 6º, do CRFB, no “giusto processo”, não é comportado pela referida via de intervenção de terceiro.

Resta-nos enfrentar a assistência, que se divide em assistência simples e assistência litisconsorcial. Acerca do tema, comenta Barbi:

Espécies de assistência - Modernamente, distinguem-se dois tipos de assistência: a) simples, ou adesiva, que se verifica quando não está em litígio um direito do terceiro, mas ele tem interesse na vitória do assistido, porque ela pode beneficiar outro direito do assistente. Esse outro direito do assistente, porém, não está em discussão na causa. [...] b) qualificada, ou litisconsorcial, quando a intervenção do terceiro se justifica porque o direito em litígio é do assistido, mas também do assistente, o qual teria legitimação para discuti-lo sozinho, ou em litisconsórcio com outros co-titulares dele. [...] Como o terceiro nesse caso é também co-titular do direito em debate, e poderia litigar como parte inicialmente, dá-se a essa assistência o nome de litisconsorcial, e o assistente tem posição de litisconsorte.

Como já defendemos que não há co-titularidade entre o Estado e o agente estatal, já que isso foi fruto do sistema anterior de solidariedade presente nas Constituições de 1934 e 1937, entendemos que a única forma legítima de intervenção do agente estatal como um terceiro é por meio da assistência simples (adesiva).

O interesse jurídico, na espécie, se traduz quando, “entre o direito em litígio e o direito que o credor quer proteger com a vitória daquele, houver uma relação de conexão ou de dependência, de modo que a solução do litígio pode influir, favorável ou desfavoravelmente, sobre a posição jurídica de terceiro”. No caso, para além do interesse jurídico representado pela dependência que emerge a ação de regresso da condenação na ação indenizatória, há, também, um outro interesse de roupagem econômica mas que não perde a sua juridicidade.

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Referimo-nos à quantificação do título judicial que se está a formar, uma vez que é pelo valor pago pelo Estado que seguirá a ação de regresso.

Com efeito, a busca do “giusto processo” deve admitir a participação do agente estatal, por vontade própria, até mesmo para que contribua para a formação do título que, posteriormente, será contra si agido em regresso. O interesse do agente estatal também está na quantificação do dano, pois, reflexamente, arcará com aquilo que foi pago pelo Estado na ação indenizatória.

Como assevera Cretella Jr., 

Caracteriza-se o direito de regresso, por meio da propositura da denominada ação regressiva, ou seja, o direito subjetivo público do Estado de exigir do funcionário público a devolução (solve et repete) da quantia que ele, Estado, pagou adiantadamente ao particular, em casos de responsabilidade civil, ocasionada por ato danoso do agente público, nas hipóteses de dolo ou culpa, conforme o que preceituam os dispositivos constitucionais e leis federais pertinentes.

Atente-se que não é nem mais, nem menos do que o Estado pagou. Nem mais, para evitar enriquecimento sem causa pelo Estado; nem menos, para evitar que a sociedade como um todo arque com um ônus cuja legitimidade para saldá-lo está identificada na pessoa do agente causador do dano (com dolo e culpa).

No subitem seguinte escrevemos algumas linhas sobre uma proposta destinada a alcançar um processo dialogicamente adequado, que torne legítima a ação em regresso do Estado.

3.3 - Uma ideia de “lege ferenda” ante a insuficiência das modalidades de intervenção de terceiro previstas no CPC para o trato da relação jurídico-administrativa interna entre o Estado e o agente estatal causador do dano com dolo ou culpa

A abordagem das figuras de intervenção de terceiro, com base nos modelos previstos no CPC, revela sua insuficiência para o trato da matéria. Até chegar à conclusão de que a alternativa mais aceitável seria a assistência simples, levando em consideração a qualidade das partes envolvidas (solidariedade, litisconsórcio etc.), outras nuances devem ser destacadas, típicas da relação administrativa, que não são comportadas pelo ordenamento processual civil ordinário.

Com efeito, a assistência simples é tida como uma adesão voluntária do terceiro, o que deve ser visto cum grano salis na relação proveniente de uma ação indenizatória em face do Estado (unicamente em face do Estado, como defendemos). Isso porque nem sempre o agente estatal a que se atribui dolo ou culpa pelo dano tomará ciência do processo aforado, até porque, não sendo parte, não tem necessidade de ser citado para a angularização processual. 

Desta feita, um “giusto processo” que se propõe assegurar uma dimensão maior de contraditório e ampla defesa (art. 5º, LV, da CRFB), inclusive na relação interna entre o agente estatal e o Estado, pressupõe um mecanismo em que seja notificado o agente para, querendo, intervir no processo. O que fica difícil quando o CPC autoriza isso, por exemplo, apenas em caso de litisconsórcio, parágrafo único (e, dissemos, a figura do litisconsórcio na ideia de solidariedade não mais se admite).

Dado que ao magistrado incumbe conduzir o processo, não se lhe é permitido, em regra, interferir na abertura ou restrição do polo passivo, sob pena de malferimento ao princípio da congruência. O que nos parece possível é expedir uma notificação ao agente estatal que se imputa a prática de ato doloso ou culposo, tal como ocorre, por exemplo, na Lei do Mandado de Segurança (Lei n.º 12.016/2009), art. 7º, II, segundo o qual o juiz ordenará, ao despachar a inicial, que se dê ciência do feito ao órgão de representação judicial da pessoa jurídica interessada, enviando-lhe cópia da inicial sem documentos para que, querendo, ingresse no feito.

Talvez este seja um mecanismo que vá ao encontro da adesão voluntária do terceiro de que cuida a assistência simples e possa, sem comprometer o regular andamento do processo, a participação ativa do agente estatal, caso seja do seu interesse.

Um outro problema que exsurge do tratamento ordinário dado pelo CPC à figura da assistência é que o agente estatal receberia o processo no estado em que se encontre ao tempo do seu ingresso (art. 50, parágrafo único). Caso o curso esteja avançado nesta ocasião, com a produção probatória encerrada, por exemplo, pouco pode agir para contribuir de alguma forma, perdendo efetividade a sua participação e tolhendo a possibilidade de discutir o título judicial que se formará e baseará a ação de regresso.

Tomemos como base que a repartição a que presta as funções e onde se criou o dano a ser reparado simplesmente encaminhará “a conta”, na ação regressiva, ao servidor que tenha agido com dolo ou culpa. Neste caso, por óbvio o título de que falamos já transitou em julgado, pouco lhe restando fazer para quebrar a força da coisa julgada. Neste ponto, nos surgem dúvidas acerca da validade e aplicação do CPC, quando lista hipóteses em que o assistente poderá discutir a justiça da decisão, desde que e somente quando comprove que foi impedido de produzir provas suscetíveis de influir na sentença ou que desconhecia a existência de alegações ou de provas, de que o assistido (Estado), por dolo ou culpa, não se valeu.

A bem da verdade, o que idealizamos é que o agente estatal tenha oportunidade de participar de forma ativa e efetiva da ação indenizatória desde o princípio, recebendo notificação com cópia da petição inicial para, querendo, ingressar no feito e acompanhá-lo até o fim.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANCHOTENE, Danilo Gomes. Dupla garantia na responsabilidade civil do Estado: garantia em função do servidor ou do administrado?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5160, 17 ago. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/37322. Acesso em: 18 mai. 2024.

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