I. Considerações Iniciais
Sob o prisma constitucional, releva notar que o Estado Democrático de Direito gravita em torno do princípio da dignidade da pessoa humana e da centralidade dos direitos fundamentais, estando incluídos nos direitos fundamentais a liberdade, a igualdade e o mínimo existencial que devem ser realizados pelo Legislativo, Executivo e Judiciário na maior extensão possível, tendo como limite mínimo o núcleo essencial desses direitos.
A dignidade da pessoa humana, considerada como o centro do constitucionalismo moderno, quando relacionada com os Poderes Públicos, impõe que estes tracem sua atuação calcada por tal postulado, não praticando qualquer ato que importe na sua ofensa e interpretando toda e qualquer norma sem se descurar do homem enquanto núcleo do constitucionalismo. Dessa forma, dignidade da pessoa humana não significa somente autonomia da vontade, mas implica, sobretudo, respeito por todos e principalmente pelos entes estatais.
De outro vértice, o ordenamento jurídico pátrio, por meio de normas regulamentadoras de conduta e promoção de diversas políticas públicas, tem por objetivo garantir a paz social e possibilitar que os indivíduos vivam em uma sociedade organizada e pacífica. Contudo, caso algum membro deste agrupamento social venha a transgredir alguma dessas regras de conduta, o Estado, por meio do jus puniendi, poderá lhe aplicar uma sanção correspondente prevista nas leis codificadas. Em outras palavras, pune-se o mal com o mal.
Na esfera penal, o Estado impõe sanção penal (pena ou medida de segurança) e a executa, pressupondo assim uma atividade normativa criada pela lei, que também estabelece procedimentos e a atuação dos agentes públicos, bem como define os casos e condições para esta atuação, abarcando as atividades da polícia, dos juízes, promotores e servidores da execução penal.
Este formato de resolução de conflitos pode ser entendido como Justiça Retributiva (ou Justiça Tradicional), por meio da qual o Estado retribui o mal causado pelo agente infrator com a aplicação de castigos que, em sua maioria, restringem a liberdade do transgressor e são destinados a intimidar a sociedade e impedir o surgimento de novos delinquentes, objetivando, ainda, com a segregação, reintegrar o infrator ao convívio social.
Em países como Dinamarca, Suécia, Bélgica, Holanda, Alemanha, onde o capitalismo distributivo possibilita uma educação de qualidade a todos e uma excelente renda per capita, vigora a política de prevenção do crime e ainda conta com profícua autoridade da lei, caracterizando-se também pelas penas suaves, porém eficazes.
Já nos países da América Latina (incluído o Brasil), onde predomina o sistema do capitalismo selvagem, não há política de prevenção do crime e o império da lei é tímido, ou seja, nem se previne e nem se reprime de forma satisfatória, embora haja leis rigorosas e punições severas.
Percebe-se, assim, em termos práticos, que essa abordagem repressiva tem se mostrado insuficiente ou ineficiente para a resolução dos conflitos sociais, principalmente no combate ao consumo de drogas ilícitas, exigindo, assim, do Poder Público e da sociedade em geral, a adoção de medidas mais eficazes para o enfrentamento ou a redução dos danos causados pelas drogas ilícitas.
Neste raciocínio, a referida problemática merece ser esmiuçada de maneira ampla e por um enfoque humanista, de forma a prestigiar todas as partes afetadas por essa chaga social, homenageando, desta forma, o princípio da dignidade da pessoa humana.
II. Análise do Tema
Consabido que todos os conflitos sociais, inexoravelmente, deságuam no Judiciário, que cada vez mais é requestado pela sociedade, e, uma vez acionado, tem que dar uma resposta estatal, nos termos do art. 5º, XXXV, da Constituição Federal.
Com efeito, a problemática das drogas de uso ilícito é uma questão social que, infelizmente, aflige todo o País, constituindo-se, assim, uma questão de saúde, em que o Poder Judiciário, como Poder da República, cuja missão é a pacificação social, deve ter a sua participação na resolução desse problema, nos moldes do art. 196, caput, da Carta Magna, mas que não pode ser jamais considerado o único responsável pela questão.
Assim como o consumo de drogas lícitas como a bebida alcoólica e o cigarro, o uso de drogas foi considerado uma patologia psíquica, sendo, inclusive, catalogada na Classificação Internacional de Doenças (CID – 10/F19), tendo em vista que subtrai do adicto a capacidade de escolher entre continuar ou não usando a substância entorpecente, colocando-o em situação de total dependência física e psicológica.
O uso de entorpecentes tem se alastrado de tal forma que o que se vê hoje pela mídia, infelizmente, é uma espécie de “epidemia nacional” das chamadas “cracolândias” (o local em que viciados em crack compram e consomem a droga). Nestes locais, assim como em outros, pessoas de todas as idades consomem drogas em plena luz do dia em condições degradantes, deixando de lado a família, trabalho, amigos e até a própria dignidade, sendo vistos por parte da sociedade como irrecuperáveis.
Contudo, o sistema de Justiça Retributiva não tem se mostrado eficaz na solução de conflitos desta natureza, pois o encarceramento do adicto não trata as causas e nem as consequências do uso de entorpecentes, sendo necessária a adoção de práticas alternativas e coordenadas visando não somente o tratamento do usuário, mas também de todos aqueles que são atingidos pelo problema, buscando, através do diálogo e da cooperação, a restauração das relações sociais e a pacificação social.
Abandona-se, a partir daí, a visão retributiva do mal pelo mal, em favor de uma Justiça pós-moderna, que encara o conflito com o propósito de promover a verdadeira pacificação e não mais sob a mera roupagem de um tipo penal abstrato.
É neste ponto que entra em cena a Justiça Restaurativa, procedimento judicial alternativo que visa resolver os conflitos e as situações de violência de uma forma não punitiva, propiciando o encontro das pessoas afetadas direta e indiretamente, buscando trabalhar em uma lógica de corresponsabilidade entre o Estado e a sociedade, consistente na realização de ações coordenadas, no desenvolvimento de estratégias e no enfrentamento e superação dos problemas sociais advindos do tráfico e consumo de drogas ilícitas, tendo por meta a reinserção social do dependente químico da forma menos danosa possível a ele e à sua família.
Com efeito, as Leis n.º 6.368/76 e n.º 10.409/02, antigas Leis Antidrogas, previam apenas a pena privativa de liberdade ou a internação hospitalar compulsória, bem como não faziam distinção entre usuário ou dependente químico e o traficante, ou seja, estes eram tratados de igual forma, dificultando sobremaneira o tratamento dos dependentes e a sua reinserção junto à família e à sociedade, por conta do estigma que essas normas lhes impunham.
Todavia, o governo instituiu, no ano de 2005, a Política Nacional sobre Drogas (PNAD), que estabeleceu os fundamentos, os objetivos, as diretrizes e as estratégias indispensáveis para que os esforços voltados à redução da demanda e da oferta de drogas pudessem ser conduzidos de maneira planejada e articulada, implantando no País uma nova forma de combate às drogas, fundada na democracia participativa.
Outro importante avanço foi o advento da Lei n.º 11.343/06, a atual Lei Antidrogas, que instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD); reconheceu a diferença entre a figura do usuário/dependente e o traficante, estabelecendo assim tratamento diferenciado; prescreveu medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social dos usuários e dependentes de drogas; e o correto afastamento de qualquer possibilidade de encarceramento, optando pela aplicação de medidas preventivas e com potencial restaurativo, como a advertência, a medida educativa de comparecimento a programa e ou curso educativo e prestação de serviços, voltando a sua atenção à reinserção social do usuário (art. 28, incisos I a III).
De outra banda, é oportuno consignar que a Lei n.º 10.216/01, conhecida como “Lei da Reforma Psiquiátrica”, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais de qualquer natureza, possibilita ao paciente o tratamento por meio de internação psiquiátrica mediante laudo médico, podendo ser de três formas: voluntária, aquela que se dá com a aquiescência do usuário; involuntária, quando se dá sem a anuência do usuário e a pedido de terceiro (geralmente pessoa da família); ou compulsória, quando determinada pela Justiça, uma vez provocada.
Já com referência à recuperação de menores, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n.º 8.069/90), em seu art. 101, elenca uma série de medidas para o tratamento do menor, como por exemplo, no inciso IV, que prevê a inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente.
Nesse compasso, sensível também a estas mudanças, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou a Resolução n.º 101/09, inspirada na necessidade de uniformizar e implementar práticas e políticas para o favorecimento da aplicação de penas e medidas alternativas à prisão, mediante amparo psicossocial, e criação de varas especializadas e centrais de acompanhamento.
Ainda, no dia 22/05/13, foi aprovado na Câmara dos Deputados e remetido ao Senado Federal em 04/06/13, o Projeto de Lei n.º 7.663/10, de autoria do Deputado Osmar Terra, que dispõe sobre várias alterações na Lei n.º 11.343/06, entre elas a previsão, em seu art. 23-A, da possiblidade de internação compulsória, nos moldes já previstos em lei, o que tem causado várias manifestações em todo o País.
Percebe-se, assim, uma salutar mudança de atitude não só no âmbito legislativo, mas também no âmago da sociedade, que passou a enxergar o problema das drogas não só como sendo exclusivo do Estado, mas sim de toda a comunidade, já que somente a atuação repressiva legal pelo Estado não se mostra suficiente para a resolução dos conflitos sociais nessa seara, na medida em que o direito precisa acompanhar a evolução e os anseios da sociedade, para assim tornar concreto o verdadeiro ideal de justiça e pacificação social.
III. Considerações Finais
O Estado Democrático de Direito é uma evolução humana e uma garantia de sobrevivência do homem, o qual garante a cada integrante da sociedade uma vasta gama de princípios e direitos constitucionalmente tutelados, que gravitam em torno do princípio da dignidade da pessoa humana.
Na busca de um sistema de justiça ideal, não se pode mais negligenciar as emoções, sentimentos e necessidades daqueles que dela necessitam. Ao revés disso, a pessoa humana deve ser, portanto, protegida com primazia na sua vida, no seu corpo, na sua liberdade, na sua dignidade, na sua segurança e na sua relação com o meio ambiente.
Neste rumo, o problema das drogas pode causar danos emocionais, morais e materiais e várias são as causas que podem levar alguém a este triste caminho. Pensando nisso é que os tribunais têm implementado em suas unidades judiciárias a Justiça Restaurativa, que tem por missão imprimir uma nova abordagem para esta questão, possibilitando um referencial paradigmático na humanização e pacificação das relações sociais envolvidas no conflito.
Assim, não se revela mais suficiente ao Estado, no exercício do jus puniendi, simplesmente encarcerar o usuário ou dependente de drogas no intuito de reinseri-lo à sociedade. É preciso que sejam envidados esforços de todos os setores da sociedade, no sentido de conscientizar as pessoas dos efeitos nefastos do uso de drogas ilícitas, bem como para destacar a importância da família no processo de recuperação e reinserção do dependente químico na sociedade, apostando assim na prevenção ou numa solução menos danosa para as partes envolvidas no problema.
A atual Lei Antidrogas e as soluções legais apresentadas para os usuários passam necessariamente pelo conceito de interdisciplinaridade e pela prática da Justiça Restaurativa – uma justiça humanitária e de pacificação preocupada com a reinserção social do usuário/dependente –, não podendo se preocupar o juiz criminal só em pôr termo ao processo, mas sim, buscar efetivamente solucionar a questão subjacente, o conflito, o problema, de maneira cooperativa e integrada.
Nesse novo milênio, onde é crescente a judicialização de temas diversos e o Poder Judiciário é cada vez mais buscado e, consequentemente, sobrecarregado, mister se faz o rompimento de paradigmas onde o magistrado tem que cada vez mais estar familiarizado com técnicas de gestão judiciária e de solução de conflitos, havendo a necessidade, por exemplo, de o juiz da infância e juventude (e até de Vara Criminal) sair de seu gabinete e dialogar com a sociedade em uma postura proativa, desenvolvendo projetos e práticas restaurativas que visem à conscientização dos jovens e das famílias quanto às consequências nefastas do uso de drogas ilícitas, aproximando o Poder Judiciário da comunidade e buscando preservar os direitos fundamentais constitucionalmente consagrados.
A partir daí, com novas posturas, cremos que o Poder Judiciário nacional, com seus 91 tribunais, poderá fazer frente a essa avassaladora e crescente demanda pós-Constituição de 1988, ao menos no tocante ao combate às drogas ilícitas e à reinserção social de dependentes químicos – cujo número de processos cresce drasticamente a cada alvorecer –, prestando à população um serviço estatal eficiente e, sobretudo, efetivo, com a pacificação social.
IV. Referências
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