RESUMO: O presente artigo objetiva promover um enfoque do Estatuto de Roma, que instituiu o TPI, de modo a investigar qual a hierarquia normativa do ingresso desse Estatuto em relação à Constituição Federal brasileira de 1988. Para a plena compreensão da gênese e princípios do TPI imperioso se faz um retorno aos seus precedentes jurídicos, através do estudo da evolução dos Tribunais Penais Internacionais até a instituição e funcionamento efetivo da Corte Penal Internacional (CPI) – International Criminal Court (ICC). Por derradeiro, a presente abordagem trata da ratificação do Estatuto de Roma pelo Brasil e seu ingresso no ordenamento jurídico brasileiro, procedendo-se uma análise da classificação hierárquica dos tratados internacionais que versam sobre direitos humanos aprovados por quorum comum (e não qualificado, para que seja equiparado às emendas constitucionais), como é o TPI, perante a ordem jurídica brasileira. Por fim, conclui-se que, por cuidar-se de tratado internacional de direitos humanos ratificado anteriormente à previsão de quorum qualificado previsto no art. 5º, § 3º, da CF/88 (quorum de três quintos em dupla votação nas duas Casas legislativas), o Estatuto de Roma integrou-se ao Direito brasileiro com hierarquia infraconstitucional, mas status supralegal (situando-se em grau superior às leis ordinárias, porém em grau inferior à Constituição). Logo, situa-se no patamar inferior à Constituição, todavia superior a toda a legislação infraconstitucional, possuindo, assim, status normativo supralegal.
Palavras-chave: Tribunal Penal Internacional. Estatuto de Roma. Direito Penal Internacional. Tratados Internacionais de Direitos Humanos. Constituição Federal.
INTRODUÇÃO
O estudo do TPI trilha o mesmo caminho da História da humanidade, estando intrinsecamente aliado às incontáveis violações de direitos humanos por ela sofridos ao longo dessa caminhada.
Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial e, sobretudo, por ocasião do seu término, a comunidade internacional saltou etapas e, invertendo a lógica da destruição, começou a repensar a noção de soberania nacional absoluta de outrora para construir um arraigado conceito de soberania, assentado no princípio da dignidade humana, com vistas à reconstrução. Assim, diante desses prenúncios, planta-se a semente para que o ser humano adquira o direito a ter direitos, tornando-se sujeito de direitos e deveres no plano internacional. A partir desse momento haveria o estabelecimento da responsabilidade internacional pessoal.
A princípio a aplicação da responsabilidade penal individual encontrou um óbice na inexistência de órgãos internacionais que aplicassem as normas de Direito Penal em âmbito internacional. A partir daí, a idéia da instituição de uma jurisdição internacional passou a afigurar como um dos temas mais instigantes da humanidade.
A verdade é que naquele momento a instituição de um tribunal permanente que venha a julgar e punir os mais terríveis crimes praticados contra a humanidade e que, desta forma desestimule ações do mesmo tipo por outros criminosos, de modo a atacar as violações frontais aos direitos humanos em termos repressivos (condenando os culpados) e preventivos (inibindo a tentativa de repetição dos crimes cometidos) representava, antes de tudo, um dever para com as vítimas e futuras gerações.
Esse processo, posteriormente a uma longa gestação, culminou com a criação do Estatuto de Roma e estabelecimento do TPI.
Entretanto, haja vista que foi ratificado no período anterior ao advento da Emenda Constitucional nº. 45/04 e consequente inclusão do § 3º ao art. 5º da CF/88, o qual prevê o quorum qualificado para a aprovação dos tratados internacionais de direitos humanos, com o escopo de que sejam eles equiparados a texto constitucional, esse comprometimento solenemente estabelecido ingressou no ordenamento jurídico brasileiro com qual hierarquia normativa?
Sendo o cerne do tema que se propõe a ser tratado o liame estabelecido entre o Estatuto de Roma do TPI e a Constituição Federal brasileira de 1988, é sobre essa problemática que se debruçará o estudo a ser desenvolvido no presente artigo científico.
1. A TRAJETÓRIA DA CONCEPÇÃO DE UM TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL: O CAMINHAR DE UMA IDEIA
A ideia de conceber uma jurisdição penal internacional não é recente. A trajetória da concepção de um Tribunal Penal Internacional trilhou um longo caminho. Enfim, foi uma longa gestação até que viesse a gênese do TPI.
1.1 Do surgimento dos Tribunais Militares aos Tribunais ad hoc no século XX: A evolução histórica dos Tribunais
São precedentes históricos do TPI:
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Tribunal de Leipzig;
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Tribunal Militar Internacional de Nuremberg;
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Tribunal Militar Internacional para o Extremo Oriente;
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TPI ad hoc para a Bósnia ou extinta Iugoslávia; e,
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TPI ad hoc para Ruanda.
2. O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL
Extirpando-se a prática de tribunais ad hoc, vem a lume o Tribunal Penal Internacional. No ano de 2002 surgiu a primeira Corte internacional permanente com jurisdição sobre pessoas acusadas de cometerem graves violações aos direitos humanos: o TPI, criado pelo Estatuto de Roma.[1]
No ano de 2002, durante a Conferência Diplomática dos Plenipotenciários[2] das Nações Unidas, o Estatuto de Roma (também conhecido como Tratado de Roma ou, ainda, Convenção de Roma) do Tribunal Penal Internacional foi afinal aprovado por cento e vinte Estados, em 17 de julho de 1998, contra apenas sete votos – China, Estados Unidos, Iêmen, Iraque, Israel, Líbia e Quatar – e vinte e uma abstenções, notadamente a da Índia.[3]
Nas palavras da ilustre Piovesan (2008, p. 223-224):
Surge o Tribunal Penal Internacional como aparato complementar às cortes nacionais, com o objetivo de assegurar o fim da impunidade para os mais graves crimes internacionais, considerando que, por vezes, na ocorrência de tais crimes, as instituições nacionais se mostram falhas ou omissas na realização da justiça. Afirma-se, desse modo, a responsabilidade primária do Estado com relação ao julgamento de violações de direitos humanos, tendo a comunidade internacional a responsabilidade subsidiária. Vale dizer, a jurisdição do Tribunal Internacional é adicional e complementar à do Estado, ficando, pois, condicionada à incapacidade ou à omissão do sistema judicial interno. O Estado tem, assim, o dever de exercer sua jurisdição penal contra os responsáveis por crimes internacionais, tendo a comunidade internacional a responsabilidade subsidiária.
Como enuncia o art. 1º do Estatuto de Roma, a jurisdição do Tribunal é adicional e complementar à do Estado, ficando condicionada à incapacidade ou à omissão do sistema judicial interno.
Dessa forma, o Estatuto busca equacionar a garantia do direito à justiça, o fim da impunidade e a soberania do Estado, à luz do princípio da complementaridade e do princípio da cooperação.
A Corte Penal Internacional (CPI), também conhecida como Tribunal Penal Internacional (TPI) – International Criminal Court (ICC)–, instituição dotada de personalidade jurídica própria, passou a existir juridicamente a partir da data de 1º de julho de 2002 – quatro anos depois da adoção do Estatuto de Roma, que previu a sua criação –, mas seu funcionamento efetivo apenas iniciara em maio de 2003.
Segundo o Estatuto de Roma, o Tribunal Penal Internacional é uma pessoa jurídica de Direito Internacional com capacidade necessária para o desempenho de suas funções e de seus objetivos. O Tribunal poderá exercer os seus poderes e funções nos termos do seu Estatuto, no território de qualquer Estado parte e, por acordo especial, no território de qualquer outro Estado (art. 4º, §§ 1º e 2º).[4]
O TPI trata-se da primeira instituição global permanente, universal e imparcial de justiça penal da História da humanidade, dotada de princípios previamente definidos, em contraponto aos tribunais ad hoc que o precederam, instituída para investigar, processar e julgar os acusados pela prática de crimes que desafiam a imaginação, violam a ordem internacional como um todo e que ultrajam profundamente a consciência da humanidade, a exemplo do genocídio, dos crimes contra a humanidade, dos crimes de guerra e do crime de agressão.
3. O INGRESSO DO TPI NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
3.1 A ratificação
O Estatuto de Roma que cria o Tribunal Penal Internacional foi aprovado em 17.07.1998. O Brasil assinou o aludido estatuto em 07.02.2000 e o Congresso Nacional o aprovou, por meio do Decreto Legislativo n. 112, em 06.06.2002, tendo sido promulgado em 26.09.2002, pelo Decreto presidencial n. 4.388. A carta de ratificação fora depositada em 20.06.2002, entrando em vigor em 1º.07.2002. Para o Brasil, internacionalmente, nos termos de seu art. 126, passou a vigorar em 1º de setembro de 2002. [5]
A partir desse momento o Brasil, que foi um dos signatários originais do Estatuto, passa a fazer parte da jurisdição do TPI, em cumprimento ao disposto no art. 7º do ADCT.
3.2 Hierarquia normativa do Tratado de Roma
Segundo Hildebrando Accioly: “Por tratado entende-se o ato jurídico por meio do qual se manifesta o acordo de vontade entre duas ou mais pessoas internacionais”.[6]
Nos termos da Convenção de Viena, tratado internacional consiste em “um acordo internacional concluído por escrito entre Estados e regido pelo direto internacional [...] qualquer que seja a denominação especificada.”[7]
Em suma, trata-se de todo acordo internacional, bilateral ou multilateral, por escrito, entre sujeitos de direito internacional público.
No que se refere à hierarquia dos tratados internacionais de direitos humanos adotados anteriormente à Constituição Federal de 1988, a posição consolidada pelo STF no Recurso Extraordinário 80.004-SE/77, Relator Ministro Cunha Peixoto, julgado em 01º de Junho de 1977[8], de modo a não pairar dúvidas, foi no sentido de que eles se equiparam hierarquicamente às leis ordinárias.
Esse entendimento foi reiterado pelo STF mesmo após a promulgação da Constituição de 1988 (STF HC 72.131-RJ, ADIn 1.480-3-DF, ADIn 1.347-DF etc.). Neste passo, não pairavam dúvidas de que os tratados internacionais em geral possuem paridade normativa com as leis ordinárias, isto é, possuem status de norma ordinária.
Por sua vez, com o advento da Emenda Constitucional nº. 45/04 (Reforma do Judiciário), que acrescentara ao art. 5º da CF/88 os §§ 3º e 4º, observa-se que a inserção dos referidos parágrafos permite aos tratados ou convenções internacionais sobre direitos humanos desde que aprovados com quorum qualificado – equivalente ao exigido para as emendas constitucionais – serem equiparados às emendas constitucionais, ou seja, concede-lhes status de norma constitucional.[9]
Por outro lado, no que tange ao nível hierárquico dos tratados internacionais de direitos humanos vigentes no Brasil, mas não aprovados pelo quorum qualificado previsto no art. 5º, § 3º, da CF/88 (quorum de três quintos em dupla votação nas duas Casas legislativas) ainda pairam muitas discussões.
Para Piovesan (2008, p. 72-73):
Observa-se que os tratados de proteção dos direitos humanos ratificados anteriormente à Emenda Constitucional nº. 45/04 contaram com ampla maioria na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, excedendo, inclusive, o quorum dos três quintos dos membros em cada Casa. Todavia, não foram aprovados por dois turnos de votação, mas em um turno único de votação em cada Casa, uma vez que o procedimento de dois turnos não era tampouco previsto.
Reitera-se que, por força do art. 5º, § 2º, todos os tratados de direitos humanos, independentemente do quorum de sua aprovação, são materialmente constitucionais, compondo bloco de constitucionalidade.
[...] tratados internacionais de direitos humanos ratificados anteriormente ao § 3º do art. 5º da CF têm hierarquia constitucional, situando-se como normas material e formalmente constitucionais.
Deste modo, a ilustre doutrinadora entende que os tratados internacionais de direitos humanos ratificados anteriormente ao advento da Emenda Constitucional nº. 45/04 e da consequente inserção do § 3º do art. 5º da CF/88 e, que, por isso, não foi aprovado segundo o procedimento contemplado no dispositivo em comento (votação de três quintos, em dois turnos em cada Casa legislativa) será atribuída a hierarquia de materialmente constitucionais, por força do disposto no § 2º do art. 5º da CF/88. Desta feita, esses tratados apresentam como traço distintivo, em relação aos tratados aprovados de acordo com o procedimento determinado pela Emenda Constitucional nº. 45/04, no tocante ao fato de que, por serem materialmente constitucionais, são suscetíveis de denúncia (ato unilateral pelo qual um Estado se retira de um tratado), enquanto estes últimos (que são submetidos ao quorum qualificado) não são passíveis de serem denunciados. Destarte, conclui ela, que a Emenda Constitucional nº. 45/04 visa conceder maior segurança jurídica ao cumprimento das normas tanto no âmbito interno, quanto no âmbito internacional.
Partidário da mesma tese, Mazzuoli (2005, p. 53) leciona que “[...] o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional integrou-se ao direito brasileiro com status de norma constitucional, não podendo quaisquer dos direitos e garantias nele constantes serem abolidos por qualquer meio no Brasil, inclusive por emenda constitucional.”
Na mesma esteira, continua o renomado doutrinador (MAZZUOLI, 2009):
Há muitos anos defendemos que os tratados internacionais de direitos humanos incorporados à ordem jurídica brasileira têm status de norma constitucional, independentemente de maioria aprobatória no Congresso Nacional, pelo simples fato de entendermos que tais instrumentos têm um fundamento ético que ultrapassa qualquer faculdade que queira o Estado ter (em seu domínio reservado) de alocá-los em "níveis" previamente definidos. Daí termos sempre entendido que o único "nível" que poderia ter um instrumento internacional dessa natureza (ou seja, que veicula normas de direitos humanos) era o nível das normas constitucionais, exatamente por serem estas últimas as que mais altas se encontram dentro da escala hierárquica da ordem jurídica interna.
Para o internacionalista Valério de Oliveira Mazzuoli, todos os tratados internacionais que versem sobre direitos humanos em vigor, ratificados pelo Estado brasileiro, possuem nível de normas constitucionais, quer seja uma hierarquia somente material (denominada de “status de norma constitucional”) – como defendido com brilhantismo por Flávia Piovesan –, quer seja tal hierarquia material e formal (nomeada de “equivalência de emenda constitucional”). Não importa o quorum de aprovação do tratado, cuidando-se documento relacionado com os direitos humanos todos possuem status de norma constitucional, com fundamento no art. 5º, § 2º da CF/88. Logo, para esse respeitado doutrinador, independentemente da maioria aprobatória no Congresso Nacional, todos os tratados de direitos humanos incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro são materialmente constitucionais e, quando aprovados por quorum qualificado, são formal e materialmente constitucionais.[10]
Corroborando com os argumentos alhures, a respeitada representante brasileira no TPI até março de 2012, Steiner (2000, p. 86 apud ROSA, 2011, p.55) assevera que:
[...] no direito brasileiro também não vemos espaço para controvérsias, posto que o parágrafo 2º, artigo 5º da CF/88, nos parece claro na determinação desta inserção no rol dos direitos e garantias previstos no seu próprio corpo, das normas internacionais de proteção aos direitos fundamentais. A incorporação pelo texto constitucional dessas normas internacionais é inequívoca.
E, por fim, assenta (Ibid., 2000, p. 90 apud Murilo Martinez e Silva, 2010) que:
[...] temos por certo possuírem as normas de proteção aos direitos do homem, formalmente, status diferenciado dentro do ordenamento jurídico interno brasileiro, eis que expressamente incorporadas ao rol de direitos e garantias fundamentais previsto na Constituição Federal, nos exatos termos do art. 5.º, §2.º, da Lei Maior. Ainda que não estivesse expresso o dispositivo, prevaleceria o entendimento de serem, as normas de proteção aos direitos humanos, normas materialmente constitucionais, e, portanto, oponíveis às da legislação infraconstitucionais.
Conforme demonstrado, lições ministradas com brilhantismo por um competente setor doutrinário (Flávia Piovesan, Valério Mazzuoli, Sylvia Steiner, Antônio Augusto Cançado Trindade, Ada Pelegrini Grinover etc) sustenta a tese de que os tratados de direitos humanos não aprovados pela maioria qualificada do art. 5º, § 3º da CF/88, contariam com status de norma materialmente constitucional, por força do art. 5º, § 2º da CF/88. Essa tese sobre o nível materialmente constitucional dos tratados de direitos humanos independentemente do quorum de aprovação congressual, aliás, foi acolhida pelo Ministro Celso de Mello que, após rever seu posicionamento anteriormente partidário à tese da supralegalidade, adotou-a, passando a defendê-la, como o fez no julgamento do HC 87.585-TO. [11]
Para esse competente setor doutrinário (GOMES; MAZZUOLI, 2007, p. 03):
o quorum que §3º do art.5º da CF/88 estabelece serve tão-somente para atribuir eficácia formal a esses tratados no nosso ordenamento jurídico interno, e não para atribuir-lhes a índole e o nível materialmente constitucionais que eles já têm em virtude do §2.º do art. 5.º.
Destarte, para os defensores dessa tese, a forma solene elencada pelo §3º serviu apenas para atribuir eficácia formal a esses tratados que já se revestiam de eficácia material conferida pelo §2º. Nesta toada, as normas que tutelam direitos humanos consubstanciam direitos fundamentais (posto que estes se encontram compreendidos naqueles), constituindo, portanto, normas constitucionais materiais, razão pela qual são dotadas de força constitucional.
Há quem defenda que os tratados de direitos humanos possuem nível supraconstitucional. No Brasil, a tese da supraconstitucionalidade dos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos foi defendida pelo saudoso Prof. Celso Duvivier de Albuquerque Mello, que se dizia "ainda mais radical no sentido de que a norma internacional prevalece sobre a norma constitucional, mesmo naquele caso em que uma norma constitucional posterior tente revogar uma norma internacional constitucionalizada".[12]
Outros, ainda concebem o Estatuto de Roma do TPI como um tratado centrífugo, que conta com natureza supraconstitucional (ou seja: de índole superior à própria Constituição Federal). Esse nível hierárquico de tratado se caracteriza por reger as relações jurídicas dos Estados ou dos indivíduos com a chamada jurisdição global (Justiça global).
Na concepção de Gomes e Mazzuoli (2009, p. 16):
São nominados de centrífugos exatamente porque são tratados que saem (ou fogem) do centro, ou seja, do comum, do normal e também porque retiram o sujeito ou o Estado do seu centro, isto é, do seu território, da sua região planetária, dos limites de sua jurisdição doméstica. Tratados ou normas centrífugos são os que conduzem o Estado ou o sujeito a um órgão jurisdicional global (não estamos falando dos órgãos regionais: Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Corte Interamericana etc., mas sim - repita-se - de um organismo da esfera global). Nesse patamar jurisdicional global contamos com vários órgãos supranacionais relevantes, destacando-se especialmente a Corte Internacional de Justiça (da ONU, reinstituída em 1945), o Tribunal Penal Internacional (criado pelo Estatuto de Roma de 1998 e que entrou em vigor em julho de 2002) e os Tribunais ad hoc das Nações Unidas.
Para os defensores dessa tese, esses tratados ou normas (centrífugos) naturalmente possuem o status supraconstitucional, precisamente porque regem relações do Estado ou do indivíduo com os órgãos da Justiça global. Partindo dessa concepção, conclui-se que não há que se falar em conflito entre tratado e a Constituição Federal brasileira, já que aquele se sobrepuja a esta.
Assim, do ponto de vista dessa corrente, que conta com o apoio de Gomes e Mazzuoli (Ibid, p. 16/17):
Não seria possível (e tampouco jurídico) entender que um instrumento internacional como o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional devesse se submeter às regras constitucionais dos seus respectivos Estados-partes. Quando um Estado assume compromissos mútuos em convenções internacionais de caráter centrífugo ele auto-restringe sua soberania em prol da proteção da humanidade como um todo. Esse interesse global é sempre supraconstitucional por compor-se de valores que não se submetem a qualquer ato estatal.
Atualmente, em razão da EC nº. 45/2004, existe uma vertente – a qual encontra nos doutrinadores Dimoulis e Martins (2007 apud CARVALHO, 2011, p. 107/108), bem como em Alexandre de Moraes, seus principais defensores – que propugna pela existência de duas categorias de tratados internacionais, caso incorporem ao Direito brasileiro normas de direitos humanos, senão vejamos:
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equivalentes às emendas constitucionais: Se aprovados pelo quorum previsto no § 3º, do art. 5º, da CF/88. Integram o bloco de constitucionalidade, submetendo-se à exigência de respeitar as cláusulas pétreas. Apenas podendo ser modificados ou retirados do ordenamento mediante emenda constitucional posterior. Em virtude de sua constitucionalização, tais tratados não admitem emenda constitucional tendente a abolir normas nele presentes, por isso petrificadas; e,
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força jurídica de lei ordinária se aprovados por maioria simples do Congresso Nacional, os quais podem ser derrogados ou ab-rogados mediante lei posterior. Pertencem a essa categoria todos os tratados internacionais aprovados antes da entrada em vigor da EC 45/2004.
No entanto, vinte anos após a promulgação da Lei Maior, impelido a se manifestar, o STF, órgão de cúpula do Poder Judiciário a quem compete a guarda da Constituição, no RE nº. 466.343-1/SP[13], julgado em 03 de dezembro de 2008, reformulou o entendimento acerca da hierarquia dos tratados internacionais de direitos humanos não aprovados consoante a sistemática do art. 5º, §3º da CF/88. Adotou-se, por maioria (cinco votos a quatro), a tese defendida pelo Ministro Gilmar Mendes, segundo a qual, tratados internacionais de direitos humanos ratificados anteriormente à previsão de quorum qualificado “seriam infraconstitucionais, porém, diante de seu caráter especial em relação aos demais atos normativos internacionais, também seriam dotados de um atributo de supralegalidade”.[14] Enfim, gozam de hierarquia infraconstitucional, mas status supralegal.
De acordo com o voto proferido pelo Ministro Gilmar Mendes, tais tratados internacionais de direitos humanos (quando não aprovados conforme o procedimento contemplado pelo § 3º do art. 5º da CF/88) conta com status normativo supralegal (situando-se em grau superior às leis ordinárias, porém em grau inferior à Constituição).
Esse entendimento é explicado por Piovesan (2008, p. 71):
Esse entendimento consagra a hierarquia infraconstitucional, mas infralegal, dos tratados internacionais de direitos humanos, distinguindo-os dos tratados tradicionais. Divorcia-se, dessa forma, da tese majoritária do STF a respeito da paridade entre tratados internacionais e leis federais.
A adoção da tese da supralegalidade implica dizer que os tratados internacionais de direitos humanos em comento, embora não tenham o condão de serem equiparados às normas constitucionais – o qual é conferido ao Poder Constituinte Derivado, mediante a criação de emendas constitucionais – estão em uma hierarquia superior às demais leis encontradas no ordenamento jurídico pátrio.
Segundo o magistério dos retrorreferidos juristas, ante a seu inequívoco caráter especial, torna-se facilmente compreensível a internalização desses tratados internacionais que tutelam a proteção dos direitos humanos no ordenamento jurídico, por meio do procedimento de ratificação previsto na Constituição, o qual “tem o condão de paralisar a eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional com ela conflitante. Tendo em vista o caráter supralegal desses diplomas normativos internacionais, a legislação infraconstitucional posterior que com eles seja conflitante também tem sua eficácia paralisada.”[15]
Oportuno declinar que os defensores da aludida corrente doutrinária aduzem que nada impede o legislador constitucional de submeter os tratados de direitos humanos, para eles dotados de caráter infraconstitucional e status supralegal, ao procedimento especial de aprovação previsto no art. 5º, § 3º, da Constituição, tal como definido pela EC nº. 45/2004, conferindo-lhes status de emenda constitucional, o que os tornaria formalmente constitucionais.
Nesta toada, o STF tornou indubitável que o Estatuto de Roma integrou-se ao Direito brasileiro com hierarquia infraconstitucional, mas status supralegal (situando-se em grau superior às leis ordinárias, porém em grau inferior à Constituição). Tendo em vista que se incorporou ao ordenamento jurídico brasileiro no período anterior à introdução da Emenda Constitucional nº. 45/04, razão pela qual não foi submetido ao mesmo quorum de votação das emendas constitucionais para sua aprovação (quorum de três quintos em dupla votação nas duas Casas legislativas), o Estatuto de Roma não constitui bloco de constitucionalidade. Destarte, a mencionada decisão proferida pela Suprema Corte deixou assente que o Tratado de Roma situa-se em patamar inferior à Constituição, todavia superior a toda a legislação infraconstitucional, possuindo, assim, status normativo supralegal.
CONCLUSÃO
A jurisdição penal internacional trilhou um longo caminho até que viesse a lume o TPI.
Várias foram as tentativas engendradas nesse sentido até que houvesse o estabelecimento efetivo da primeira Corte de Justiça Penal Internacional permanente, independente e imparcial.
Em pouco mais de uma década de existência o TPI se tornou um importante mecanismo de garantia contra as violações de direitos humanos.
Ao TPI ainda resta muito a fazer, bem como – e sobretudo – inúmeras resistências a romper, conforme adiante esclarecido.
A primeira delas diz respeito à soberania dos Estados-membros. Aliás, essa é a principal razão para a recusa por parte dos Estados em ratificar ao Estatuto de Roma. De fato, reconhecer suas limitações, de modo a abrir mão de parte de sua soberania, é algo de sobremaneira comprometedor para um Estado, o que tem feito com que muitos Estados não reconheçam o TPI (Os Estados Unidos, por exemplo, já declararam abertamente que não pretendem fazer parte do TPI).
Tendo em vista que o Tratado de Roma foi ratificado anteriormente ao advento da Emenda Constitucional nº. 45/2004, responsável por incluir o § 3º ao art. 5º da CF/88, tem sido alvo de divergências no âmbito doutrinário brasileiro, notadamente no que se refere à sua hierarquia normativa após a devida incorporação.
O referido dispositivo prevê o quorum qualificado para a aprovação dos tratados internacionais de direitos humanos, com o escopo de que sejam eles equiparados a texto constitucional. Uma vez aprovado consoante a sistemática prescrita no § 3º do art. 5º da Lei Maior, o tratado internacional que verse sobre direitos humanos adquirirá o caráter de bloco de constitucionalidade.
Uma vez superada a análise dos posicionamentos acerca da hierarquia normativa dos tratados que incorporam direitos humanos ao Direito brasileiro, nada obstante se afigure como mais acertado o entendimento defendido por um competente (e majoritário) setor da doutrina, segundo o qual sejam eles materialmente constitucionais, haja vista a abertura material estabelecida no § 2º do art. 5º, da CF/88, foi prolatada a decisão (histórica) do STF, no julgamento do RE nº. 466.343-1/SP, para o qual tais tratados são desprovidos de índole constitucional com fundamento no § 3.º do artigo 5.º da CF/88. De acordo com o referido julgado, a classificação hierárquica dos tratados e convenções internacionais no ordenamento jurídico brasileiro passou a ser a seguinte:
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tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos aprovados com quorum qualificado pelo Congresso Nacional – equiparam-se à Emenda Constitucional (status constitucional);
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tratados de direitos humanos não aprovados com quorum qualificado – status supralegal;
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tratados e convenções comuns (que não versam sobre direitos humanos) – status de lei ordinária;
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tratados sobre direito tributário – status de lei ordinária (tese da equiparação ou paridade normativa com as leis ordinárias).