O presente artigo versa sobre questão tormentosa que tem sido debatida na jurisprudência e na doutrina sobre a obrigação (ou não) do segurado vinculado ao Regime Geral de Previdência Social ou servidor público vinculado a Regimes Próprios de Previdência Social de devolverem verbas previdenciárias recebidas por força de decisões judiciais de antecipação de tutela que foram posteriormente revogadas pelo Poder Judiciário.
Antes de adentrar na análise da questão principal, a jurisprudência é pacífica no sentido de desobrigar o segurado a devolver benefícios previdenciários que foram recebidos em razão de erros praticados pela Administração Pública.
O INSS, nos termos do 103-A da Lei n. 8.213/91, tem o direito de anular os atos administrativos que decorram efeitos favoráveis para os seus beneficiários no prazo de dez anos, salvo comprovada má-fé. Já os demais órgãos da Administração Pública Federal têm o prazo de cinco anos para proceder à anulação dos atos administrativos eivados de vício de legalidade (art. 54 da Lei n. 9.784/99).
Essa prerrogativa decorre do instituto da autotutela pelo qual a Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos, ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos e ressalvada a apreciação judicial (Súmula 473 do STF).
Na revisão de seus atos, contudo, deve a Administração Pública assegurar o devido processo legal, com garantia ao contraditório e à ampla defesa, previstos no artigo 5º, incisos LIV e LV , da Constituição Federal.
Especificamente no tocante ao Regime Geral de Previdência Social, a Lei n. 10.666/03 preceitua, em seu §1º do art. 11, que o INSS, ao constatar indício de irregularidade na concessão ou na manutenção de benefício, notificará o beneficiário para apresentar defesa, provas ou documentos de que dispuser, no prazo de dez dias. Eventual cancelamento ou diminuição do benefício previdenciário somente poderá ser realizado após ter sido considerada insubsistente a defesa administrativa apresentada pelo segurado. Na mesma linha é o disposto na Súmula 160 do extinto Tribunal Federal de Recursos.
Não obstante a previsão constante no art. 115, inciso II, da Lei n. 8.213/91 que autoriza o INSS a descontar dos benefícios pagamentos além do devido, bem como a previsão ilegal constante do §3º do art. 154 do Decreto 3.048/99, estipulando o direito de o INSS cobrar os atrasados em função de erro da Administração Pública, o entendimento uníssono do Poder Judiciário é no sentido de que a verba tem caráter irrepetível.
Citem-se os seguintes julgados proferidos pelo STJ em relação aos segurados do INSS e servidores públicos efetivos:
PREVIDENCIÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PENSÃO POR MORTE. PAGAMENTO INDEVIDO. BOA-FÉ. ERRO DA ADMINISTRAÇÃO. VERBA DE CARÁTER ALIMENTAR. RESTITUIÇÃO DE VALORES. IMPOSSIBILIDADE.
1. Conforme a jurisprudência do STJ, é incabível a devolução de valores percebidos por pensionista de boa-fé por força de interpretação errônea, má aplicação da lei ou erro da Administração.
2. Não se aplica ao caso dos autos o entendimento fixado no Recurso Especial 1.401.560/MT, julgado sob o rito do art. 543-C do CPC, pois não se discute na espécie a restituição de valores recebidos em virtude de antecipação de tutela posteriormente revogada.
3. Agravo Regimental não provido.
(AgRg no AREsp 470.484/RN, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 22/04/2014, DJe 22/05/2014)
ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO ESTADUAL. BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO PAGO A MAIOR POR ERRO ADMINISTRATIVO. BOA-FÉ DO SEGURADO. REPETIÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA. POSSIBILIDADE.
(...)
2. Incabível a devolução de valores percebidos por pensionista de boa-fé por força de interpretação errônea, má aplicação da lei ou erro da Administração (e.g: AgRg no AREsp 470.484/RN, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, DJe 22/05/2014; AgRg no AREsp 291.165/RS, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, PRIMEIRA TURMA, DJe 15/04/2013).
3. Inexiste óbice à antecipação de tutela. A vedação contida na Lei nº 9.494/1997, a qual deve ser interpretada restritivamente, não abrange o restabelecimento de vantagens (e.g.: AgRg no AREsp 109.432/DF, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, DJe 28/03/2012, AgRg no AREsp 71.789/DF, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, DJe 12/04/2012).
4. Agravo regimental não provido.
(AgRg no AREsp 548.441/RJ, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 18/09/2014, DJe 24/09/2014)
No mesmo sentido, é o enunciado 34 da AGU:
"Não estão sujeitos à repetição os valores recebidos de boa-fé pelo servidor público, em decorrência de errônea ou inadequada interpretação da lei por parte da Administração Pública". (No mesmo sentido: Súmula 72 da AGU)
Após a exposição sobre o poder de autotutela da Administração Pública e os seus limites, impõe-se a análise da questão nevrálgica do presente artigo.
Importante salientar que, conforme já mencionado, a verba previdenciária tem inequívoco caráter alimentar, ou seja, o pagamento do benefício previdenciário visa a garantir a subsistência do segurado e consequentemente preservar o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1° inc. III da CF).
Assim sendo, havendo a concessão de uma tutela antecipada nos termos do artigo 273 do CPC, para determinar a revisão e/ou concessão do benefício previdenciário, o Poder Judiciário, notadamente, considerando a morosidade do processo judicial, procura dar efetividade aos postulados constitucionais que salvaguardam os direitos sociais fundamentais.
Nesse sentido, o §1° do artigo 100 da CF estipula expressamente o caráter alimentar dos benefícios previdenciários:
Art. 100 (...)
§ 1º Os débitos de natureza alimentícia compreendem aqueles decorrentes de salários, vencimentos, proventos, pensões e suas complementações, benefícios previdenciários e indenizações por morte ou por invalidez, fundadas em responsabilidade civil, em virtude de sentença judicial transitada em julgado, e serão pagos com preferência sobre todos os demais débitos, exceto sobre aqueles referidos no § 2º deste artigo.
O dispositivo constante do §2° do art. 273 do CPC - que dispõe sobre o não cabimento da tutela antecipada caso o provimento seja irreversível - deve ser interpretado de forma sistêmica à luz de princípios constitucionais que tutelam a dignidade da pessoa humana e em conformidade com outros institutos albergados no ordenamento jurídico pátrio.
As antecipações de tutela, que envolvem sobretudo a materialização das prestações positivas previstas no artigo 194 da CF, ou seja, saúde, assistência social e previdência social, merecem ser submetidas a uma exegese diferenciada, pois o objetivo do sistema de Seguridade Social é a promoção do bem estar social do cidadão e a garantia de condições mínimas para a preservação de sua sobrevivência em momentos de contingências sociais. A eventual irreversibilidade parcial da tutela antecipada não pode preponderar sobre tais postulados de cunho constitucional, devendo prevalecer a mitigação da previsão processual.
Conforme estabelece a Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, em seu artigo 4°:
Art. 4o Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.
Já o Código de Processo Civil assim dispõe:
Art. 649. São absolutamente impenhoráveis:
(...)
IV - os vencimentos, subsídios, soldos, salários, remunerações, proventos de aposentadoria, pensões, pecúlios e montepios; as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, observado o disposto no § 3o deste artigo; (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).
O Código Civil também estipula o caráter irrepetível e irrenunciável da pensão alimentícia:
Art. 1.707. Pode o credor não exercer, porém lhe é vedado renunciar o direito a alimentos, sendo o respectivo crédito insuscetível de cessão, compensação ou penhora.
Não há qualquer previsão legal expressa sobre o afastamento do princípio da irrepetibilidade dos alimentos na hipótese de reforma ou cassação de uma tutela antecipada, podendo ser invocado o instituto da analogia para elucidar qualquer dúvida hermenêutica.
Seria inconcebível admitir que o alimentado fosse compelido a devolver uma verba recebida a título de alimentos provisionais caso, na sentença de mérito, o juiz entendesse que o valor pago não era devido de acordo com o complexo probatório produzido no curso do feito.
Na mesma linha de argumentação, as verbas salariais de natureza alimentar reconhecidas pela Justiça do Trabalho, ainda que concedidas por intermédio de antecipação dos efeitos da tutela, são irrepetíveis, conforme amplo entendimento do TST.
No que concerne à pensão alimentícia, é o entendimento do TJMG:
APELAÇÃO CÍVEL - EXECUÇÃO DE ALIMENTOS - COBRANÇA DE PARCELAS JÁ PAGAS - EXCESSO - DEVOLUÇÃO DE VALORES - IMPOSSIBILIDADE - IRREPETIBILIDADE DOS ALIMENTOS - MÁ-FÉ - AUSÊNCIA DE INDÍCIOS - ART. 940, CC - INAPLICABILIDADE - RECURSO DESPROVIDO. Os alimentos são irrepetíveis e incompensáveis, nos termos do art. 1.707, do Código Civil, não sendo cabível a devolução ou compensação de valores pagos a esse título. O pedido de cobrança de parcelas alimentares parcialmente quitadas pelo alimentante, sem prova robusta da má-fé do alimentando, não autoriza a incidência da pena prevista no artigo 940, do Código Civil. (TJ-MG - AC: 10261130112574001 MG , Relator: Edilson Fernandes, Data de Julgamento: 27/05/2014, Câmaras Cíveis / 6ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 06/06/2014)
O TST já se manifestou em inúmeras oportunidades sobre a irrepetibilidade de verbas salariais, sendo mister a transcrição da ementa do julgado abaixo:
"LIMITES DA LIDE. DECISÃO ULTRA PETITA. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. INDENIZAÇÃO POR DANO MATERIAL. TUTELA ESPECÍFICA. PENSÃO MENSAL. MULTA DIÁRIA.
(...)
4.No caso, a despeito da ausência de pedido expresso da concessão da tutela com fundamento nos arts. 273 ou 461 do CPC, extrai-se da própria inicial a alegação de que -deverá ser instituída pensão alimentar, com a finalidade de restaurar a situação financeira dos reclamantes anterior ao óbito- (fl. 104) e que as reclamantes declaram encontrar-se em situação de pobreza (fl. 106), o que reforça a necessidade de concessão da tutela, inclusive liminarmente, tal como disposto no § 3º do art. 461 da CLT. 5. Ressalte-se que a irrepetibilidade é própria da natureza da prestação de alimentos e, no caso, os dependentes do trabalhador vitimado se encontram privados do sustento proporcionado pelo de cujus, de modo que suposta impossibilidade de restituição, em caso de eventual absolvição da ora agravante, não pode constituir óbice à concessão da tutela. Recurso de revista não conhecido, no tema." (RR - 10-77.2012.5.15.0035 Data de Julgamento: 19/11/2014, Relator Ministro: Hugo Carlos Scheuermann, 1ª Turma, Data de Publicação: DEJT 28/11/2014)
Indaga-se: qual a diferença no tocante à natureza jurídica de uma verba alimentar decorrente do pagamento de uma pensão alimentícia ou de uma remuneração de cunho salarial e de um benefício previdenciário abarcado pelo Regime Geral de Previdência Social - RGPS? A resposta a esta indagação é no sentido de que o ordenamento jurídico pátrio confere o mesmo status jurídico a essas rubricas, não sendo legítimo sustentar a desnaturação do caráter alimentar do benefício previdenciário somente com base no argumento de que a fonte pagadora é o Poder Público.
A alegação de que o princípio da irrepetibilidade dos alimentos merece ser relativizado quando envolve benefícios pagos pelo Poder Público carece, portanto, de proporcionalidade e razoabilidade, porquanto a pessoa física que pagou uma verba alimentar indevida tem presumidamente uma capacidade econômica proporcionalmente bem inferior ao poder econômico ostentado pelo Erário.
Essa reflexão foi feita pela jurista Eliza Cerutti que analisa a temática sob o viés do Direito de Família, abordando inclusive situações em que se configura o abuso de direito por parte do titular do direito:
“Ratifique-se, no conflito de interesses que surge do pagamento indevido de verba de natureza alimentar deve ser considerado mais relevante o do accipiens, diante da natureza existencial que o recheia, quando comparado com o do solvens e do caráter patrimonial que a verba representa para ele. Vale lembrar que, analisados a partir da perspectiva prestacional, os direitos fundamentais, ao mesmo tempo em que se apresentam como parâmetros hermenêuticos hábeis a balizar a mediação das regras e princípios infraconstitucionais quando da realização do direito, se apresentam de forma a vedar a adoção de comportamentos que atentem impedir a realização de seus fins. Parece mesmo ser possível pensar que os riscos, diante do sopesamento dos valores em jogo, são impostos ao devedor, que supostamente terá melhores condições de suportá-los.
Desse modo, embora sedutores, os argumentos em favor da mitigação da característica sob análise não resistem a uma análise mais atenta. Autorizar a repetição, a compensação ou mesmo demandas lastreadas no abuso de direito implicará na violação reflexa de um direito fundamental. Como diria o poeta: a mão que afaga é a mesma que apedreja. Isso não quer dizer necessariamente que esse último não possa, de algum modo, ressarcir-se; tema que fecha, logo a seguir, essas reflexões.” (http://www.rkladvocacia.com/arquivos/artigos/art_srt_arquivo20130412105604.pdf)
Um outro aspecto que merece reflexão diz respeito à boa-fé objetiva e subjetiva, notadamente quando a decisão antecipatória é concedida com base em jurisprudência uniforme ou dominante dos tribunais superiores, gerando ao jurisdicionado um legítima expectativa de que o provimento jurisdicional tem um elevado grau de estabilidade jurídica; situação bem diversa de uma antecipação de tutela que é concedida com base em entendimentos isolados do Poder Judiciário.
É importante ressaltar que, nessa linha de raciocínio, o princípio da segurança jurídica baseado em jurisprudência dominante de tribunais superiores recomenda a não obrigatoriedade de devolução dos valores porventura considerados indevidos por força de eventual cassação da tutela antecipada. O que está em jogo é, também, a credibilidade do Poder Judiciário que, baseado em jurisprudência unificada, concede um provimento antecipatório que, posteriormente, é modificado em face da mudança de interpretação da própria Justiça ou de um pronunciamento do STF em sentido diverso ao entendimento propugnado pelas demais instâncias jurisdicionais.
Apenas a título exemplificativo, cite-se a temática relativa à desaposentação, cujo STJ e diversos Tribunais Regionais Federais já propugnaram de forma pacífica sobre o cabimento desse pleito para os aposentados que continuaram exercendo atividade remunerada. As decisões judiciais que conferem o direito à desaposentação não são concedidas, portanto, com base em entendimentos divergentes no âmbito do Poder Judiciário, configurando-se a boa-fé objetiva e subjetiva do segurado, que praticamente considera definitivo o provimento jurisdicional, com esteio no entendimento pretoriano atualmente favorável à tese postulada.
Também é importante diferenciar uma tutela antecipada concedida antes da citação do réu por força de uma decisão de natureza interlocutória e a concessão de um benefício previdenciário no bojo de uma sentença judicial (segurança concedida em um mandado de segurança ou tutela antecipada concedida na sentença), sendo inconteste, no último caso, a presença de um grau de segurança jurídica mais evidente. A mesma situação é perceptível quando a decisão que concede um benefício previdenciário é proferida por acórdão do Tribunal Regional Federal, robustecendo a boa-fé do jurisdicionado.
Nesse sentido, cite-se a brilhante decisão proferida pelo STJ, cujo acórdão foi relatado pela Ministra Nancy Andrighi:
PROCESSO CIVIL. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL. SENTENÇA QUE DETERMINA O RESTABELECIMENTO DE PENSÃO POR MORTE. CONFIRMAÇÃO PELO TRIBUNAL DE ORIGEM. DECISÃO REFORMADA NO JULGAMENTO DO RECURSO ESPECIAL. DEVOLUÇÃO DOS VALORES RECEBIDOS DE BOA-FÉ. IMPOSSIBILIDADE. PRECEDENTES DO STJ.
1. A dupla conformidade entre a sentença e o acórdão gera a estabilização da decisão de primeira instância, de sorte que, de um lado, limita a possibilidade de recurso do vencido, tornando estável a relação jurídica submetida a julgamento; e, de outro, cria no vencedor a legítima expectativa de que é titular do direito reconhecido na sentença e confirmado pelo Tribunal de segunda instância.
2. Essa expectativa legítima de titularidade do direito, advinda de ordem judicial com força definitiva, é suficiente para caracterizar a boa-fé exigida de quem recebe a verba de natureza alimentar posteriormente cassada, porque, no mínimo, confia - e, de fato, deve confiar - no acerto do duplo julgamento.
3. Por meio da edição da súm. 34/AGU, a própria União reconhece a irrepetibilidade da verba recebida de boa-fé, por servidor público, em virtude de interpretação errônea ou inadequada da Lei pela Administração. Desse modo, e com maior razão, assim também deve ser entendido na hipótese em que o restabelecimento do benefício previdenciário dá-se por ordem judicial posteriormente reformada.
4. Na hipótese, impor ao embargado a obrigação de devolver a verba que por anos recebeu de boa-fé, em virtude de ordem judicial com força definitiva, não se mostra razoável, na medida em que, justamente pela natureza alimentar do benefício então restabelecido, pressupõe-se que os valores correspondentes foram por ele utilizados para a manutenção da própria subsistência e de sua família.
Assim, a ordem de restituição de tudo o que foi recebido, seguida à perda do respectivo benefício, fere a dignidade da pessoa humana e abala a confiança que se espera haver dos jurisdicionados nas decisões judiciais.
5. Embargos de divergência no recurso especial conhecidos e desprovidos.
(EREsp 1086154/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, CORTE ESPECIAL, julgado em 20/11/2013, DJe 19/03/2014)
No mesmo sentido é a Súmula n° 51 da TNU:
Os valores recebidos por força de antecipação dos efeitos de tutela, posteriormente revogada em demanda previdenciária, são irrepetíveis em razão da natureza alimentar e da boa-fé no seu recebimento.
O STF, de semelhante forma, já assentou a tese da irrepetibilidade da verba alimentar:
Ementa: AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. PREVIDENCIÁRIO. BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO. PAGAMENTO A MAIOR. DEVOLUÇÃO DOS VALORES RECEBIDOS INDEVIDAMENTE PELO SEGURADO AO INSS. ART. 115 DA LEI 8.213/91. IMPOSSILIDADE. BOA-FÉ. NATUREZA ALIMENTAR. ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA RESERVA DE PLENÁRIO. INOCORRÊNCIA. MATÉRIA INFRACONSTITUCIONAL. 1. A violação constitucional dependente da análise do malferimento de dispositivo infraconstitucional encerra violação reflexa e oblíqua, tornando inadmissível o recurso extraordinário. 2. O princípio da reserva de plenário não resta violado, nas hipóteses em que a norma em comento (art. 115 da Lei 8.213/91) não foi declarada inconstitucional nem teve sua aplicação negada pelo Tribunal a quo, vale dizer: a controvérsia foi resolvida com a fundamento na interpretação conferida pelo Tribunal de origem a norma infraconstitucional que disciplina a espécie. Precedentes: AI 808.263-AgR, Primeira Turma Rel. Min. LUIZ FUX, DJe de 16.09.2011; Rcl. 6944, Pleno, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA, Dje de 13.08.2010; RE 597.467-AgR, Primeira Turma, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI Dje de 15.06.2011 AI 818.260-AgR, Segunda Turma, Rel. Min. ELLEN GRACIE, Dje de 16.05.2011, entre outros. 3. In casu, o acórdão recorrido assentou: “PREVIDENCIÁRIO. aposentadoria POR TEMPO DE CONTRIBUIÇÃO. COBRANÇA DOS VALORES PAGOS INDEVIDAMENTE. CARÁTER ALIMENTAR DAS PRESTAÇÕES PREVIDENCIÁRIAS. 1. Esta Corte vem se manifestando no sentido da impossibilidade de repetição dos valores recebidos de boa-fé pelo segurado, dado o caráter alimentar das prestações previdenciárias, sendo relativizadas as normas dos arts. 115, II, da Lei nº 8.213/91, e 154, § 3º, do Decreto nº 3.048/99. 2. Hipótese em que, diante do princípio da irrepetibilidade ou da não-devolução dos alimentos, deve ser afastada a cobrança dos valores recebidos indevidamente pelo segurado, a título de aposentadoria por tempo de contribuição.” 4. Agravo regimental desprovido.
(AI 849529 AgR, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 14/02/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-054 DIVULG 14-03-2012 PUBLIC 15-03-2012)
A controvérsia sobre a devolução de verba de caráter alimentar ganhou maior relevância em face do REsp 1384418/SC, julgado sob o rito do recurso repetitivo, sob a relatoria do Min. Herman Benjamin.
No julgamento deste REsp, publicado em 30/08/2013, o STJ entende que a jurisdicionada é obrigada a devolver os benefícios previdenciários auferidos com base em uma decisão judicial de primeira instância posteriormente cassada pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região.
O acórdão, entretanto, determinou que eventuais descontos em benefícios previdenciários ou mesmo a cobrança da verba previdenciária, resultado de eventual cassação de uma tutela antecipada, deverão ser condicionados a dois requisitos essenciais:
“À luz do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF) e considerando o dever do segurado de devolver os valores obtidos por força de antecipação de tutela posteriormente revogada, devem ser observados os seguintes parâmetros para o ressarcimento:
a) a execução de sentença declaratória do direito deverá ser promovida;
b) liquidado e incontroverso o crédito executado, o INSS poderá fazer o desconto em folha de até 10% da remuneração dos benefícios previdenciários em manutenção até a satisfação do crédito, adotado por simetria com o percentual aplicado aos servidores públicos (art. 46, § 1º, da Lei 8.213/1991).”
Em que pese o entendimento do STJ seja no sentido de que o INSS não poderá promover de forma automática o desconto no benefício previdenciário do segurado e nem mesmo aplicar o abusivo percentual de 30% sobre o valor da verba previdenciária previsto em norma infralegal (Decreto 3.048/98), é importante ressaltar que esse julgado foi proferido em circunstâncias bem específicas, motivo pelo qual não poderá ser adotado como paradigma indiscriminado em relação a situações fáticas que não guardem similaridade ao caso que ensejou o julgamento em análise.
O STJ, no caso específico submetido à sua apreciação, tratou de confirmar um acórdão proferido pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que reconheceu a impossibilidade de uma genitora de receber pensão em razão do óbito de seu filho, eis que o complexo probatório demonstrou que ela já auferia um benefício previdenciário, e a ajuda financeira de seu filho, antes de seu óbito, não se configurou como sendo substancial. Com efeito, a situação fática que deu ensejo ao julgamento do STJ trata de questão extremamente controversa, e a antecipação de tutela baseou-se em um conjunto probatório frágil e contrário ao entendimento dos tribunais superiores.
Transcreve-se abaixo a ementa do TRF da 4ª Região que deu ensejo ao julgamento do REsp sob o rito de recurso repetitivo:
PREVIDENCIÁRIO. PENSÃO POR MORTE DE FILHO. CONCESSÃO. QUALIDADE DE DEPENDENTE. NÃO COMPROVADA. 1. A concessão do benefício de pensão por morte depende da ocorrência do evento morte, da demonstração da qualidade de segurado do de cujus e da condição de dependente de quem objetiva a pensão. 2. Para fins de obtenção de pensão por morte de filho há que ser comprovada a dependência econômica em relação ao "de cujus", ainda que não exclusiva, falecendo direito ao pensionamento se o auxílio prestado não era vital à manutenção dos genitores. 3. As prestações alimentícias, onde incluídos os benefícios previdenciários, se percebidas de boa fé, não estão sujeitas à repetição. (TRF4, APELREEX 2009.72.99.002148-6, Quinta Turma, Relator Hermes Siedler da Conceição Júnior, D.E. 02/06/2011)
Conclui-se, portanto, que a decisão proferida pelo STJ no REsp 1384418/SC julgado sob o rito do recurso repetitivo não pode ser aplicada de forma indiscriminada para determinar ao segurado que proceda à devolução de eventuais verbas previdenciárias recebidas por força de decisão judicial. As peculiaridades do caso concreto, de modo a evidenciar a boa-fé objetiva e subjetiva do titular do direito, devem ser valoradas pelo Poder Judiciário, bem como eventual modificação de jurisprudência dominante à época em que a decisão antecipatória foi concedida, sob pena de aviltamento da própria autoridade/confiabilidade do Poder Judiciário.
Por outro lado, o entendimento do STJ, ainda considerando as ressalvas apresentadas no acórdão, representou inequívoco retrocesso no entendimento jurisprudencial até então prevalente, sobretudo para segurados vinculados ao Regime Geral de Previdência Social, que ostentam uma condição de inegável vulnerabilidade, até mesmo se ponderado que o valor médio real dos benefícios pagos pelo INSS é de R$ 971,57, conforme dados publicados pelo Ministério da Previdência Social em junho de 2014.
A prevalecer o entendimento do STJ, muitos segurados – que necessitam da verba alimentar para garantir a sua sobrevivência – deixarão de requerer a antecipação dos efeitos da tutela com receio de eventual modificação por parte das instâncias superiores do Poder Judiciário. Tal cenário configuraria danos irreversíveis para a dignidade de milhares de pessoas e a perda de credibilidade quanto à atuação do Poder Judiciário, eis que, diante da notória morosidade da prestação jurisdicional, os direitos sociais fundamentais somente serão satisfeitos após anos de tramitação processual com riscos de falecimento do segurado antes do trânsito em julgado da decisão concessória.
De certa forma, o acesso ao Poder Judiciário para requerer benefícios previdenciários ficará mitigado diante do caráter intimidador da obrigatoriedade de devolução dos valores auferidos por força de uma decisão antecipatória, mesmo que presentes os requisitos da verossimilhança da alegação e risco de perecimento do bem jurídico a ser tutelado.
Em alguns casos, o segurado que obteve a revisão judicial de seu benefício previdenciário, caso cassada a decisão, será compelido a devolver todos os valores recebidos a maior e, ainda, ter seu benefício restabelecido no quantum originário. Nas hipóteses de concessão de benefício previdenciário cuja decisão for posteriormente revogada, os segurados sofrerão execuções judiciais por parte da Fazenda Pública, impingindo toda sorte de danos, inclusive a inclusão de seu nome no CADIN (Cadastro informativo de créditos não quitados do setor público federal).
Certamente, o segurado que foi contemplado com uma decisão judicial antecipatória não depositará os valores auferidos em uma caderneta de poupança, até mesmo se considerada a natureza alimentar da verba previdenciária; ainda que tal situação improvável se configurasse, o segurado não conseguiria ressarcir os cofres públicos, porquanto os rendimentos da caderneta de poupança não acompanham os referenciais (correção monetária, juros de mora e multa) adotados pela Fazenda Pública para a cobrança dos valores que ela entende ser titular.
Interessante fazer menção, por fim, às razões de veto da Presidência da República quando não admitiu a prevalência de um dispositivo do projeto de lei, que deu ensejo à Lei nº 11.804/2008, que previa a responsabilização do alimentado na hipótese de reversão dos chamados alimentos gravídicos. Neste sentido, transcrevem-se as razões do veto da Presidência da República:
“Art. 10. Em caso de resultado negativo do exame pericial de paternidade, o autor responderá, objetivamente, pelos danos materiais e morais causados ao réu.
Parágrafo único. A indenização será liquidada nos próprios autos.”
Razões do veto
“Trata-se de norma intimidadora, pois cria hipótese de responsabilidade objetiva pelo simples fato de se ingressar em juízo e não obter êxito. O dispositivo pressupõe que o simples exercício do direito de ação pode causar dano a terceiros, impondo ao autor o dever de indenizar, independentemente da existência de culpa, medida que atenta contra o livre exercício do direito de ação.”
A questão da irrepetibilidade dos alimentos, em matéria de cassação dos efeitos da tutela antecipada, afeta diretamente diversos postulados constitucionais, dentre os quais se destaca o princípio da dignidade da pessoa humana, o princípio da segurança jurídica, os princípios da seguridade social e o caráter alimentar dos benefícios previdenciários. Cabe, pois, à Suprema Corte revisitar a temática aqui abordada à luz dos preceitos consignados em nosso texto constitucional.