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O rombo no Postalis

27/06/2015 às 15:33
Leia nesta página:

O artigo faz análise do caso concreto ocorrido no fundo de previdência privada dos Correios, discorrendo sobre suas consequências para os contribuintes e para a empresa, bem como qual deve ser a atuação do Ministério Público Federal no caso.

Noticia-se que após seis meses de investigação, a Superintendência Nacional de Previdência Complementar(Previc) chegou à conclusão de que os diretores e conselheiros do Postalis, o fundo de pensão dos funcionários dos Correios, foram responsáveis por parte do rombo de R$5,6 bilhões no plano de benefício definido dos participantes do fundo. Afirma-se que a constatação está em dois relatórios confidenciais.

Nesses relatórios da Superintendência Nacional de Previdência Complementar aponta-se que dirigentes e conselheiros do fundo de pensão dos Correios não agiram “com zelo e ética” nos investimentos.

Afirma-se, outrossim, que entre os investimentos que levaram o fundo a apresentar esse déficit bilionário estão aplicações em títulos de bancos liquidados, como Cruzeiro do Sul e BVA e investimentos atrelados à dívida de países com problemas como a Argentina e a Venezuela.

No universo de irregulares, fala-se que os dirigentes ultrapassaram os limites das infrações administrativas para entrar na seara do crime.

O caso envolve entidade de previdência privada fechada.

No que concerne à natureza jurídica das entidades de previdência fechada dir-se-á que elas, reguladas que eram  pela Lei nª 6.435, não quando não adotarem a forma de fundações, serão associações regidas pela normas do Código Civil referentes aos contratos da sociedade, submetendo-se quanto a extinção as normas do mesmo diploma legal.  A matéria hoje está disciplinada pela Lei Complementar 109, de 29 de maio de 2001, que determina que as entidades fechadas organizar-se-ão sob forma de fundação ou sociedade civil, sem fins lucrativos(artigo 31, § 1º). 

Art. 31. As entidades fechadas são aquelas acessíveis, na forma regulamentada pelo órgão regulador e fiscalizador, exclusivamente:

        I - aos empregados de uma empresa ou grupo de empresas e aos servidores da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, entes denominados patrocinadores; e

        II - aos associados ou membros de pessoas jurídicas de caráter profissional, classista ou setorial, denominadas instituidores.

Sendo assim dispôs a lei que o regime de previdência complementar é operado por entidades de previdência complementar que têm por objetivo principal instituir e executar planos de benefícios de caráter previdenciário(artigo 2º).

Mas vem a pergunta: Como ficam as obrigações para com os participantes, que teriam que pagar por esse ilícito noticiado?

Sabe-se que alguns dos benefícios instituídos pelos planos de previdência privada, de natureza complementar, visam a cobrir as consequências de riscos que pesam sobre os participantes, assim considerados eventos danos que independem de sua vontade, como a invalidez(total ou parcial) e ainda a doença ou morte. Ora, nesses casos, como bem lecionou Fábio Konder Comparato(Direito Empresarial, 1990, pág. 254), a obrigação assumida pela entidade de previdência privada para com os participantes ou beneficiários constitui, uma obrigação de garantia. Diria mais: essa obrigação existe ainda com relação às aposentadorias por tempo de serviço  concedidas.

A noção de obrigação de garantia, que se soma às conhecidas obrigações de meio e de resultado, estudadas por Demogue, tem origem na opinião manifestada por André Tunc, em seu Traité Théorique et pratique de la responsabilité civile, délictuelle et contractuelle, 5ª edição, dos irmãos Mazaud, e consiste num espécie de terceiro gênero de obrigações.

A prestação devida, nas obrigações de garantia, não se cinge ao pagamento de indenização, na hipótese de realização do risco. Ela compreende ainda dar ao credor uma situação de segurança ou tranquilidade, que pode apresentar um valor econômico relevante. É o caso da garantia da pensão em caso de morte que dá ao trabalhador a segurança de que seu desaparecimento não deixará a família ao desamparo.

Haverá mudança no regime de prestação pecuniária por parte  dos beneficiários por conta desses ilícitos havidos? Aplica-se o princípio geral da manutenção da condição mais benéfica ao trabalhador. Esse princípio geral determina que “nos contratos individuais de trabalho só é lícita a alteração das respectivas condições por mútuo consentimento, e ainda assim, desde que não resultem, direta ou indiretamente, prejuízos ao empregado, sob pena de nulidade de cláusula infringente desta garantia”.

Assim não é justo que o trabalhador arque com seus salários com um reforço de contribuição por fato que foi consequência de uma administração desastrosa da empresa que instituiu o fundo de pensão. Aliás, será ela que deve pagar essa conta devendo ser ressarcida pelos dirigentes responsáveis pelos danos. Vem a pergunta: E preferível quebrar a entidade de previdência social  do que o trabalhador ter de se sacrificar perdendo parte do salário?  Ora, há uma obrigação de garantia da entidade mantenedora para com os empregados da empresa. Essa obrigação de garantia não pode ser transferida para os próprios beneficiários dela, por óbvio.

De toda sorte em caso de liquidação extrajudicial aplica-se o que segue:

Art. 49. A decretação da liquidação extrajudicial produzirá, de imediato, os seguintes efeitos:

        I - suspensão das ações e execuções iniciadas sobre direitos e interesses relativos ao acervo da entidade liquidanda;

        II - vencimento antecipado das obrigações da liquidanda;

        III - não incidência de penalidades contratuais contra a entidade por obrigações vencidas em decorrência da decretação da liquidação extrajudicial;

        IV - não fluência de juros contra a liquidanda enquanto não integralmente pago o passivo;

        V - interrupção da prescrição em relação às obrigações da entidade em liquidação;

        VI - suspensão de multa e juros em relação às dívidas da entidade;

        VII - inexigibilidade de penas pecuniárias por infrações de natureza administrativa;

        VIII - interrupção do pagamento à liquidanda das contribuições dos participantes e dos patrocinadores, relativas aos planos de benefícios.

        § 1o As faculdades previstas nos incisos deste artigo aplicam-se, no caso das entidades abertas de previdência complementar, exclusivamente, em relação às suas atividades de natureza previdenciária.

        § 2o O disposto neste artigo não se aplica às ações e aos débitos de natureza tributária.

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Deve o Ministério Público Federal, pois se trata de situação que envolve bens e interesses de empresa pública(artigo 109, IV, da Constituição Federal), investigar o caso, em todas as suas circunstâncias,  e como titular da ação penal ajuizar as providências cabíveis. Uma linha de pensamento poderia entender que em tese houve crime de apropriação indébita(artigo 168 do Código Penal), em detrimento de entidade civil de previdência privada patrocinada pela Empresa de Correios e Telégrafos.

Na apropriação indébita a ação consiste em apropriar-se de coisa alheia móvel de que o agente tem a posse ou a detenção(aliás, segundo autorizada corrente a lei não usa tais expressões com o significado do direito civil, mas como sinônimas para significar uma efetiva relação de domínio com relação à coisa). Pressuposto do fato do tipo penal presente no artigo 168 do Código Penal é que o agente tenha, anteriormente, à ação criminosa, a posse lícita da coisa. Essa circunstância distingue a apropriação indébita do furto e do estelionato. O furto consiste na subtração, com a qual o agente viola a posse alheia, tirando a coisa contra a vontade do possuidor. No estelionato, a coisa é entregue ilicitamente ao agente pelo lesado, induzido em erro, em consequência da fraude. Mas, no crime de apropriação indébita não se exige que a coisa tenha sido confiada ao agente. Alerte-se que, na apropriação indébita, a posse deve ser exercida pelo agente em nome alheio e que se se tratar de coisa fungível e se o agente a tiver recebido como depósito ou por empréstimo, com obrigação de restituir equivalente em espécie, qualidade ou quantidade(depósito irregular), não pode haver apropriação. Mas pode haver apropriação indébita de coisa adquirida com reserva de domínio(RT 353/92). O crime de apropriação indébita consuma-se com a apropriação, ou seja, no instante em que o agente revela a inversão do título da posse, dispondo da coisa ou retendo uti dominus, restando consumado no momento e no lugar em que o agente devia restituir a coisa ou destiná-la a certo fim e a converte em seu proveito(RF 135/524; 172/484; 174/390). Na apropriação indébita pode ocorrer a tentativa, pois o crime é material. Consistindo a materialidade do fato em apropriar-se o agente da coisa, no todo ou em parte, isto é, dela assenhorear-se, em fazê-la própria, em praticar sobre ela atos de disposição, como proprietário, será possível tal crime, previsto no artigo 168 do Código Penal. Ainda  será possível esse delito contra o patrimônio, quando se tratar de penhor(RT 308/100; 332/107). A restituição da coisa pelo agente ao proprietário será entendida como arrependimento posterior(artigo 16 do Código Penal com previsão de causa de diminuição de pena de natureza obrigatória) e não como exclusão da justa causa para a ação penal. O gestor dessa entidade não é funcionário público, mas empregado de entidade civil. Para que haja peculato é mister que seja o agente funcionário público, nos termos do artigo 312 do Código Penal(no artigo 327 do Código Penal tem-se que funcionário público é quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo ou emprego público. Ora, cargo é lugar ou conjunto de atribuições confiadas pela Administração a uma pessoa física, que atua em nome do Estado; emprego é vínculo de alguém com o Estado, regido pelas normas trabalhistas; função pública é atividade do órgão publico que realiza fim de interesse do Estado). O dirigente de fundo de pensão, mesmo instituído por entidade pública, não exerceria função pública.

Outra vertente de interpretação deve levar em conta o crime de peculato, pois haveria dano a patrimônio de empresa pública federal patrocinadora. Teria havido uma violação de dever funcional, em evidente detrimento às regras de direito administrativo. Houve má alocação de recursos. Nessa linha de pensar é hipótese de investigação por improbidade administrativa que teria sido cometida e, se for o caso, ajuizamento de ação civil para reparação dos danos e pedido de  condenação dos responsáveis a penas estabelecidas na Lei nº 8.429/92, na devida proporcionalidade.

Ora, como ensinou Nelson Hungria, “convergem no peculato a violação do dever funcional e o dano patrimonial. Poderá dizer-se que é punido o peculato menos porque seja patrimonialmente lesivo do que pela quebra de fidelidade ou pela inexação no desempenho de cargo público; mas é absolutamente indispensável à sua configuração o advento do concreto dano patrimonial. O dano material, indeclinável no peculato, não é outra coisa que um desfalque patrimonial sofrido pela administração pública, seja como damnum emergens, seja como lucrum cessans, ou como ressarcimento a que está obrigada, no caso de malversação”(Comentários ao Código Penal, 1958, pág. 343 e seguintes).

Não se perca de vista que a teor do artigo 57, parágrafo único, da Lei Complementar nº 101, os administradores dos respectivos patrocinadores serão responsabilizados pelos danos ou prejuízos causados às entidades de previdência complementar, especialmente no aporte das contribuições a que estavam obrigados. Aliás, os administradores da entidade, os procuradores com poderes de gestão, os membros de conselhos estatutários, o interventor e o liquidante responderão civilmente pelos danos ou prejuízos que causarem, por ação ou omissão às entidades de previdência complementar(artigo 63, Lei Complementar 101).

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. O rombo no Postalis . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4378, 27 jun. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/38886. Acesso em: 2 nov. 2024.

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