Análise crítica ao procedimento adotado no Tribunal do Júri.

Da falta de motivação das decisões proferidas à existência de influências externas

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O presente artigo apresenta uma abordagem crítica acerca do procedimento adotado no Tribunal do Júri, buscando, em seu desenvolvimento, demonstrar os vícios autoritários presentes no Instituto mais significativo do atual Estado Democrático de Direito.

INTRODUÇÃO

 

Hodiernamente, muitos institutos do direito encontram-se paralisados no tempo, havendo uma carência de discussão e atualização de seus preceitos. Entre estes se encontra o Tribunal do Júri, procedimento que é considerado por muitos a maior expressão democrática existente no ordenamento jurídico brasileiro, que, entretanto, carrega diversos seguimentos que se assemelham a uma prática autoritária.

Num primeiro momento, para se contextualizar o assunto, far-se-á preciso explorar as origens do instituto, buscando na história o embasamento teórico para a criação deste tribunal. Em seguida, será realizada uma análise da evolução no direito brasileiro, até que enfim se entalhe a real conjuntura do procedimento dentro de uma sociedade democrática como a brasileira.

Posteriormente, se torna imprescindível uma abordagem crítica da aplicação do instituto no Direito brasileiro, a partir do levantamento dos princípios reguladores do Júri, e de que forma eles conflitam com os princípios constitucionais mais básicos, frutos de uma redemocratização jurídica após um período ditatorial.

Por fim, analisar-se-á a influência midiática em casos de repercussão nacional que envolvem o Tribunal do Júri, a partir de elementos fáticos, sem que seja feita uma apreciação do mérito. Para tanto, serão utilizados os três cases com maior exploração da mídia nos últimos anos: Richthofen, Nardoni e Bernardo, para que finalmente seja possível alcançar uma conclusão acerca da legitimidade da Instituição do Júri, bem como do possível abuso da liberdade de expressão e imprensa.

 

1. CONTEXTO HISTÓRICO

 

Muito se discute acerca da origem do Tribunal do Júri. Enquanto alguns doutrinadores defendem a ideia de ele ter nascido nas sociedades greco-romanas, outros já preveem que seu gênesis se deu na Lei mosaica. Há ainda aqueles que indicam o Areópago grego como promissor, ou ainda, mais tarde em solo britânico.

Esta divergência doutrinária se dá devido à existência de institutos que remetem ao Tribunal do Júri nas mais variadas épocas e sociedades. A própria Bíblia referencia em certos momentos figuras que se assemelham ao instituto – em Deuteronômio, Êxodo, Levítico e Números, existe menção ao Tribunal Ordinário, o Conselho dos Anciãos e o Grande Conselho, que nada mais são do queconselhos formados para figurar como juízes representativos.

De acordo com Távora e Alencar (2011, p.784):

A origem do tribunal do júri é visualizada tanto na Grécia como em Roma, havendo quem veja um fundamento divino para a legitimidade desse órgão. Sob essa inspiração, o julgamento de Jesus Cristo, malgrado desprovido das garantias mínimas de defesa, é lembrado como um processo com características que se assemelham ao júri.

A verdade é que não há como especificar sua origem, inclusive porque se for considerada como a origem da definição simplista de Júri Popular – o julgamento pelos pares – ter-se-ia que retroceder até as mais remotas tribos e sociedades, e buscar nelas este início.

Porém, o que mais importa para o presente artigo é a formação do Tribunal do Júri nos moldes conhecidos hoje, e quanto a isto é quase unânime que sua origem foi na Inglaterra, após o quarto concílio de Latrão.

Nas palavras de José Frederico Marques (apud MARQUES, 1997.p.20), o Júri teria nascido na Inglaterra, depois que o concilio de Latrão aboliu as ordálias e os juízos de deus. Com a Revolução Francesa, a instituição teria sido transportada para o Continente, passando da França para a maioria dos países europeus.

Neste mesmo sentido, Machado (2012, p.274) prescreve que “os autores são mais ou menos unânimes em apontar a origem do Tribunal do Júri na Magna Carta de 1215, cuja cláusula 21 dispunha que: ‘Condes e barões não serão punidos, senão por seus pares e unicamente em proporção à gravidade do delito cometido’”.

Para uma melhor compreensão, se faz necessário compreender que o Tribunal do Júri na Europa só se consolidou após reinvindicações populares. Na época, os julgamentos eram presididos por juízes não especializados, muitos indicados pelos governantes, sem que houvesse um padrão procedimental. Ou seja, este arquétipo autoritário não se assemelhava em nada com a sociedade liberalista que estava se formando e, portanto, necessitava de transformações.

Na contramão do que ocorrera no resto do mundo, o Tribunal do Júri no Brasil não foi introduzido por intento popular, pelo contrário, depois de diversas discussões politicas, foi instituído por lei.Durante a primeira monarquia, o projeto de lei foi apresentado à Assembleia Geral Constituinte, que foi dissolvida logo depois, e não conseguiu aprovar o projeto a tempo. D. Pedro, então, “ordenou a execução provisória do referido projeto de lei, enquanto que a nova Assembleia que convocou tomasse as ‘providências legislativas’ que julgasse mais convenientes e adequadas à situação do Império”. (ALMEIDA, 1999, p.24).

Sobre a introdução do instituto do júri no Brasil, Oliveira (2008, p.66-67) pondera:

O Tribunal do Júri Popular surgiu no Brasil em 1822, por força da Lei de 18 de junho daquele ano, competindo-lhe, à época, tão-somente o julgamento dos delitos de opinião e de imprensa, assim tipificados pela legislação vigente. Funcionava com vinte e quatro jurados, dele só cabendo recurso ao então Príncipe-regente. Todavia, os réus poderiam recusar dezesseis dentre os vinte e quatro jurados, sendo suficiente os oito restantes para compor o conselho de julgamento.

Diante disto, o Júri Popular foi inserido na constituição de 1824, e passou a integrar o organograma do Judiciário. O caminho que a instituição do júri teve que percorrer para alcançar a sua atual posição não foi nada tranquilo, como ensina Tubenchlak apud Oliveira (2003, p.66):

No Brasil [...] o caminho percorrido pelo Júri, desde 1822, assemelha-se a uma Guerra Santa: ora avançando, ora compelido a recuar, ora deformado em sua competência material, resistiu galhardamente a tudo isso, inclusive a dois períodos ditatoriais.

Com a edição do código Criminal do Império, em 16 de dezembro de 1830, e do código de Processo Criminal, em 29 de novembro de 1932, o instituto passou a ser melhor delimitado. No bojo dos embates entre imperialistas e republicanos, no período de 1830 a 1840, surge o que José Frederico Marques (apud MARQUES, 1997, p.23) qualifica de reação conservadora, diante da edição da Lei nº 261, de 3 de dezembro de 1841, que além de significativas transformações, restringiu a participação popular, uma vez que a lei passou  a selecionar os jurados de acordo com diversas condições, tais como ser eleitor, saber ler e escrever, possuir bens, determinado rendimento, entre outras, sendo que a formação da lista era formulada pelo delegado e passava por autoridades como o juiz, o promotor e o Presidente da Câmara Municipal.

Proclamada a República, em 15 de novembro de 1889, o Tribunal do Júri foi mantido pela Constituição de 1891, tendo constado no Art. 72, §31, simplesmente: É mantida a instituição do júri.

A Constituição de 16 de julho de 1934 consignou, em seu art. 72: É mantida a instituição do júri, com a organização e as atribuições que lhe der a lei. O novo ordenamento retirou o Júri do rol de garantias constitucionais e o incluiu no capítulo referente ao Poder Judiciário.

Em 1937, com a Constituição do Estado Novo, o Júri deixou de ser referido, suscitando posicionamentos em torno da ideia de extinção. Em 1938, perdeu a soberania, que foi reconquistada na Constituição de 1946 e mantida em 1967. Essa mesma soberania, no entanto, não foi referida na Emenda de 1969, ressuscitando o debate em torno da permanência da instituição. A soberania do Júri é considerada por alguns doutrinadores como principio básico para a existência do instituto, tanto que parte deles defendem que durante a vigência da emenda de 69, não existiu a figura do Tribunal do Júri como Instituto, ideia esta já superada.

Com a promulgação da atual Constituição, em 5 de outubro 1988, a soberania dos vereditos voltou a aparecer, agora no artigo 5º, XXXVIII, “c”.

XXXVIII – é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados:

a) Plenitude de defesa;

b) Sigilo nas votações;

c) A soberania dos veredictos;

d) A competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.

 

Ocorre que esta reinserção, nos moldes da Constituição de 1946, não se deu em decorrência de um amplo estudo acerca da função do instituto, e a real necessidade da presença dele na nova constituição. Bem pelo contrário, nas palavras de NUCCI (2008, p.44), a constituinte apenas visualizou que “se a democrática Constituição de 1946 assim visualizava o Júri, passada à época da ditadura militar (1964 a 1985), mais que natural seria a volta ao status quo”.

Perante isto, ressalta-se que, embora cláusula pétrea, a instituição do Júri carece de profundas alterações, porque em muito se assemelha a um padrão autoritário e inquisitivo, a começar pela escolha (quase)aleatória dos leigos, para compor a tribuna, em sua maioria pessoas sem instrução, ou conhecimento técnico mínimo sobre o direito, que detém um poder enorme nas mãos: decidir o futuro do réu. Esta falta de instrução técnica acerca do direito faz com que muitas vezes eles decidam com base em preceitos alienígenas ao fato/crime, como religião, orientação sexual, influências da mídia, entre muitos outros.

No Direito hodierno, os magistrados são especializados e investidos no cargo a partir de seus méritos. Durante anos tiveram sua formação e especialização técnica para conduzir corretamente um procedimento, e justamente num dos mais importantes, e controversos, institutos do direito, tem sua competência mitigada, e transferida para leigos.

Como bem pontua CAMELOapud MARQUES (2009, p.25), este modelo de Tribunal representativo do povo teve grande relevância na época em que se instalou no Brasil. Período em que o Poder Judiciário era submisso ao soberano, e este representava um julgamento parcial, com base nos interesses no estado, naquele momento autoritário. Porém hoje, com a independência do Judiciário faz-se necessário uma reformulação do Tribunal do Júri para que esse instituto traduza a segurança jurídica preceituada pelo atual Estado Democrático de Direito.

Há ainda de se levar em consideração que, mesmo a instituição do Júri se encontrarpreconizada no Art. 5º, inc. XXXVIII, da CF - se tratando, assim, de cláusula pétrea - sua regulamentação encontra-se no Decreto-Lei nº 3.689/41 (Código de Processo Penal), de origem fascista, influenciado diretamente pelo Código Rocco italiano, de Mussolini.

2. O PARADOXO PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS X TRIBUNAL DO JÚRI

 

Tem-se que o período democrático em nosso país é relativamente recente (tendosido inaugurado o Estado Democrático de Direito pela Constituição de 1988), havendo ainda vícios de autoritarismo fortemente arraigados, oriundos do superado regime ditatorial.

Exemplo claro de tal situação é o Tribunal do Júri. Nos termos em que formulado pela carta constitucional, o Tribunal adquire status de verdadeiro ápice da democracia no ordenamento jurídico, mas sua regulamentação pelo Código de Processo Penal, paradoxalmente, é orientada por diretrizes autoritárias, trajadas de expressão democrática.

Democracia é algo muito mais complexo para ser reduzido na sua dimensão meramente formal-representativa. Seu maior valor está na dimensão substancial, enquanto sistema político-cultural que valoriza o individuo em todo feixe de relações que ele mantém com o Estado e com outros indivíduos. É fortalecimento e valorização do débil (no processo penal, o réu), na dimensão substancial do conceito. (LOPES JR., 2014. p.1075)

É notória a presença do que Aury Lopes Jr. nomeia de repouso dogmático acerca do Tribunal do Júri. Por muito tempo, não é realizada uma reforma no instituto, justamente pela fadiga crítica dos legisladores. Por ser uma instituição que remonta séculos, pouco foi analisado nos últimos anos, após a instauração da nova democracia.

Os princípios ditados na constituição são de grande relevância, porém a sua aplicação, viciada pela história, causa um estranhamento que vem de encontro com os ditames da nova república, conforme será observado a seguir.

 

2.1. A PLENITUDE DE DEFESA

 

Constitucionalmente, todo réu tem direito ao contraditório e a ampla defesa, porém, no que concerne ao Tribunal do Júri, a Constituição Federal preceitua aexistência da plenitude da defesa. Estas duas indicações apresentam substanciais diferenças. Enquanto a primeira exprime um direito de defesa normativo, dando ao acusado o direito de se escorar em tudo aquilo que as leis e princípios preveem, a plenitude tem uma conotação de suprema, podendo muitas vezes transpassar o limite do lógico.

Em plenário, nos deparamos com um teatro, que muitas vezes expressam um verdadeiro escárnio ao Direito,como se o destino do acusado e a vida da vítima fossem nada além de um roteiro de um dramalhão onde a sala é o cenário, o público a plateia, e Promotores e Defensores são os atores, onde tudo é valido: lágrimas, distrações cênicas, discursos incisivos, citações bíblicas, justificativas espirituais etc.

Ocorre que esta teatricidade é prejudicial para o desenvolvimento de um julgamento justo, uma vez que os jurados são altamente suscetíveis a emoções, sentimentos e paixões humanas, que, conforme indica Aramis Nassif, podem ser facilmente direcionadas, manipuladas ou até mesmo personificadas, dependendo da atuação dos atores em prol da absolvição ou condenação.

Neste mesmo sentido, podemos observar que, na prática, a acusação encontra seu limite na defesa, que em muitas vezes abusa de sua plenitude, com atuações dignas de premiações dramaturgas, resumindo o resultado do julgamento a quem foi – promotoria ou defesa – mais capaz de atuar, comover, impressionar e convencer o espectador, aqui conhecido como Jurado.

 

2.2. A SOBERANIA DOS VEREDITOS

 

A ideia de soberania dos vereditos, ou seja, a impossibilidade de reforma das decisões proferidas pelo conselho de sentença, talvez seja o ponto mais controverso do Tribunal do Júri. Ao passo de que não faz o menor sentido uma audiência sentenciada pelos pares poder ser modificada por um tribunal superior, também éadventícia a supressão do Duplo Grau de Jurisdição.

Cabe ressaltar que, embora soberana, esta decisão não é absoluta.  Isto significa que o veredito pode ser questionado em recurso, se este for manifestamente contrário aos autos, tendo como única solução a realização de um novo julgamento, onde poderão ser arguidas novamente todas as teses já apresentadas no primeiro julgamento, e, caso o novo conselho de sentença decida no mesmo sentido do primeiro, nada mais poderá ser feito.

Esta impossibilidade de um novo recurso é completamente compreensível, nos termos da atual configuração do júri, uma vez que, caso contrário, o processo entraria num looping eterno de recursos, tornando inviável o encerramento do litigio.

Doutrarte é inconcebível que o júri tenha um poder decisório irrestrito, chegando a capacidade de “tornar o quadrado, redondo, com plena tolerância dos Tribunais e do senso comum teórico”. (LOPES JR, 2009, p. 312). Sem contar a dificuldade que existe em comprovar a decisão contrária aos autos, já que aos jurados não é imputado o dever de fundamentar sua decisão - assunto que será analisado em tópico próprio.

Nesta toada, há de se considerar que o principio do duplo grau de jurisdição existe diante de uma justificativa lógica – todo ser humano é suscetível ao erro - portanto a todos deveria ser garantido o direito a reanálise de seu caso. Porém, este direito necessita de supedâneos suficientes para uma construção de um contradito, o que não existe sem motivação e publicidade das decisões. Ora, como pode uma pessoa se defender de algo que desconhece?

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Não fosse suficiente a probabilidade de erro com base unicamente nas teses processuais, ainda é implicitamente dado ao jurado o direito de julgar por sua intima convicção, ou seja, de acordo com sua consciência, sem a necessidade de análise legal do caso, o que, segundo Lopes Jr (2014, p. 1079), permite a imensa monstruosidade jurídica de julgar a partir de qualquer elemento, ou seja, retornar ao Direito Penal do Autor, sendo o réu julgado “pela ‘cara’, cor, opção sexual, religião, posição socioeconômica, aparência física, postura do réu durante o julgamento ou mesmo antes do julgamento” enfim, são inúmeras as (des)valorações que podem ser feitas pelo jurado em relação ao réu, sem que exista uma mínima análise do processo em si, podendo levar a um julgamento e decisão prévia – condenatório ou absolutória - tudo isso sem fundamentação e revestido de soberania.

 

2.3. A (SUPOSTA) INDEPENDÊNCIA

 

O principio da independência diz respeito àmitigação das influências ocasionadas pela pressão política e social que podem estar presentes num julgamento. A grande questão deste princípio é que ele é utópico, mesmo em casos onde o julgador é um juiz togado, quiçá em casos de julgamentos populares, uma vez que o julgador é um ser humano, e uma proteção completa contra influências externas é impossível. Nesta toada, ressalva Lopes Jr. (2014, 1076)

Argumenta-se, ainda, em torno da independência dos jurados. Grave equívoco. Os jurados estão muito mais suscetíveis a pressões e influências políticas, econômicas e, principalmente, midiática, na medida em que carecem das garantias orgânicas da magistratura. (grifo do autor)

Conforme já mencionado, os jurados tem resguardado o direito de julgar por sua intima convicção, ou seja, pelo que sua consciência e emoção projetam como justo. A partir do momento que eles não têm embasamento técnico, e conhecimento aprofundado acerca do direito, elesconsequentemente decidirão pelo senso comum.

Ocorre que, aliado a isto, existe a presença de outros fatores sociais que influenciam o pensamento humano, a exemplo da religião, que incluem preceitos religiosos, já descartados pelo direito, na soma de fatores que entusiasmam a decisão.

Além de que, o profissional que vivencia o Júri costumeiramente, seja ele o promotor ou o defensor, conhece a sociedade que irá julgar o réu. Desta forma, é possível traçar um perfil das pessoas ali presentes, e criar uma tese que vá ao encontro do corpo dejurados.

Como exemplo, é comum que mulheres sejam mais sensíveis e propensas a condenar em casos de violência contra menor. Da mesma forma, homens costumam ser mais permissíveis em casos onde envolva violência doméstica em que o réu esteja defendendo a “honra”.

Outros elementos externos ainda influenciam o jurado, em especial a mídia. Muitas vezes o jurado chega ao plenário com o desenrolar dos fatos já passado e repassado em sua cabeça pelos jornais e noticiários, com um pré-julgamento de valor já formado, onde nada apresentado durante a sessão do júri seja capaz de desconstruir todo o trabalho já feito pela mídia em sua cabeça.

Ocorre que a mídia tem um objetivo primordial, que é a venda de uma noticia. E para que se conquiste isto, muitas vezes ela não mede esforços ao direcionar, dramatizar e manipular uma ocorrência, para que ela deixe de ser uma simples composição de fatos, e passe a ser uma estória, com personagens bem delimitados - vilão, protagonista, vitima.

Neste ímpeto de criar uma estória que venda, pouco se leva em consideração o Direito, muitas vezes com o apoio de entes que deveriam estar lá para resguardá-lo, como Delegados, Advogados e Promotores, que condenavelmente dão entrevistas apresentando juízo de valor acerca do fato, esquecendo-se de um dos princípios constitucionais basilares do direito penal: a Presunção de Inocência.

Este bombardeio de informações, somado aos demais fatores, torna praticamente impossível a independência do pensamento do jurado, uma vez que ele diariamente tem acesso a dezenas de “condenações morais e extrajudiciais” pela sociedade.

Outro ponto que dificulta a existência de independênciaé a própria nomeação dos jurados, que é feita a partir de um pequeno rol de pessoas, normalmente de um mesmo grupo social.

Os jurados tampouco possuem a “representatividade democrática” necessária (ainda que se analisasse numa dimensão formal de democracia), na medida em que são membros de segmentos bem definidos: funcionários públicos, aposentados, donas de casa, estudantes, enfim, não há uma representatividade com suficiência democrática. (LOPES JR, 2014, p.1076)

No mesmo sentido, Lênio Luiz Streck indica, ainda, que o modo em que são elaboradas as listas de jurados, apenas reproduzem uma divisão social, gerando uma “elitização” do júri, que nada mais faz do que se afastar da democracia pretendida, pois encontram-se no conselho apenas uma parcela da sociedade, gerando assim “listas com jurados vitalícios” (STRECK, 1998, p. 134) que tendem a criar um perfil criminoso, com critérios pessoais e subjetivos.

 

2.4. A AUSÊNCIA DE MOTIVAÇÃO

 

O princípio da motivação, preceito constitucional encontrado no Art. 93, inc. IX CF, que abrange qualquer procedimento do Ordenamento Jurídico brasileiro, tem como sua única exceção o Tribunal do Júri, e consequentemente é o cerne de todos os problemas do instituto.

 Para FERRAJOLI (2006, p. 497-498), o principio não só exprime, como também garante a natureza cognitiva do juízo, vinculando-o a legalidade, e, acima de qualquer coisa, apoio numa real analise dos fatos, demonstrando a humanidade do julgador e do processo. Complementa-se ao entendimento do doutrinador, a indicação de que o princípio oferece um controle tanto social, quanto legal em cima de uma decisão, uma vez que, ao motivar, o juiz deixa de ser o homem, e passa a ser o Estado, que não analisa de forma mecânica, muito menos de forma subjetiva, e sim de forma justa, analisando o Direito junto ao fato com todas as suas variações, e não de forma separada.

Novamente, nesta falta de motivação, encontra-se um vício, talvez o mais grave, do autoritarismo. O julgamento por fatores subjetivos, inerentes ao processo, é típico de um sistema inquisidor, pois, além de deixar a sociedade a mercê de vontades individuais, ainda revoga direitos constitucionais como o contraditório, a ampla defesa, o duplo grau de jurisdição, o direito a um julgamento justo por autoridade competente e imparcial, uma vez que o acusado pode ser condenado por motivos diversos, sem que se encaixe num padrão normativo, ou mesmo que tenha um mínimo supedâneo jurídico, tendo sua defesa prejudicada, uma vez que não dá para invocá-la plenamente, sem que seja conhecido o real motivo de sua punição.

Com esta análise, é possível verificar que a ausência de motivação é uma afronta não somente à obrigação constitucional de fundamentação, mas também ao princípio da publicidade, vez que não deixa transparecer os motivos geradores da sentença. Impossibilita e ofende também a presunção de inocência, uma vez que não dá para estabelecer critérios para legitimar a decisão proferida, vez que muitas vezes o jurado já comparece em plenário com a decisão tomada.

Nesta toada, Fernando C. Tourinho Filho(2008, p.28) defende que “sentença sem motivação é corpo sem alma. É nula. Se trata, conforme acabamos de ver, de requisito estrutural da sentença, formalidade, portanto, essencial, fácil concluir-se que sentença sem motivação é uma não sentença.”

Ainda, no entendimento de Fabrício Dreyer de Ávila Pozzebon (2006, p.247), a motivação vai muito além de um simples principio do direito, ela é a real garantia de defesa do cidadão contra eventuais afrontas ao seu direito, que vai muito além do processual, como a defesa contra eventuais abusos de poder estatal, a garantia da materialização do direito a prestação jurisdicional de forma efetiva.

Certeiramente é possível afirmar que a monstruosidade em manter a possibilidade de decisões imotivadas talvez seja a maior obscenidade contra um sistema democrático. Como bem afirmaLopes Jr. (2014, p.1078), não seriam necessárias laudas e laudas fundamentando obviedades, ou mesmo elucidações técnicas. Bastaria que o jurado indicasse objetivamente quais critérios utilizou para chegar à sentença, o que o motivou a condenar ou absolver.

A decisão dos jurados é absolutamente ilegítima por que carecedora de motivação. Não há a menor justificação (fundamentação) para seus atos. Trata-se de puro arbítrio, no mais absoluto predomínio do poder sobre a razão. E poder sem razão é prepotência. (LOPES JR, 1078)

Por fim, fica claro que as regras aplicadas ao júri no ordenamento jurídico do Brasil tratam-se apenas de uma herança inquisitorial de períodos passados, mascarada de democracia, uma vez que sua aplicação quase que em sua totalidade é uma afronta aos princípios basilares da Constituição Federal, que visa, acima de tudo, resguardar os pilares democráticos que regem (deveriam reger) o País.

 

3. INQUISIÇÃO DEMOCRÁTICA: QUANDO A MÍDIA SE TORNA O QUARTO PODER

 

Inicialmente, cabe explicar o título do capítulo, uma vez que ele pode causar estranheza num primeiro momento: como pode existir uma inquisiçãodemocrática?

O que ocorre atualmente, é que a democracia é um dos poucos sistemas que oferece em sua essência os elementos para sua autodestruição, principalmente no caso do ordenamento jurídico brasileiro, que, como já afirmado anteriormente, é historicamente recente, não tendo ainda se consolidado como sistema, arraigado a tantas heranças autoritárias.

Neste sentido, após o trauma de um regime militar que perdurou décadas censurando a imprensa e a livre expressão de ideias, qualquer menção a limitação destes princípios corre o risco de soar como tentativa de golpe.

Porém, mesmo dentro de uma democracia, determinados princípios e direitos devem ser utilizados com zelo e responsabilidade, o que não ocorre com a imprensa contemporânea, que muitas vezes aproveita sua liberdade para trabalhar como um poder paralelo aos três poderes, que indiscriminadamente segue suas próprias regras, julgando, e muitas vezes condenando moralmente condutas sociais, sem observar o menor critério jurídico.

Justamente por estes vícios ditatoriais que existem na sociedade, dificulta ao cidadão leigo compreender que um julgamento, ainda que moral, que não siga um procedimento, que careça de provas, e que seja feito com base nas opiniões pessoais de uma pessoa – ou organização – e que seja direcionado para um fim particular e específico, nada mais é do que um modelo autoritário de julgamento.

E é justamente aí que se encontra a antítese Inquisição Democrática, uma vez que a imprensa se utiliza de ferramentas típicas da democracia – como a liberdade de expressão e imprensa – abusando de seu domínio, para fortalecer uma conduta tipicamente inquisitória – um quarto poder, de julgamento moral.

Esta atuação da mídia, pode ser claramente nos últimos três cases de grande repercussão que foram vinculados ao procedimento do Júri – os casosVon Richthofen, Isabela Nardoni e Menino Bernardo.Dos três, somente o caso do Menino Bernardo ainda não foi para julgamento.

Sem que se faça um juízo de valor acerca da responsabilidade dos réus, serão analisados separadamente, a forma como a mídia interferiu no destino dos julgamentos, a seguir:

 

3.1. CASO RICHTHOFEN

 

Caso Richthofen é o nome dado ao processo referente ao homicídio de Manfred e Marísia Von Richthofen, a mando de sua filha Suzane.

O parricídio ocorrido no bairro do Brooklin, em São Paulo, ganhou repercussão nacional tanto pela situação financeira promissora dos envolvidos quanto pela brutalidade com que foi cometido em outubro de 2002.

A mídia brasileira fez cobertura completa não somente do caso, mas também da vida pessoal dos familiares, chegando ao ponto de expor detalhes do processo de inventário dos bens deixados pelo casal, que tramitavasob segredo de justiça. Cogitou-se na época transmitir ao vivo a sessão do tribunal do júri, tendo as emissoras autorizações para captação de áudio e vídeo do julgamento.

Porém, o fato que mais chamou atenção foi o vazamento de uma conversa entre Suzane e seu advogado, pouco antes de uma entrevista, onde ele a orienta a chorar diante das câmeras, buscando causar uma comoção pública, que contaria a seu favor em julgamento. Destaca-se que as conversas entre defensor e cliente são protegidas pelo sigilo profissional, portanto a exploração desta conversa na mídia se mostra como ilegal, um ato ilícito, verdadeiro uso da liberdade de imprensa em excesso.

Porém, com o vazamento da conversa poucos dias antes do julgamento, o efeito foi justamente contrário, gerando diversos ônus para a ré, lhe sendo negados diversos direitos comuns a qualquer acusado.

Ressalta-se entre estes reflexos o ocorridono processo de habeas corpus, no qual, ao ser questionado, o Ministério Público do Estado de São Paulo manifestamente se mostrou influenciado pela conversa entre o advogado e a ré para elaborar seu parecer, se posicionando a favor da manutenção da prisão desta.

“[...]A acusada, na data de ontem, concedeu à TV Globo, no Fantástico, uma longa entrevista, em que tentou convencer os milhões de telespectadores de que se trata de uma pessoa frágil, solitária e beirando uma alienação quase esquizofrênica da realidade. Todavia, no curso da entrevista, acabaram, a acusada e a troupe que a acolhe, por cometer incontinências verbais graves, que desnudaram uma farsa canhestra, que tinha por único objetivo montar um engodo, uma encenação, com alguma pretensão de amenizar a situação jurídica da ré por ocasião do julgamento. Contudo, o que poderia ser um folhetim guarda contornos de extrema gravidade. A ré, em liberdade, mantém um comportamento indisfarçadamente arrogante, em que pretendia ilaquear a boa-fé dos quantos a viam desfilar um comportamento bizarro a uma equipe de reportagens. No momento em que percebe sua farsa ruir, as derradeiras esperanças de atenuar a reprovabilidade social de sua conduta foram por terra e ela, mais do que ninguém, sabe que cativou ainda mais a repulsa do senso médio comum.Em outras palavras: nada mais existe a prendê-la aoprocesso; o joguete que pretendeu fazer, acolitada por um grupo deadvogados que desastradamente lhe expuseram tal como é, esvaziouseu significado e deu a ela a alternativa única que resta: a fuga,fortemente estimulada com a aproximação do julgamento, do qual já se encontra intimada.” (STJ, 2006)

É perfeitamente cabível destacar que Suzane permaneceu por meses em liberdade, sem dar qualquer indício de tentativa ou planejamento de fuga, bem como nunca foi desidiosa em relação à justiça. 

Mesmo se tratando de artimanha provocada pelo advogado, imputar publicamente uma conduta criminosa à ré foi uma ofensa à presunção de inocência, e mais, influenciou diretamente a convicção não só do júri, mas também de todos os membros do Judiciário, incluso aí o ministro do Superior Tribunal de Justiça Paulo Medina, que, em seu voto, afirmou categoricamente que sua convicção fora talhada de forma mais rigorosa em razão da exposição midiática e clamor público, conforme se verifica nos seguintes trechos:

“[...]Todavia, este processo é diferente de outros tantos; ele é diferente porque sua repercussão será diferente da repercussão dos outros. Ele poderá ser um processo paradigma. Ele poderá ser um voto paradigma. Ele poderá ser um voto a orientar toda a jurisprudência nacional. A publicidade existente em torno do caso, a publicidade abusiva em torno do caso e a força da comunicação estão a exigir de cada um de nós reflexão maior, mais consciente, mais firme.”

“[...]Minha consciência custa a admitir, que, às vésperas de um julgamento, a dias de um julgamento, uma paciente, acusada de um crime bárbaro, bárbaro e que toda a sociedade brasileira acusa, possa ser deixada em liberdade para apresentar-se solta perante o Tribunal do Júri. É um detalhe sutil, pode não ser significativo, mas é importante. É importante que a sociedade, com o juizado, com o juiz, com o Poder Judiciário, reaja a esses ventos de impunidade, porque se por meio de um crime grave, qual seja, matar a mãe, matar o pai, segue-se a prisão até as vésperas do julgamento, por que às vésperas do julgamento, liberta-se a mulher, liberta-se a ré, para que ela possa responder solta, tirando do juiz natural do Tribunal do Júri o seu ato de julgar.“

“[...]É preciso saber que a realidade deve conduzir os votos do juiz. É preciso conscientizar que o juiz não é alheio às circunstâncias que estão a envolvê-lo. Ele participa da insatisfação, ele participa do inconformismo, ele participa da renovação de consciência. Isso me faz meditar uma vez mais. Mas meditar, é bom que se afirme, não criando precedente. O Ministro Paulo Gallotti, ainda há pouco, falou a respeito disso. Cada caso é um caso, não estamos de acordo com esse ou outro fato. Não estou criando precedente, nem modificando o meu voto. Minha consciência sempre foi liberal e continuará sendo liberal. Porém, estou dizendo que há casos excepcionais, há casos desiguais, que não vamos tratar com igualdade não, vamos tratar desigualmente.”

“[...]Neste caso específico - não em outros casos, não estou, portanto, permitindo uma abertura grande para que se possa argüir precedentes - não é aconselhável, não é prudente, não é razoável, que se dê soltura à paciente. Isso por meio, Ministro Hamilton Carvalhido, do clamor público. Sabemos que o clamor público não condena ninguém, assim como o clamor público não pode prender ninguém, mas há, também, decisões que entendem que o clamor público, excepcionalmente, pode conduzir à prisão.”

Em decorrência destes posicionamentos e dos outros ministros, todos amplamente divulgados na mídia, o habeas corpus foi negado a Suzane e poucos dias depois ela foi condenada à pena máxima, lhe sendo imputada uma condenação de 39 anos e 6 meses de prisão, a qual ela cumpre até hoje, 9 anos depois, em regime fechado, uma vez que foi negada por diversas vezes a progressão de regime.

 

3.2. CASO NARDONI

 

Também ocorrido na cidade de São Paulo, mais especificamente na Vila Guilherme, o Caso Nardoni tratava-se da investigação do homicídio de Isabella Nardoni, de cinco anos de idade, ocorrido em Março de 2008.

Aproximadamente dois anos após a sentença do Caso Richthofen, a sociedade brasileira se viu novamente frente a um terrorismo midiático diante de um crime bárbaro, no âmbito de uma família de classe média/alta da sociedade paulistana. Desta vez, ao contrário do primeiro, os indícios levavam a crer que os autores do homicídio tratavam-se de Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá, respectivamente pai e madrasta da criança, prato cheio para reportagens sensacionalistas.

Dessa feita, menos de uma semana após o incidente, a revista Veja, em sua edição de número 2055, publicada em 9 abril de 2008, trazia como manchete de capa a matéria intitulada “Quando o mal triunfa”, que trazia como conteúdo casos de violência contra crianças, dentre eles a morte de Isabela Nardoni. Na mesma edição, a matéria “O anjo e o monstro”, com cerca de seis páginas, apresentava a versão dos policiais acerca do homicídio e traçava um perfil dos suspeitos, já prescrevendo o que estava por vir:

Alexandre Nardoni é tido como uma pessoa violenta. Das quinze testemunhas ouvidas até agora pela polícia, dez afirmaram ter tido conhecimento de que ele agredia fisicamente a mulher. [...] Moradores contam que as brigas eram tão freqüentes e ruidosas que já haviam resultado em quatro advertências por parte da administração do condomínio. (Veja, 2008, p.97)

Curiosamente, esta mesma reportagem trazia uma fotografia de Isabella sorrindo, que acabou se tornando símbolo dos protestos por “justiça” no caso, estampada em camisetas com a escrita “Anjo”.

A mesma revista, na edição nº 2057, de 23 de Abril de 2008, trouxe o primeiro juízo de valor acerca dos acusados numa capa tendenciosa, com os dizeres em letras garrafais: “Foram Eles”. No interior, era apresentada ao público uma meticulosa reconstrução dos fatos, tratando Alexandre e Anna Carolina como culpados pelo crime, imputando-lhes as características de “Frios e Dissimulados”.

Reportagens como esta se repetiram de forma incansável durante toda a tramitação do processo, e consequentemente geraram reflexos processuais. Diversos Habeas Corpus foram impetrados, sem êxito. Dentre eles, destaca-se o de nª 95966, do Supremo Tribunal Federal, que apresenta a seguinte nota do Ministro Joaquim Barbosa:

A preservação da ordem pública não se restringe apenas a medidas de prevenção da irrupção de conflitos e tumultos, embora essas sejam maximamente importantes, mas abrange também a promoção daquelas providências de resguardo à integridade das instituições, à sua credibilidade social e ao aumento da confiança da população nos mecanismos oficiais de repressão às diversas formas de delinqüência.

Mais uma vez é possível notar o quanto a repercussão midiática de um caso pode interferir negativamente para o réu num processo, uma vez que os julgadores utilizam destes não só para análise do direito, mas também para uma fortificação das instituições. Mais uma vez a presunção de inocência é deixada de lado, juntamente com todo o fundamento de Democracia.

No primeiro dia do julgamento, em 22 de março de 2010, era certeira a condenação dos acusados: a chegada dos réus foi acompanhada por cerca de mil manifestantes que clamavam por justiça e proferiam ameaças de linchamento. Após cinco dias de julgamento, acompanhados por todas as mídias, o Brasil pôde ouvir ao vivo a sentença proferida pelo juiz Maurício Fossen - o casal foi declarado culpado por homicídio triplamente qualificado e fraude processual.

Alexandre Nardoni foi condenado a 31 anos, 1 mês e 10 dias - pela agravante de ser pai de Isabella - e Anna Carolina Jatobá, a 26 anos e 8 meses, em regime fechado. Pela fraude processual, devem cumprir 8 meses e 24 dias, em regime semiaberto. A nenhum foi garantido o direito de recorrer em liberdade, e ambos tiveram o pedido de novo júri negado. Recentemente o caso voltou a tomar repercussão na mídia, após uma carcereira do presídio feminino afirmar ter ouvido uma conversa de Anna Carolina afirmando que o pai de Alexandre Nardoni sabia do crime, e orientou as ações do filho desde o principio. O casal permanece cumprindo a pena em regime fechado.

 

3.3. CASO BERNARDO

 

Por ultimo, cabe discorrer sobre o homicídio de Bernardo Boldrini, de 11 anos de idade, dado como desaparecido no dia 4 de abril de 2014, na cidade de Três Passos no Rio Grande do Sul, onde residia com seu pai e madrasta. Dez dias depois, o corpo do menino foi encontrado no município de Frederico Westphalen, há cerca de 80km da cidade onde residia.

Desde o inicio, os indícios apontavam autoria para GracieleUgulini, madrasta da vítima, e EdelvâniaWirganovicz, assistente social, resultando na confissão de ambas. No inquérito também foi indiciado o pai de Bernardo, Leandro Boldrini, indicando sua participação no planejamento do crime, mesmo diante da negativa das outras acusadas.

O inquérito do caso foi entregue com mais de 2 mil páginas, cerca de um mês após o crime. Nele constavam, além da investigação do homicídio, indicações de maus tratos, trazendo à tona procedimentos da Vara da Infância e Juventude que envolviam a vitima e os réus.

Trechos de conversas telefônicas especulativas afirmando a autoria do crime pelo pai do menino, vídeos gravados de brigas entre Bernardo e o pai, juntamente de partes do inquérito foram disponibilizados para a mídia, que por semanas repercutiu o caso, afirmando categoricamente: o pai e a madrasta eram os culpados. A assistente social que confessou ter participado do crime foi deixada de lado, tendo poucas menções a sua autoria.

A Delegada Caroline Bamberg exaustivamente dava entrevistas coletivas, apresentando detalhes da investigação e imputando a autoria do crime aos acusados. Especificamente no dia 13 de maio de 2014, a Delegada, juntamente de outros membros da Secretaria de Segurança do Estado e da Promotora atuante no caso, concedeu entrevista coletiva que se prolongou por mais de uma hora, onde se destacam as afirmações a seguir:

Temos uma testemunha que é amiga de Graciele, informando que final de janeiro foi procurada por ela que relatou que ela e Leandro queriam matar Bernardo. Ela teria dito que ele só não matou o menino porque não tinha um poço [...] Eles mataram o menino na sexta-feira e disseram que se deram conta somente no domingo. Foram três dias. Como essa amiga referiu a ideia da morte do Bernardo, se apavorando com a situação de que o pai queria matar o menino, a Graciele não fez nenhuma proposta para ela. Isso foi há quatro meses [...] Desde o início, Leandro se mostrava sereno e, em todos os momentos, demonstrava estar tranquilo quanto ao desaparecimento de Bernardo. Era essa a impressão que ele nos passava. O casal parecia até satisfeito com o sumiço do menino. (GLOBO, Caso Bernardo Boldrini, disponível em: http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/caso-bernardo-boldrini/noticia/2014/05/pai-e-madrasta-de-bernardo-e-amiga-sao-indiciados-por-homicidio-qualificado.html. Acesso em 02 abr.2015)

O caso tomou proporções ainda maiores quando foi colocado em dúvida o suicídio de OdilaineUglione, mãe de Bernardo e esposa de Leandro, em 2010. Especulações começaram surgir, sugerindo que Leandro a teria matado, culminando na reabertura do caso, sendo que, em março de 2015, após uma perícia solicitada pela Delegada juntamente da família de Odilaine, indicou que a carta de suicídio havia sido forjada, deslegitimando a perícia realizada em 2010.

Novamente os personagens foram traçados pela mídia a partir de elementos alheios ao processo. É importante destacar que não se pode fazer um juízo de valor, dentro do Judiciário, com base em situações que em nada se vinculam com o crime. As informações de “Pai Violento” e a suposição acerca do homicídio da primeira esposa servem apenas para fortalecer uma imagem de culpado do réu, muito embora não tenham conexão com o fato discutido. Caso ele realmente tenha matado Odilaine, isto não necessariamente significa que tenha matado também Bernardo, assim como a morte do menino não pode ser considerada consequência lógica dos maus tratos denunciados.

Este processo é o único que continua tramitando, sem previsão de data para a realização da audiência com o Tribunal do Júri. Porém, não restam dúvidas de que os réus ingressarão na sessão plenária já condenados, restando a sua realização com um caráter meramente formal, uma vez que os jurados já estarão viciados pela avalanche de informações apresentadas pela mídia nos últimos meses. Os réus permanecem presos preventivamente.

Por fim, vale ressaltar que a interferência da mídia nos três casos gerou uma condenação prévia dos acusados, sem que lhes fossem oferecidos meios de se defender. As revistas e jornais apresentam a versão mais rentável dos fatos, prova disso é a quase supressão do nome da Assistente Social Edelvânia no rol de acusados do caso Bernardo, nas matérias jornalísticas.Neste mesmo sentido, foram vilipendiados direitos básicos dos réus, como a garantia de um processo justo ou mesmo a presunção de inocência, uma vez que a mídia os condenou antes mesmo da realização do processo. 

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Pela observação dos aspectos apresentados, é possível traçar uma análise evolutiva do Instituto Tribunal do Júri no Ordenamento Jurídico Brasileiro, logo, verifica-se que, na contramão do resto do mundo, o Júri foi implantado no Brasil de forma impositiva e transversal por D. Pedro I, sendo desta forma uma figura autoritária desde o seu nascimento.

Nesta toada, analisando suas mutações, é possível observar que o Tribunal do Júri instituído pela Constituição de 1988 é apenas uma retomada do que fora instituído em 1946, não ocorrendo uma profunda discussão acerca da sua aplicabilidade num Ordenamento Democrático. Além do fato de que sua regulamentação, prevista no Decreto-Lei nº 3.689/41, o Código de Processo Penal, é uma derivação de um regulamento do Código Rocco, de Benito Mussolini, conhecidamente autoritário.

A partir desta avaliação, é possível observar a presença de diversos vícios fundados neste autoritarismo presentes nos princípios que regem o Instituto, tendo como principal origem das arbitrariedades a desnecessidade de motivação da decisão do jurado. Esta única vicissitude de regras constitucionais presente no Tribunal do Júri, é capaz de contaminar todo o procedimento, tornando-o inaplicável num ordenamento democrático.

Uma vez que não se faz possível a completa extinção do Júri, visto que se trata de cláusula pétrea, é preciso repensar o seu procedimento para que atinja o seu real objetivo – fazer justiça. A imposição de simples motivação das decisões do jurado, ou seja, se simplesmente fosse condicionado ao jurado apresentar de forma objetiva e clara o que o fez chegar a determinada convicção e a partir desta, condicionasse a possibilidade de recursos caso esta decisão não fosse coerente com o que se apresenta como Direito, já teríamos um grande avanço. Além de que, diante desta possibilidade, também moralizaríamos a Sessão do Tribunal do Júri, para que ela se tornasse uma composição séria de fatos, e não mais um circo de convencimento de jurados.

Numa última análise, faz-se ainda necessária uma regulamentação dos meios de comunicação social, ou mesmo da publicidade de processos que envolvam o Júri, para evitar que casos de grande repercussão sejam julgados unicamente pela comoção social gerada por conta da manipulação da noticia pela mídia. É preciso refletir sobre os efeitos deste tipo de julgamento moral, capaz de afetar qualquer membro da sociedade, que pode se tornar refém de uma estória criada pela mídia para vender jornal, seja ele culpado ou inocente. No fim, ainda cabe a provocação: “Numa democracia, é mais saudável um culpado livre, ou um inocente encarcerado?”

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STJ - HC: 58813 SP 2006/0099852-0, Relator: Ministro NILSON NAVES, Data de Julgamento: 29/06/2006, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJ 04.12.2006 p. 383

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Sobre o autor
Guilherme Augusto de Andrade Bortolossi

Possui graduação em Direito pelo Fundação Universidade Regional de Blumenau(2013) e Pós-Graduação em Direito Processual Penal pela Universidade Anhanguera - Uniderp(2015).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

O presente artigo foi proposto como Trabalho de Conclusão de Curso da Pós Graduação em Direito Processual Penal.

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