A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental é um instrumento processual que foi inserido no ordenamento jurídico brasileiro pelo art. 102, §1º, da CF/88. Ademais, por se tratar de norma de eficácia limitada, a Lei 9.882/99 cuidou de regulamentar o instituto, cuja finalidade, em síntese, consiste em evitar ou reparar lesão a preceito fundamental por ato do poder público.
No que tange à expressão preceito fundamental e a definição de seu respectivo alcance, deve-se pontuar que se trata de atividade espinhosa, em razão da natural amplitude do tema. Todavia, pode-se relacionar preceitos fundamentais com a proteção das regras e princípios mais sensíveis previstos no texto constitucional. Nesse ponto, o Professor Dirley da Cunha Júnior leciona em sua obra que: “pode-se conceituar preceito fundamental como toda norma constitucional – norma-princípio e norma-regra – que serve de fundamento básico de conformação e preservação da ordem jurídica e política do Estado.” (Curso de Direito Constitucional, 2013, pág. 354)
Porém, a discussão sobre o instituto ganha relevo acentuado ao se deparar com a análise do direito pré-constitucional, vale dizer, ao se analisar a compatibilidade daquelas normas que foram editadas sob a égide da Constituição decaída de 1969 em confronto com a nova Constituição de 1988. Enfim, a ADPF, tecnicamente, seria instrumento jurídico hábil para se promover o controle de constitucionalidade do direito pré-constitucional? A resposta é negativa.
Com efeito, nesse caso, a ADPF não provoca o controle de constitucionalidade, uma vez que a norma objeto de análise foi editada durante o período em que vigorou uma constituição pretérita, mas sim provoca o controle de compatibilidade. É que a jurisprudência do STF não admite que se efetive controle de constitucionalidade de normas pré-constitucionais, na medida em que a solução, nesse caso, é a análise da compatibilidade por meio da aplicação do critério cronológico, cuja conclusão será pela recepção ou não. Sobre o tema, elucidativo é o raciocínio do Ministro do STF Paulo Brossard exposto na ementa do julgamento da ADI n. 2. Veja-se:
EMENTA: CONSTITUIÇÃO. LEI ANTERIOR QUE A CONTRARIE. REVOGAÇÃO. INCONSTITUCIONALIDADE SUPERVENIENTE. IMPOSSIBILIDADE. 1. A lei ou é constitucional ou não é lei. Lei inconstitucional é uma contradição em si. A lei é constitucional quando fiel à Constituição; inconstitucional na medida em que a desrespeita, dispondo sobre o que lhe era vedado. O vício da inconstitucionalidade é congênito à lei e há de ser apurado em face da Constituição vigente ao tempo de sua elaboração. Lei anterior não pode ser inconstitucional em relação à Constituição superveniente; nem o legislador poderia infringir Constituição futura. A Constituição sobrevinda não torna inconstitucionais leis anteriores com ela conflitantes: revoga-as. Pelo fato de ser superior, a Constituição não deixa de produzir efeitos revogatórios. Seria ilógico que a lei fundamental, por ser suprema, não revogasse, ao ser promulgada, leis ordinárias. A lei maior valeria menos que a lei ordinária. 2. Reafirmação da antiga jurisprudência do STF, mais que cinqüentenária. 3. Ação direta de que se não conhece por impossibilidade jurídica do pedido. (ADI 2, Relator(a): Min. PAULO BROSSARD, Tribunal Pleno, julgado em 06/02/1992, DJ 21-11-1997 PP-60585 EMENT VOL-01892-01 PP-00001)
Ademais, nesse ponto, poder-se-ia questionar que esse cenário fora sensivelmente alterado com a entrada em vigor da Lei 9.882/99, que regulamentou a ADPF, na medida em que seu art. 1º, parágrafo único, inciso I, prevê expressamente o cabimento da ação em face de atos anteriores à constituição. Ocorre que o fato de ser cabível a ADPF nessa hipótese não quer dizer, necessariamente, que se está possibilitando o controle de constitucionalidade de leis pretéritas tendo-se como parâmetro a nova constituição. Em verdade, o que se permitiu, na prática, é a provocação da Suprema Corte, pela via concentrada, para deliberar sobre o juízo de recepção ou não de normas pré-constitucionais, sanando-se uma lacuna existente até então, pois, anteriormente, somente era possível se discutir a respeito da recepção ou não pela via incidental.
Logo, a ADPF não se presta ao controle de constitucionalidade de normas pré-constitucionais, mas funciona como instrumento adequado para se provocar o controle concentrado perante o STF buscando-se a pronúncia de recepção ou não da norma discutida - e não a declaração de sua (in)constitucionalidade. Nesse sentido, veja-se um recente precedente do STF (2.9.2014) que comprova a manutenção do entendimento da Corte quanto à impossibilidade de se efetivar o controle de constitucionalidade de direito pré-constitucional:
CONTROLE NORMATIVO ABSTRATO A NOÇÃO DE CONSTITUCIONALIDADE-INCONSTITUCIONALIDADE COMO CONCEITO DE RELAÇÃO A QUESTÃO PERTINENTE AO BLOCO DE CONSTITUCIONALIDADE (ADI 514/PI, REL. MIN. CELSO DE MELLO ADI 595/ES, REL. MIN. CELSO DE MELLO, v.g.) DIREITO PRÉ-CONSTITUCIONAL CÓDIGO ELEITORAL, ART. 224 INVIABILIDADE DESSA FISCALIZAÇÃO CONCENTRADA EM SEDE DE AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE AÇÃO DIRETA NÃO CONHECIDA PARECER DA PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA PELO NÃO PROVIMENTO RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO . - A ação direta de inconstitucionalidade não se revela instrumento juridicamente idôneo ao exame da legitimidade constitucional de atos normativos do Poder Público que tenham sido editados em momento anterior ao da vigência da Constituição sob cuja égide foi instaurado o controle normativo abstrato . - A superveniência de uma nova Constituição não torna inconstitucionais os atos estatais a ela anteriores e que, com ela, sejam materialmente incompatíveis. Na hipótese de ocorrer tal situação, a incompatibilidade normativa superveniente resolver-se-á pelo reconhecimento de que o ato pré-constitucional acha-se revogado, expondo-se, por isso mesmo, a mero juízo negativo de recepção, cuja pronúncia, contudo, não se comporta no âmbito da ação direta de inconstitucionalidade. Doutrina. Precedentes. (STF - ADI: 4222 DF , Relator: Min. CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 01/08/2014, Tribunal Pleno, Data de Publicação: ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-169 DIVULG 01-09-2014 PUBLIC 02-09-2014)
Há mais. Em todas as ADPFs em que se apreciou o mérito ajuizadas perante o STF até o presente momento versando sobre direito pré-constitucional, a conclusão da corte não foi pela declaração de constitucionalidade ou inconstitucionalidade dessas normas, mas sim pela recepção ou não. Veja-se, como exemplo, as conclusões exaradas nas ADPFs 33 e 130: ADPF n. 33: “15. Argüição de descumprimento de preceito fundamental julgada procedente para declarar a ilegitimidade (não-recepção) do Regulamento de Pessoal do extinto IDESP em face do princípio federativo e da proibição de vinculação de salários a múltiplos do salário mínimo (art. 60, §4º, I, c/c art. 7º, inciso IV, in fine, da Constituição Federal) (ADPF 33, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 07/12/2005, DJ 27-10-2006 PP-00031 EMENT VOL-02253-01 PP-00001 RTJ VOL-00199-03 PP-00873).”, e ADPF n. 130: “Total procedência da ADPF, para o efeito de declarar como não recepcionado pela Constituição de 1988 todo o conjunto de dispositivos da Lei federal nº 5.250, de 9 de fevereiro de 1967. (STF - ADPF: 130 DF , Relator: Min. CARLOS BRITTO, Data de Julgamento: 30/04/2009, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-208 DIVULG 05-11-2009 PUBLIC 06-11-2009 EMENT VOL-02381-01 PP-00001).”
Adicione-se, também, que tal argumentação se torna ainda mais robusta pelo fato de ser desnecessário se observar a cláusula de reserva de plenário quando tal órgão analisa questões atinentes à análise de compatibilidade entre o direito pré-constitucional e a atual ordem constitucional. Com efeito, em virtude de não se tratar de controle de constitucionalidade, realmente não há razão para se observar a regra prevista no art. 97 da CF/88. Nesse ponto, veja-se a jurisprudência remansosa da Corte Constitucional:
"Agravo Regimental. Reclamação. Alegado desrespeito à cláusula de reserva de plenário. Violação da Súmula Vinculante 10. Não ocorrência. Norma pré-constitucional. Agravo regimental a que se nega provimento. I - A norma cuja incidência teria sido afastada possui natureza préconstitucional, a exigir, como se sabe, um eventual juízo negativo de recepção (por incompatibilidade com as normas constitucionais supervenientes), e não um juízo declaratório de inconstitucionalidade, para o qual se imporia, certamente, a observância da cláusula de reserva de plenário." (Rcl 15786 AgR, Relator Ministro Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, julgamento em 18.12.2013, DJe de 19.2.2014)
"Ementa: (...) 1. A cláusula de reserva de plenário (full bench) é aplicável somente aos textos normativos erigidos sob a égide da atual Constituição. 2. As normas editadas quando da vigência das Constituições anteriores se submetem somente ao juízo de recepção ou não pela atual ordem constitucional, o que pode ser realizado por órgão fracionário dos Tribunais sem que se tenha por violado o art. 97 da CF. (...)" (AI 669872 AgR, Relator Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, julgamento em 11.12.2012, DJe de 14.2.2013)
"(...) sustenta o recorrente que houve violação ao artigo 97 da Constituição Federal, bem como ao enunciado da Súmula Vinculante n. 10, em virtude de o Tribunal a quo ter negado aplicação ao § 3º do artigo 4º da Lei 4.156/62, sem, contudo, declarar sua inconstitucionalidade. No entanto, verifico que a pretensão do recorrente não encontra amparo na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, uma vez que o diploma legislativo afastado é anterior à Constituição Federal. Dessa forma, inaplicável a reserva de plenário prevista no artigo 97 da Constituição Federal, existindo mero juízo de recepção do texto pré-constitucional. Em outros termos, examinar se determinada norma foi ou não revogada pela Constituição Federal não depende da observância do princípio do Full Bench." (AI 831166 AgR, Relator Ministro Gilmar Mendes, Segunda Turma, julgamento em 29.3.2011, DJe de 29.4.2011)
Por fim, em caso de se admitir que a ADPF se presta ao controle de constitucionalidade de normas pré-constitucionais, deve-se admitir o uso da ADI também para essa finalidade. Mas por qual razão o STF não admite o uso da ADI em tais casos, conforme se verificou nos precedentes retrocitados? A resposta é simples: por não existir controle de constitucionalidade em face de normas pré-constitucionais, resolvendo-se tal conflito pelo critério cronológico da recepção ou não.
Portanto, no que diz respeito à análise da validade do direito pré-constitucional, conclui-se que a ADPF é instrumento jurídico utilizado para se provocar o STF, pela via concentrada, para que a Corte realize juízo de compatibilidade entre essas normas e a nova ordem constitucional, cuja decisão será pela não recepção/revogação ou recepção/validade, sendo certo que a ADPF, nesse caso, não se revela como instrumento hábil para se promover o controle de constitucionalidade, em razão da impossibilidade lógica de tal fenômeno.