Direito à identidade de gênero à luz da constitucionalização do Direito Civil: análise do Projeto de Lei João W. Nery (PL nº 5.002/2013)

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16/06/2015 às 17:33
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O presente trabalho analisa o fenômeno das transgeneridades em seus aspectos históricos, sociais, políticos e jurídicos, tecendo uma crítica à omissão do Poder Legislativo no que diz respeito à tutela da identidade de gênero.

1. INTRODUÇÃO

Historicamente, as pessoas transexuais, travestis e transgêneros encontram-se à margem das relações sociais, sendo vítimas diárias de discriminação, desde à violência física, verbal e psicológica, à total inadequação aos ambientes que exijam o convívio interpessoal, como escolas, universidades e, principalmente, o mercado de trabalho. Para além da marginalização, permaneceram na ilegalidade durante a Ditadura Militar, conseguindo, contudo, embora a passos lentos, fazer uso da redemocratização e, no âmbito jurídico, da constitucionalização dos direitos civis, com a elevação do princípio da dignidade humana a cláusula geral, subsidiado pelos princípios da igualdade e liberdade.

Nas últimas duas décadas, a luta pela efetivação de direitos das pessoas trans tomou voz política, mas também no âmbito judicial, com mudanças que envolveram a participação direta do Poder Judiciário – como a garantia da cobertura da cirurgia de transexualização pelo Sistema Único de Saúde e as diversas ações de retificação de nome e sexo no registro civil ajuizadas por pessoas que obtiveram a redesignação sexual por vias cirúrgicas – e do Executivo – com a elaboração de resoluções e portarias que garantissem o acesso a direitos básicos que os adequassem à sociedade. Contudo, restou omisso o Poder Legislativo no que diz respeito à regulamentação dos procedimentos cirúrgicos e das alterações dos documentos oficiais.

O presente trabalho está dividido em três partes. O primeiro capítulo fará uma abordagem histórica e conceitual acerca da constitucionalização do Direito Civil, demonstrando, pois, a elevação dos princípios como base para a tomada de decisões que visam garantir os direitos da personalidade, com fulcro na liberdade, igualdade e dignidade da pessoa humana, os quais justificam o direito à autodeterminação de gênero. Demonstrar-se-á, também, que a Nova Ordem Civil-Constitucional tem como fim a garantia da autonomia privada especialmente em seu aspecto existencial e subjetivo.

O segundo capítulo busca trabalhar o conceito de transexualidade e transgeneridade, em seus aspectos sócio-político, jurídicos e culturais, trazendo à baila as necessidades de tutela para que estas pessoas possam conviver em sociedade com dignidade, manifestando suas subjetividades a partir do direito à autodeterminação de gênero e livre identidade. Historiciza, também, as lutas e vitórias, demonstrando, pois, os avanços jurídicos e ressaltando a tendência mundial à despatologização da transexualidade, além de ressaltar a importância do direito à identidade civil para vivência no seu âmbito social.

Por fim, o terceiro capítulo faz uma exposição acerca do Projeto de Lei nº 5.002/13, Lei de identidade de gênero, o qual foi inspirado na legislação argentina, diga-se a mais progressista no que diz respeito à efetivação de direitos de pressoas transgêneras. O texto legislativo tem como princípios: a celeridade, simplicidade, pessoalidade e o sigilo, trazendo consigo, ainda, dispositivos que vedam a obrigatoriedade de laudo médico ou psicológico com diagnóstico de transexualismo, a realização de cirurgia transgenerizadora ou a judicialização para a retificação do nome e do sexo nos documentos oficiais de registro civil.

Neste ínterim, o trabalho tem como objetivo ressaltar a tutela do direito à identidade de gênero, por sua autodeterminação, com fulcro nos direitos da personalidade; discutir a questão da transexualidade e mostrar suas necessidades jurídicas e sociais, ressaltando avanços e pontuando omissões e, por fim, analisar o projeto de lei que busca a democratização dos direitos trans, com sua despatologização e não judicialização.

Válido esclarecer, ainda, alguns pontos no que diz respeito à nomenclatura utilizada no corpo do trabalho. Embora o termo formal seja transexualismo, optou-se por não o utilizar, vez que possui uma carga discriminatória e conservadora, bem como os/as tiram da condição de pessoas “trans” para portadoras de um transtorno psicológico.

Utiliza-se, também, os termos transhomem e transmulher, pois o torna um substantivo e não uma qualificação, ou um adjetivo, como no caso de transexual masculino ou transexual feminino. Ainda, porque, em uma lógica de multigeneridades, torna-se adequado fugir dos binarismos de gênero impostos por uma lógica heteronormativa, do masculino/feminino.[1]

A metodologia utilizada na monografia baseou-se em um estudo descritivo analítico, desenvolvido através de pesquisa bibliográfica, mediante explicações embasadas em trabalhos publicados em forma de livros, revistas, publicações, dados oficiais publicados na internet e jurisprudências; qualitativa, com aprofundamento na compreensão das relações humanas e no combate à discriminação; descritiva, buscando explicar, classificar e interpretar o problema apresentado; exploratória, objetivando aprimorar as ideias através de informações sobre o tema.


2. O DIREITO CIVIL-CONSTITUCIONAL E A TUTELA DA PERSONALIDADE

A tutela da autonomia privada assegurada pela Constituição de 1988, entendida no seu sentido amplo[2], foi notadamente fortalecida em seu aspecto existencial, tendo-se observado rico processo de publicização do Direito Civil, ante a elevação da tutela da pessoa a cláusula geral, justificada pela observância do princípio da dignidade da pessoa humana aliada ao direito de liberdade e ao direito fundamental à igualdade.

Destaca-se, pois, que esta tríplice construção – dignidade, liberdade e igualdade –, aliada ao princípio constitucional de solidariedade social em detrimento dos conceitos individualistas e patrimonialistas atualmente superados, já está amplamente aceita e defendida pela doutrina e pelos julgados dos tribunais superiores[3], os quais cumprem o papel de sobrepujar as omissões legislativas que não contemplam as contemporâneas demandas referentes à personalidade.

Gustavo Tepedino (2001, p.7) faz a crítica à defasagem da técnica legislativa no Direito Civil:

Pretendem alguns, equivocadamente, fazer aprovar um novo Código Civil, concebido nos anos 70, cujo Projeto de Lei toma hoje n. 118, de 1984 (n. 634, de 1975, na Casa de origem), que pudesse corrigir as imperfeições do anterior, evidentemente envelhecido pelo passar dos anos, como se a reprodução da mesma técnica legislativa, quase um século depois, tivesse o condão de harmonizar o atual sistema de fontes.

Neste ínterim, durante o processo de adequação do dever ser ao ser, a desvinculação com o ideal liberal presente no direito privado surgido no século XVIII, o qual tinha como primazia o “ter” em detrimento do “ser”, teve singular relevância, vez que elevou a dignidade da pessoa humana a princípio-guia de toda a ordem jurídica e inviabilizou a defesa da propriedade e da liberdade à revelia do bem-estar do indivíduo.

Observa-se que, neste contexto, a proximidade dos direitos humanos, direitos fundamentais e das garantias advindas da personalidade asseguraram a proteção da dignidade, vez que estão intimamente ligados à construção da subjetividade do indivíduo.

Tepedino (2001, p.6) questiona, ainda, acerca da existência de um direito pós-moderno que ensejaria uma reformulação legislativa que oferecesse novos critérios interpretativos e cita, para tanto, Erik Jayme, que ressalta o fato de que tal cultura jurídica é caracterizada por quatro fenômenos: “o pluralismo, a comunicação, a narrativa e o retorno aos sentimentos (retour aux sentiments), cujo leitmotiv seria 'o papel primordial dos direitos humanos'” (TEPEDINO, 2001).

Tais considerações não parecem ociosas, ganhando, antes especial importância, quando se verifica a impossibilidade de regulamentação de tantas novas situações que se proliferam a cada dia, bem como a dificuldade de conhecimento (não só por parte do cidadão comum, mas também por parte dos operadores), da difusa legislação em vigor. Pode-se mesmo dizer que a máxima contida no art. 3º da LICC, segundo a qual "ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece", tenha se transformado em uma espécie de mito, numa sociedade em que, como acentuou Pietro Perlingieri, "a desigualdade mais odiosa e mais penosa não se estabelece entre quem tem e quem não tem, mas sobretudo entre quem sabe e quem não sabe". Soma-se a isto a ausência de proposta doutrinária destinada à harmonização (nos planos legislativo e interpretaitivo) de tão intricado sistema de fontes. (TEPEDINO, 2001, p. 07)

Desta feita, tem-se por uma conjuntura Civil-Constitucional que prioriza a eficácia dos direitos fundamentais à privacidade, igualdade e ao livre e digno desenvolvimento da pessoa humana, culminando, assim, na proteção da identidade de gênero, enquanto manifestação intrínseca da personalidade do indivíduo.

Ademais, a proteção jurídica que o princípio da dignidade humana proporciona é também a garantia de que a pessoa será respeitada como um fim em si mesmo, ao invés de ser concebido como meio para a realização de fins e de valores que lhe são externos e impostos por terceiros.

Neste passo, nota-se que o estudo da personalidade, albergado pelo apurado histórico da constitucionalização dos Direitos Civis, conduzirá ao entendimento da necessidade de respeito às convicções e projetos pessoais – resguardados os direitos de terceiros – objetivando, pois, a desconstrução da visão heteronormativa, bem como a de “binarismo de gênero” (homem e mulher, feminino e masculino, fêmea e macho) que perpassa o meio social e jurídico, em desacordo aos princípios base do ordenamento jurídico.

2.1 Construção histórica do Direito Civil-Constitucional e a tutela da personalidade

Pode-se afirmar que, historicamente, o Direito Civil oitocentista foi pautado no individualismo liberal e na afirmação do direito à propriedade privada, sem vínculos com os direitos sociais coletivos e as demais considerações do direito público.

Contudo, com a redemocratização e a promulgação da Constituição Federal de 1988, aliadas à efervescência das lutas pelas garantias de direitos fundamentais e pelas liberdades individuais pautadas em uma sociedade democrática (movimento negro, feminista e pela diversidade sexual, por exemplo) em âmbito internacional, notou-se a tendência da mitigação do civilismo individualista em prol de sua publicização.

Neste ínterim, leciona a doutrina especializada que a patrimonialização das relações civis persiste nos códigos, embora incompatível com os valores fundados na dignidade da pessoa humana, adotado pelas Constituições modernas, inclusive pela brasileira (artigo 1º, III).

Segundo Paulo Lôbo (1999, p.103):

A repersonalização reencontra a trajetória da longa história da emancipação humana, no sentido de repor a pessoa humana como centro do direito civil, passando patrimônio ao papel de coadjuvante, nem sempre necessário. [...] O desafio que se coloca aos civilistas é a capacidade de ver as pessoas em toda sua dimensão ontológica e, por meio dela, seu patrimônio. Impõe-se a materialização dos sujeitos de direitos, que são mais que apenas titulares de bens. A restauração da primazia da pessoa humana, nas relações civis, é a condição primeira de adequação do direito à realidade e aos fundamentos constitucionais.

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Neste contexto, a pessoa deixa de ser o dono do patrimônio e passa a ser o sujeito tutelado, a dignidade passa a ser cláusula geral e os interesses coletivos passam a ser judicialmente pautados, com o albergue dos direitos da personalidade, renovando, assim, situações jurídicas existenciais desprovidas de titularidades patrimoniais.

Defende J. Oliveira Ascenção (1997, p. 12) em seu artigo “Os direitos de personalidade no Código Civil brasileiro” que os direitos da personalidade são aqueles que exigem em absoluto reconhecimento, porque exprimem aspecto que não podem ser desconhecidos sem afetar a própria personalidade humana.

Na mesma senda, aduz:

Se confrontarmos, porém as previsões normativas com a realidade circunstante, ficamos colocados perante a evidência de que a vastidão das proclamações constitucionais coexiste com a violação continuada dessas previsões. A realidade não acompanha o empolamento da lei. E não pode deixar de nos invadir a dúvida sobre o verdadeiro significado de semelhante empolamento. Pois pode significar manifestações de demagogia. É sempre airoso fazer grandes declarações, sem se tomar nenhum compromisso quanto à transformação social efectiva que deveriam acarretar. É pecha velha das sociedades democráticas escusar-se através do legislativo das culpas de uma situação que só a transformação histórica de uma realidade social poderia apagar. (ASCENSÃO, 1997, p.13)

Para Caio Mario da Silva Pereira (2010, p. 201):

A concepção dos direitos da personalidade sustenta que, a par dos direitos economicamente apreciáveis, outros há, não menos valiosos, merecedores de amparo e proteção da ordem jurídica. Admite a existência de um ideal de justiça, sobreposto à expressão caprichosa de um legislador eventual. Atinentes à própria natureza humana, ocupam eles posição supra-estatal, já tendo encontrado nos sistemas jurídicos a objetividade que os ordena, como poder de ação, judicialmente exigíveis.

Acrescenta Cristiano Farias e Nelson Rosenvald (2013, p. 172):

Hodiernamente, contudo, entendem muitos ordenamentos jurídicos, almejando tornar mais efetiva a dignidade do homem, elevada ao status de princípio fundamental, em muitos deles, que o melhor caminho legislativo a seguir é inscrever nos textos constitucionais os direitos da personalidade. Ganha corpo, desta maneira, o movimento da constitucionalização da proteção ampla e irrestrita da personalidade humana, como se percebe das experiências espanhola e italiana, além da necessária referência à ordem jurídica brasileira.

Assim, os direitos que permeiam a personalidade possuem um caráter existencial e subjetivo na concretização das suas individualidades, sendo o princípio da liberdade, pois, determinante para seu desenvolvimento e representando, ainda, importante pressuposto para a autodeterminação do sujeito.

Vale frisar que tal liberdade deve ser totalmente desvinculada do caráter individualista do liberalismo dantes mencionado, vez que possui profundas conexões com a igualdade material e com o princípio da solidariedade entre os sujeitos. Assim, a liberdade que legitimava os abusos do proprietário ou onerava em excesso o contratante leigo e hipossuficiente, desprestigiando, pois, a pessoa sem posses e afastando da seara privada os interesses coletivos, assume outras feições (GONÇALVES; MENEZES, 2012. p. 13).

Neste ínterim, Orlando Gomes (1989, p.153) caracteriza os direitos da personalidade:

[...] sob a denominação de direitos de personalidade, compreendem-se direitos personalíssimos e os direitos essenciais ao desenvolvimento da pessoa humana, que a doutrina moderna preconiza e disciplina no corpo do Código Civil como direitos absolutos, desprovidos, porém, da faculdade de disposição. Destinam-se a resguardar a eminente dignidade da pessoa humana, preservando-a dos atentados que pode sofrer por parte de outros indivíduos.

Acompanhando a tendência, o Código Civil brasileiro introduziu a tutela da pessoa de forma tímida e concisa, fazendo-o apenas em dez dispositivos (Art. 11 ao art. 21). Destarte, embora tenha destinado seu segundo capítulo aos direitos da personalidade, o fez com alcance limitado e omisso no que diz respeito a demandas da modernidade.

Ademais, os caracterizou como intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária e os judicializou, permitindo a reclamação de perdas e danos em caso de ameaça ou lesão.

Neste âmbito, válido mencionar que a responsabilidade civil é um instrumento jurídico flexível e abrangente, pelo que se torna capaz de tutelar os novos interesses tão logo sua presença seja identificada pela consciência social, mas que permaneceram desprotegidos ante a inércia do legislador ordinário.

Nas lições de Maria Celina Bodin (MORAES; NETO; SARMENTO, 2007, p. 6):

Também por esta razão se diz que o direito da responsabilidade civil é antes de tudo jurisprudencial. Os magistrados, com efeito, são os primeiros a sentirem as mudanças sociais e, bem antes de se poder colocar em movimento qualquer alteração legislativa, estão aptos a atribuir-lhes, através de suas decisões, respostas normativas.

Corroborando com a doutrina, importa mencionar recente e brilhante decisão do Supremo Tribunal Federal, relatada pelo Ministro Luis Roberto Barroso, que deferiu a repercussão geral de Recurso Extraordinário que discute a lesão aos direitos personalíssimos de transexual impedida de utilizar o banheiro feminino em shopping center (STF, 2015):

EMENTA: TRANSEXUAL. PROIBIÇÃO DE USO DE BANHEIRO FEMININO EM SHOPPING CENTER. ALEGADA VIOLAÇÃO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E A DIREITOS DA PERSONALIDADE. PRESENÇA DE REPERCUSSÃO GERAL.

1. O recurso busca discutir o enquadramento jurídico de fatos incontroversos: afastamento da Súmula 279/STF. Precedentes.

2. Constitui questão constitucional saber se uma pessoa pode ou não ser tratada socialmente como se pertencesse a sexo diverso do qual se identifica e se apresenta publicamente, pois a identidade sexual está diretamente ligada à dignidade da pessoa humana e a direitos da personalidade

3. Repercussão geral configurada, por envolver discussão sobre o alcance de direitos fundamentais de minorias uma das missões precípuas das Cortes Constitucionais contemporâneas, bem como por não se tratar de caso isolado.

(RE 845779 RG, Relator (a): Min. ROBERTO BARROSO, julgado em 13/11/2014, PROCESSO ELETRÔNICO DJ 10-03-2015)

Na decisão, o Ministro do Supremo Tribunal Federal discorreu que o caso era qualitativamente distinto dos casos de pleitos indenizatórios formulados anteriormente, uma vez que envolve a projeção social da identidade sexual do indivíduo, a qual diretamente ligado à dignidade da pessoa humana e a diversos direitos da personalidade, com fulcro na Constituição.

Reforçou o Ministro Luis Roberto Barroso:

Constitui, portanto, questão constitucional saber se uma pessoa pode ou não ser tratada socialmente como se pertencesse a sexo diverso do qual se identifica e se apresenta publicamente. O tema não pode ser reduzido a uma mera questão patrimonial de responsabilidade civil.

Estar-se diante, portanto, de atuação legítima da representação maior do Poder Judiciário, que visa suprir as insuficiências da legislação no que diz respeito às demandas insurgentes, por meio da qual se reconhece a incidência da cláusula geral da tutela da dignidade humana em questões que envolvem a lesão a direitos da personalidade de transexual.

Destarte, conclui-se pela proximidade entre os direitos humanos, fundamentais e da personalidade, uma vez que foram erigidos para consecução da dignidade da pessoa humana. Podá-los através de classificações inflexíveis implica no enfraquecimento de meios ao cumprimento de seu objetivo. A união de todos eles assegura completa proteção ao homem, sendo evidente que, pelo caminho que for, todos se destinam à construção da subjetividade humana.

A personalidade é, desta forma, para além de um direito, um valor (o valor fundamental do ordenamento) e está na base de uma série aberta de situações existenciais, nas quais se traduz a sua incessantemente mutável exigência de tutela (PERLINGIERI, 2002, p. 55).

2.2 A efetivação das liberdades existenciais na Nova Ordem Civil-Constitucional

No contexto de garantias dos direitos da personalidade no âmbito da Nova Ordem Civil-Constitucional, observa-se que a luta pela democracia e pela efetivação das liberdades individuais, bem como por sua eficácia jurídica, se deram intrinsecamente ligadas.

A Constituição de 88 trouxe consigo a tutela dos direitos sociais, assegurando diversos avanços no âmbito da coletividade, mas também protegeu a autonomia privada nos seus aspectos patrimoniais e, de forma ainda mais intensa, no seu aspecto existencial.

Daniel Sarmento, em seu livro “Direitos Fundamentais e as Relações Privadas (2004)” ratifica que o direito de propriedade era o direito por excelência, e a principal liberdade reconhecida ao individuo consistia no poder de adquirir, manter e transmitir seus bens, sem interferências do Estado senão aquelas necessárias para impedir que terceiros prejudicassem o gozo destas faculdades.

Todavia, de forma diversa ao vivenciado no Estado Liberal, o Estado Contemporâneo deslocou a tutela para a esfera das decisões existenciais, de caráter subjetivo, afetivo, sexual, identitário, religioso, artístico e ideológico, mitigando, pois, direitos meramente negociais e patrimoniais, com fito de fomentar a igualdade, liberdade e os demais valores da solidariedade.

Assim, as liberdades existenciais possuem uma proteção constitucional reforçada, vez que são direitos indispensáveis para que se viva com dignidade, embora não sejam absolutas, podendo ser ponderadas com outros direitos e princípios.

Neste passo, não cabe ao Estado limitar arbitrariamente as subjetividades no sentido que considerar mais apropriado, já que esvaziaria a autonomia privada do sujeito na sua dimensão mais relevante, qual seja a de se autodeterminar, de fazer escolhas e de viver de acordo com elas, desde que não lese direitos de terceiros. Deve, contudo, garantir as condições mínimas para que os sujeitos que possuam sua autonomia privada, em seu âmbito existencial, possam exercer sua liberdade com plenitude e dignidade, situando esta tutela na pessoa e não na coletividade.

Por sua vez, a proteção da autonomia da pessoa não pode prescindir da observância das condições básicas de liberdade do sujeito de direito. Trata-se, pois, do conceito de liberdade positiva, ou seja, a satisfação das necessidades mínimas vitais pelo Estado às pessoas que têm tolhidos seus direitos fundamentais.

Por tudo isso, parece-nos anacrônica a rejeição à ideia da liberdade positiva, diante da inevitável constatação de que a pessoa humana não é minimamente livre enquanto suas necessidades vitais não estão satisfeitas, ou quando ela se sujeita à opressão nas relações sociais que vivencia. (SARMENTO, 2004, p. 184)

Ainda, ressaltou Sarmento (2004, p. 189):

Portanto, pode-se concluir que, afora raras posições radicais em sentido contrário, converge o pensamento jus filosófico contemporâneo para a ideia de que a garantia tanto da autonomia pública do cidadão – associada à democracia –, como da sua autonomia privada – ligada aos direitos individuais – são vitais para a proteção jurídica integral da liberdade humana. Da mesma forma, é licito dizer que é amplamente dominante a concepção, de resto até intuitiva de que a liberdade é esvaziada quando não são asseguradas as condições materiais mínimas para que as pessoas possam desfrutá-la de forma consciente.

Portanto, a ordem constitucional brasileira conferiu ampla proteção à liberdade, preocupando-se com a efetiva garantia das condições necessárias ao seu gozo. Ao mesmo tempo que protege a autonomia pública do cidadão, em sua ordem democrática, protege a autonomia privada, em sua ordem patrimonial e existencial, sendo a última essencial para o livre desenvolvimento da personalidade.

De fato, negar ao homem o poder de decidir autonomamente como quer viver e de que modo deve conduzir sua vida privada é frustrar sua possibilidade de realização existencial. Todos possuem o inalienável direito de serem tratados como pessoas, e o tratamento como pessoa exige o reconhecimento da autonomia moral do agente, da sua ontológica liberdade existencial.

Luiz Edson Fachin (2001) aponta que “(...) a iniciativa privada e as situações jurídicas patrimoniais, ou seja, para a dignidade da pessoa humana, sua personalidade, para os direitos sociais e para a justiça distributiva”.

Conclui-se, pois, que não cabe ao Estado, ou à coletividade, estabelecer os fins que cada pessoa deve perseguir, seus valores, crenças, identidades, orientações e preferências, tampouco privar-lhes de exercê-las, mas garantir-lhes condições mínimas e dignas de exercício das suas liberdades existenciais. Supor que as liberdades humanas existenciais só são protegidas na medida em que seu exercício atender a interesses coletivos, como dita Sarmento (2004, p. 201) equivale, no nosso entendimento, a recair num coletivismo transpersonalista, que não leva a sério que é a pessoa “a medida de todas as coisas”.

Portanto, se a pessoa humana à qual se refere a Constituição de 88 é o sujeito fruto da nova ordem jurídica que garante a incidência dos direitos fundamentais e de sopesamento de princípios no âmbito das relações privadas, é certo afirmar que se trata de um ser social e enraizado, titular de direitos inalienáveis e personalíssimos, exercidos, inclusive, contra interesses de uma maioria e em prol da subjetividade do ser.

Neste ínterim, aplicar-se-á os estudos expostos ao entendimento de identidade de gênero, com fim de discorrer sobre suas diferentes manifestações e particularidades; conceituar e esclarecer as transgeneridades; historicizar os avanços judiciais nas garantias dos direitos pleiteados por estes sujeitos e, por fim, problematizar a inércia do Legislativo e Judiciário no que cerne questões imprescindíveis à tutela da dignidade da pessoa humana.

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Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à disciplina Monografia Jurídica do Curso de Direito da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Direito

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