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Sistemas jurídicos comparados: o conceito de família e o arcabouço religioso

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5. A questão do afeto e os diversos tipos de família

É imperativo que se observe, nos dias de hoje, em perspectiva apartada daquelas que foram apresentadas, qual o real elemento deve ser considerado quando se fala da formação de um núcleo familiar. Esse elemento a ser considerado é o afeto. Ora, este deve ser o vínculo principal que justifique a união de duas pessoas em torno da comunhão de vidas, isto é:

“em virtude de uma origem comum ou em razão de um destino comum, que conjuga suas vidas tão intimamente, que as torna cônjuges quanto aos meios e aos fins de sua afeição, até mesmo gerando efeitos patrimoniais, seja de patrimônio moral, seja de patrimônio econômico.”[13]

De acordo com Sérgio Resende de Barros, o elemento do afeto perdeu seu espaço por conta do próprio patriarcalismo, que como visto, é traço dos conjuntos de crenças imanentes aos principais Sistemas Jurídicos do ocidente e do Direito Islâmico. Dispõe o autor:

“Os patriarcas deram início à prática dos casamentos por conveniência, que com o passar do tempo proliferaram ainda mais, quando se somaram aos motivos patrimoniais os motivos políticos. Nessa evolução histórica, do primitivo casamento afetivo, passou-se ao casamento institucional, com o qual se buscou assegurar o patrimônio, dando origem à ideologia da família parental, patriarcal, senhorial, patrimonial. Esta se define pela existência de um pai e uma mãe com seus filhos sob o poder pátrio, fruindo de um patrimônio familiar, que deve ser mantido como base física e para segurança econômica da família. A família assim concebida e praticada acabou por revestir e mascarar interesses meramente patrimoniais, que muitas vezes deslocam, degeneram, sufocam ou até substituem as relações de afeto.”[14]

A restrição do estabelecimento do núcleo familiar sob aspectos religiosos, patriarcais e patrimoniais minou, por certo, a construção desses núcleos sob uma ótica ligada ao afeto e, ainda assim, caso núcleos familiares diferentes dos previstos pelo Estado se estabelecessem, estes não receberiam qualquer proteção por parte do Estado, ora posto que configurariam instituto estranho ao ordenamento. Certamente, esse intervencionismo do Estado tolhe profundamente liberdades individuais, pois condiciona o livre exercício do afeto a formalidades baseadas em crenças específicas.

Sob esse prisma, questiona-se quão efetivos foram ou são os processos ainda em curso de laicização do Estado, uma vez que, mesmo em sociedades ditas “modernas” e liberais, como as do ocidente, ainda é possível encontrar, nos ordenamentos jurídicos, regulações a liberdades individuais, que se firmam apenas em arcabouços religiosos. Maria Berenice Dias brilhantemente expõe:

“Com a família não é diferente. Ao longo da história, a família sempre gozou de um conceito sacralizado, sempre foi ligada à idéia de indissolubilidade, por ser considerada a base da sociedade. Afirmada a sua origem no Direito Natural, as relações afetivas foram primeiro apreendidas pela religião, que as solenizou como união divina, abençoada pelos céus. O Direito de Família é o campo do Direito mais bafejado e influenciado por idéias morais e religiosas.[15] Claro que o Estado, com toda a sua onipotência, não poderia dar um tratamento menos intervencionista às relações familiares. Buscando o estabelecimento de padrões de estrita moralidade e objetivando regulamentar a ordem social, transformou a família em uma instituição matrimonializada. Engessando-a no conceito de casamento, impôs de forma autoritária deveres, penalizando comportamentos que comprometessem sua higidez, além de impedir sua dissolução. O modelo tradicional da família sempre foi o patriarcal, sendo prestigiado exclusivamente o vínculo heterossexual.”[16]

Não se deve ignorar, além disso, que atualmente a família adquiriu função instrumental para a melhor realização dos interesses afetivos e existenciais de seus componentes.[17]

“Nesse contexto de extrema mobilidade de configurações familiares, novas formas de convívio vêm sendo improvisadas em torno da necessidade – que se alterou – de criar os filhos, frutos de uniões amorosas temporárias que nenhuma lei, de Deus ou dos homens, conseguem mais obrigar a que se eternizem.”[18]

Nessa esteira, pode-se citar inúmeros tipo de famílias que podem ser formadas por indivíduos em torno de um afeto específico, o afeto familiar, qual seja:

“um afeto que enlaça e comunica as pessoas, mesmo quando estejam distantes no tempo e no espaço, por uma solidariedade íntima e fundamental de suas vidas – de vivência, convivência e sobrevivência – quanto aos fins e meios de existência, subsistência e persistência de cada um e do todo que formam.”[19]

Entre alguns desses novos tipos de família, formadas em apartado de morais religiosas, tem-se como exemplo: família homoafetiva, famílias poliafetivas, famílias paralelas, famílias monoparentais, famílias compostas/pluriparentais/mosaico, famílias eudemonistas, entre outras. As referidas nomenclaturas, conquanto baseadas no ordenamento jurídico brasileiro, referem-se a situações de fato, encontradas nos mais diversos países, independentemente dos Sistemas Jurídicos com os quais se identificam. E evidentemente, cada tipo de família recebe, em cada Sistema Jurídico, as nomenclaturas que mais adéquam a situação de fato, ao contexto em que se encontram, respeitando as fronteiras linguísticas de cada Estado, de cada sociedade e de cada cultura.

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Tudo isso mostra que, em cada um dos Sistemas Jurídicos, partindo inicialmente de um esforço interno de cada Estado, deve-se buscar o reconhecimento de um “afeto familiar” como fundamento para delimitar uniões familiares e, ainda, o reconhecimento dessa diversidade familiar por parte dos Estados, garantindo assim, a tutela adequada das liberdades individuais, desarraigadas de imperativos de ordem religiosa e a proteção efetiva da entidade familiar por parte do ordenamento jurídico.


6. Conclusão

É notável que existem traços, valores e aspectos morais provenientes de uma determinadas religião que, uma vez que foram incorporados pelo Estado como arcabouço para produção de normas, permanecem até hoje, mesmo que implicitamente, em seus respectivos ordenamentos jurídicos; uma vez absorvidos esses valores, dificilmente é possível desagregá-los por completo desses ordenamentos jurídicos e, por conseguinte, dos Sistemas Jurídicos que abarcam tais sistemas normativos. Desde a origem para dos Sistemas Jurídicos, foi possível observar, por meio de um trajetória histórica e cultural que a religião, além de possuir grande influencia cultura e política, ajudou igualmente, a suprir um possível vácuo normativo ou principiológico, que poderia se estabelecer na formulação dos ordenamentos jurídicos. De qualquer maneira, o arcabouço religioso que resta nos ordenamentos jurídicos, implícita ou explicitamente, mostra-se prejudicial à liberdade daqueles que não se encontram vinculados a nenhuma religião ou encontram-se vinculados a uma religião diferente daquela que influenciou a produção de normas.

Deixar de observar a importância e a necessidade do reconhecimento e acolhimento de novos tipos de família, construídos faticamente, e não de maneira forçada por qualquer imperativo religioso, seria, nas palavras de Maria Berenice Dias:

“manter a imagem da Justiça cega. Condenar à invisibilidade situações existentes é produzir irresponsabilidades, é olvidar que a ética condiciona todo o Direito, principalmente, Direito das Famílias. Necessário é recorrer a um valor maior, que é o da prevalência da ética, para se aproximar do ideal de justiça. O Direito tem um compromisso com o afeto. Entender o afeto destituído de sua tradução moral ou material é fazer do Direito uma ciência compreensiva antes de judicativa. Pode exigir uma humildade muito grande. Pode demandar uma sabedoria custosa.”[20]


7. Bibliografia

  • BADR, Gamal Moursi. Islamic Law: Its Relation to Other Legal Systems. The American Journal of Comparative Law, v. 26, n. 2, p. 187-198, 1978.
  • NASSER, Salem H. Seria a Sharia a única fonte do Direito nos países árabes? em Araújo, H. V. (organizadora) Diálogo América do Sul – Países Árabes FUNAGIPRI, Brasília, 2005.
  • KHADDURI, Majid. Nature and Sources of Islamic Law. George Washington Law Review, n.22, p. 3-23, 1953-1954.
  • BARROS, Sérgio Resende de. A ideologia do afeto. In Revista Brasileira de Direito de Família – RBDFam, Porto Alegre: Síntese/IBDFAM, n.14, jul/set de 2002.
  • DIAS, Maria Berenice. A ética na jurisdição de família.  Revista de Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, n. 68, p. 33-41, jul./set., 2006.
  • DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 9ª Edição – São Paulo, Ed. RT, 2013.
  • SACCO, Rodolfo. Introdução ao Direito Comparado. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2001.
  • ROSENVALD, Nelson. FARIAS, Cristiano Chaves de. Curso de Direito Civil – Famílias. Volume 6, 5ª Ed., 2013.


Notas

[1] “as those legal systems whose application extended far beyond the confines of their original birth places and whose influence, through reception of their principles, techniques or specific provisions has been both widespread in space and enduring in time”. (livre tradução). BADR, Gamal Moursi. Islamic Law: Its Relation to Other Legal Systems. The American Journal of Comparative Law, v. 26, n. 2, p. 187, 1978

[2] DIAS, Maria Berenice. A ética na jurisdição de família.  Revista de Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, n. 68, p. 33-41, jul./set., 2006.

[3] DIAS, Maria Berenice. A ética na jurisdição de família.  Revista de Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, n. 68, p. 33-41, jul./set., 2006.

[4] BARROS, Sérgio Resende de.  A ideologia do afeto. In Revista Brasileira de Direito de Família – RBDFam, Porto Alegre: Síntese/IBDFAM, n.14, jul/set de 2002.

[5] BARROS, Sérgio Resende de.  A ideologia do afeto. In Revista Brasileira de Direito de Família – RBDFam, Porto Alegre: Síntese/IBDFAM, n.14, jul/set de 2002.

[6]  Bíblia Sagrada. Versão Almeida Corrigida e Revisada Fiel.

[7] Idem.

[8] idem.

[9] NASSER, Salem H. Seria a Sharia a única fonte do Direito nos países árabes? em Araújo, H. V. (organizadora) Diálogo América do Sul – Países Árabes FUNAGIPRI, Brasília, 2005.

[10]  NASSER, Salem H. Seria a Sharia a única fonte do Direito nos países árabes? em Araújo, H. V. (organizadora) Diálogo América do Sul – Países Árabes FUNAGIPRI, Brasília, 2005.

[11]  Idem.

[12]  NASSER, Salem H. Seria a Sharia a única fonte do Direito nos países árabes? em Araújo, H. V. (organizadora) Diálogo América do Sul – Países Árabes FUNAGIPRI, Brasília, 2005.

[13] BARROS, Sérgio Resende de. A ideologia do afeto. In Revista Brasileira de Direito de Família – RBDFam, Porto Alegre: Síntese/IBDFAM, n.14, jul/set de 2002.

[14]  Idem.

[15] Sílvio Venosa. Direito civil: direito de família, 27.

[16]  DIAS, Maria Berenice. A ética na jurisdição de família.  Revista de Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, n. 68, p. 33-41, jul./set., 2006.

[17] Guilherme Calmon Nogueira da Gama, Das relações de parentesco, 101.

[18] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 9ª Edição – São Paulo, Ed. RT, 2013.

[19] BARROS, Sérgio Resende de. A ideologia do afeto. In Revista Brasileira de Direito de Família – RBDFam, Porto Alegre: Síntese/IBDFAM, n.14, jul/set de 2002.

[20] DIAS, Maria Berenice. A ética na jurisdição de família.  Revista de Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, n. 68, p. 33-41, jul./set., 2006.

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Sobre os autores
Paulo Vitor Jasckstet

Graduando em Direito pela Universidade de Brasília com previsão de conclusão para o 1º semestre de 2015.<br><br>Experiência em escritórios de advocacia com atuação tributária e trabalhista.

Victória Albuquerque Câmara

Graduanda em Direito pela Universidade de Brasília, cursando o último ano. Fluente em inglês e espanhol e com conhecimentos básicos de francês e italiano. Possui experiência em órgãos públicos, como o CADE e órgãos ligados a relações exteriores.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JASCKSTET, Paulo Vitor ; CÂMARA, Victória Albuquerque. Sistemas jurídicos comparados: o conceito de família e o arcabouço religioso. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5243, 8 nov. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/40144. Acesso em: 20 abr. 2024.

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