1.Introdução
O núcleo familiar é umas das mais antigas instituições sociais existentes. É protegida pelos grandes sistemas jurídicos vigentes, e, pode-se dizer, é considerado o responsável pela perpetuação da própria sociedade de maneira que a tutela estatal visa exatamente garantir a transmissão do patrimônio imaterial (valores, princípios, cultura) e material (herança) imanente a cada família que emerge do matrimônio.
Nota-se, igualmente, que as principais origens e a continuidade dessa instituição aliam-se ao elemento religioso, de maneira que este se relaciona intensamente à maneira como se dá a formação da família e dos demais aspectos que a caracterizam. Mesmo em Estados ditos laicos, é possível perceber fortes traços de influência religiosa na delimitação do que se entende por ‘família’.
Entretanto é essencial questionar se essa regulação do Estado, que muitas vezes possui como bases diretrizes que emanam de fontes religiosas, não tolhe ou limita a livre formação de núcleos familiares a partir da livre exercício do afeto, de maneira desarraigada da moral de determinada religião.
Assim sendo, inicialmente é preciso observar quais os sistemas jurídicos preponderantes atualmente e como se relacionam com a questão à religiosidade: são originados a partir de determinada religião, se desenvolvem paralelamente a alguma ou algumas religiões, ou firmam-se independentemente de valores provenientes de quaisquer religiões, mesmo sendo elas relevantes no contexto cultural do Estado? A partir dessa delimitação é possível identificar sob quais conjuntos de crenças esses sistemas jurídicos e os Estados que os adotam definem a formação da família.
Nesse sentido, a maneira como a figura da família é desenhada dentro de cada sistema jurídico diz respeito não apenas à produção legislativa do Estado, mas evidentemente a como essa produção irá interferir nas relações privadas dos indivíduos que desejam formar uma família ou se definem como tal. A maneira como os sistemas jurídicos recepcionam o instituto da família, se a partir de um arcabouço religioso ou não, pode afetar direta e indiretamente a forma como esse núcleo será desenvolvido e conduzido no transcorrer do tempo. Isso pode afetar inclusive a liberdade de escolha de indivíduos, pois podem se sentir compelidos a ser família de acordo como os padrões e formatos definidos pelo Estado.
Assim, busca-se compreender como os principais sistemas jurídicos concebem a instituição familiar, mediante as questões culturais e religiosas adjacentes a esses sistemas e os impactos que o tratamento dispensado à família pode gerar nas esferas públicas e, principalmente, privadas.
2. Principais Sistemas Jurídicos Comparados
A comparação de Sistemas Jurídicos busca não apenas comparar complexos normativos, identificando diferenças e regularidades, mas visa confrontar normas e suas respectivas efetividades, com base em aspectos extrajudiciais, tais como valores, princípios, política, cultura, economia, organização social, história, questões antropológicas, e, inclusive, religião. Esse contexto extrajurídico é responsável pelo dinamismo da norma e permite a visualização do Direito por meio de uma perspectiva mais contemporânea.
Como Sistemas Jurídicos relevantes para o presente artigo, entender-se-ão “aqueles cuja aplicação se estendeu para além dos limites de seu lugar de origem e cuja influência, por meio da recepção de principios, técnicas e disposições específicas, se difundiram no espaço e no tempo”[1]. Traçados esses parâmetros, serão comparadas as concepções de família nos seguintes Sistemas Jurídicos: Common Law, Civil Law e Direito Islâmico.
3. Concepções religiosas de família nos principais Sistemas Jurídicos ocidentais e a laicidade do Estado na definição do núcleo familiar
Admite-se que o papel de um Sistema Jurídico orbita em torno de relações sociais, partindo da premissa “ubi societas ibi ius” e entendendo, em concordância com Maria Berenice Dias, que “A finalidade da lei não é imobilizar a vida, cristalizá-la, mas permanecer em contato com ela, segui-la em sua evolução e a ela se adaptar”[2]. Ainda nessa óptica, faz-se necessário observar como o Estado, gerenciador doméstico do Sistema Jurídico em que está inserido, regula tais relações sociais.
Nessa esteira, as relações de família, as questões relativas ao afeto e a religião são, portanto, passíveis de serem reguladas pelo Estado, ao mesmo tempo em que, é a partir da dinâmica desses fatores que o Estado se baseia para construir seu ordenamento jurídico. Evidentemente, em cada Sistema Jurídico, os citados fatores (família, afeto e religião) recebem tratamentos por parte dos Estados, sendo que, ora os tratamentos dispensados se aproximam, ora se diferem, de acordo com o contexto em que as normas emergem. Não obstante, note-se que a forma como essa regulação ocorre pode produzir diretamente efeitos sobre liberdades individuais, incentivando certas condutas em detrimento de outras e, igualmente, buscando tolher certas práticas em detrimento de outras. Em seu artigo “A ética na jurisdição de família”, Maria Berenice Dias descreve o seguinte:
“Sob a justificativa de preservar a sociedade, impõe o Estado, ainda hoje, sanções e penas a quem se afasta do parâmetro legal ou ousa comprometer a estabilidade das relações sociais. A tendência do legislador é de arvorar-se no papel de guardião dos bons costumes, buscando a preservação de uma moral conservadora. É o grande ditador que prescreve como as pessoas devem proceder, impondo condutas afinadas com o moralismo vigente. Limita-se a regulamentar os institutos socialmente aceitáveis e, com isso, acaba refugiando-se em preconceitos. Qualquer agir que se diferencie do parâmetro estabelecido é tido como inexistente por ausência de referendo legal.”[3]
Certamente, esses “bons costumes” e a “moral conservadora” são frutos culturais que definem a forma como relações sociais serão tuteladas em cadaSistema Jurídico. No caso das relações familiares, a começar pela própria definição do instituto “família”, não é diferente e em cada um dos Sistemas Jurídicos aqui analisados, as questões de família estão, de maneira geral, sujeitas à matérias de ordem moral e ética, em conformidade com o meio e contexto que as abarcam. Mais do que isso, as questões de família são igualmente afetadas pelas origens dos próprios Sistemas Jurídicos, de tal sorte que se torna imperativo definir quais as origens desses valores e princípios que se evidenciam como tão relevantes para fins de regular um conjunto social, em especial no que tange à questão familiar.
Os dois principais Sistemas Jurídicos Ocidentais, quais sejam, o da Common Law e o da Civil Law, possuem como tronco comum, inicialmente o Direito Romano.
De maneira geral, a cultura romana influenciou fortemente o mundo ocidental, e no âmbito do direito, isso é evidenciado pela inspiração em inúmeros institutos do direito romano. Quanto a cultura e sociedade, observa-se que a religião, tal como a própria sociedade da época, o politeísmo romano era fundamentalmente patriarcal, tendo inclusive com um dos seus objetos sagrados o falo.
Em consonância com o patriarcalismo advindo da religião, notava-se também um patriarcalismo com base na própria organização social. De acordo com Sérgio Resende de Barros:
“O patriarcalismo nasceu com a fixação definitiva das tribos em terras que passaram a constituir o "seu" território. Assim sobreveio a necessidade de prover e assegurar que o território tribal não escaparia ao domínio da tribo, mas seria transmitido com base no sangue tribal, rigorosamente definido. Daí, o patriarcalismo, que procedeu a essa definição rigorosa.”[4]
A consolidação dessa concepção patriarcalista é mais tarde confirmada quando do advento do cristianismo e sua posterior absorção por parte do Império Romano, sendo inclusive declarado como religião oficial. Tal religião é aquela que, sem dúvidas, mais ganha espaço na formação do mundo ocidental. Além de ratificar o elemento do patriarcalismo já existente, confirma igualmente a monogamia e a função social da família, como núcleo formado a partir de dois cônjuges de sexo oposto e seus filhos. Ainda de acordo com Sérgio Resende de Barros temos que:
“a ideologia da família. Para esta, o elemento basilar da sociedade não é o indivíduo, mas sim a entidade familiar monogâmica, parental, patriarcal, patrimonial, isto é, a tradicional família romana, que veio a ser recepcionada pelo cristianismo medieval, que a reduziu à família nuclear, consagrando como família-modelo o pai, a mãe e o filho. Essa concepção restritiva da família bem servia, no plano ideológico, para justificar o domínio das terras pelos patriarcas antigos e, depois, pelos senhores feudais, corroborando a idéia-força de que a família patriarcal e senhorial é a base da sociedade.”[5]
Passagens do Novo Testamento da Bíblia Cristã reforçam a ideia de família erguida em torno do patriarca, formada monogâmica e heteroafetivamente. Em Efésios 5: 22-24, o Apóstolo Paulo recomenda:
“Vós, mulheres, sujeitai-vos a vossos maridos, como ao Senhor;
Porque o marido é a cabeça da mulher, como também Cristo é a cabeça da igreja, sendo ele próprio o salvador do corpo.
De sorte que, assim como a igreja está sujeita a Cristo, assim também as mulheres sejam em tudo sujeitas a seus maridos.”[6]
A submissão da vontade da mulher é expressa também quando da orientação pela não realização do aborto, de forma que restam comprometidos tanto a autonomia feminina sobre o próprio corpo, como igualmente o planejamento familiar.
O aspecto monogâmico é fundamentado com base na primeira epistola do Apóstolo Paulo a Timóteo, capítulo 3, versículo 12: “Os diáconos sejam maridos de uma só mulher, e governem bem a seus filhos e suas próprias casas.”[7]
A função social da família diz respeito à sua reprodução no espaço e no tempo, por meio da transmissão de bens materiais e imateriais. No livro de Gênesis, o preceito ensinado é “crescei e multiplicai-vos”[8]. Nessa óptica, compreende-se, inicialmente que a reprodução da família conecta-se ao relacionamento heterossexual, que é aquele garante a reprodução biológica, os futuros herdeiros, por meio de quem o patrimônio material e imaterial, recebidos da figura paterna, se perpetuará.
Tal arcabouço de valores e de recomendações práticas estende-se e atinge toda a sociedade ocidental, inclusive a formação dos ordenamentos jurídicos. Uma das evidências mais claras desse aspecto foi a compilação de normas sob o prisma denominado Direito Canônico. Este Direito Canônico, por sua vez, influenciou grande parte da produção normativa que estaria por vir nos séculos vindouros. É certo igualmente, que a construção de um ordenamento jurídico, de certa forma, se mostrando carente de uma ética e/ou de uma moral que pudesse direcionar a produção normativa, encontra na moral religiosa e na ética judaico-cristã esse norte necessário. Some-se a isso a aceitação que a ética judaico-cristã já possuía no meio social e ainda a influência política exercida pela própria Igreja Católica Apostólica Romana.
A construção da definição do núcleo familiar com base nos princípios e recomendações acima mencionados foi, portanto, a construção que predominou nos Sistemas Jurídicos do Common Law e Civil Law, durante a maior parte dos anos de sua existência, ora posto que tal arcabouço axiológico religioso foi base para a elaboração dos ordenamentos jurídicos que mais tarde comporiam os referidos Sistemas Jurídicos.
Conquanto desde a Revolução Francesa a ideia de laicização do Estado tenha ganhado força, observa-se que apenas no último século foram promovidas mudanças significativas a fim de desarraigar o núcleo familiar de concepções religiosas. A emancipação feminina e as lutas por igualdade de gênero dentro e fora da família, os novos métodos contraceptivos, a legalização do aborto, admissão da família monoparental, o reconhecimento de uniões homoafetivas e de uniões realizadas fora dos moldes do casamento religioso (casamento civil), o direito ao divórcio e à separação foram algumas das mudanças que certos países dos Sistemas Jurídicos do Common Law e Civil Law já têm experimentado, cada Estado a seu tempo, evidentemente.
Não obstante, a formação de núcleos familiares nos referidos Sistemas Jurídicos ocidentais ficaram, por muito tempo, limitados por preceitos religiosos, deixando, ao contrário, de serem regidos pelo afeto.
4. Concepções religiosas de família no Sistema Jurídico Islâmico e a laicidade do Estado na definição do núcleo familiar
Se, por um lado, a busca por elementos religiosos nos Sistemas Jurídicos ocidentais demanda uma análise mais extensa, por outro lado, a identificação de tais elementos no Direito Islâmico é tanto menos trabalhosa, porquanto tais elementos são mais evidentes no contexto social, cultural, econômico e político do oriente.
Ao tratar-se de Direito Islâmico, leva-se em consideração primeiramente que uma de suas principais fonte é a Sharia.
“A Sharia deve ser entendida como a Lei islâmica, Lei cuja inicial maiúscula deve indicar ao mesmo tempo seu caráter e origem divinos, e a sua tendência a ser uma ordem normativa total. A Lei não se reduz ao direito, mas sim é constituída pelo conjunto de normas e prescrições reveladas e que indicam ao muçulmano e à sua comunidade a via, o caminho a ser seguido.
As fontes de que emanam e em que devem ser buscadas as normas da Sharia são o Alcorão, livro sagrado que contem as revelações de Deus ao profeta Mohamad, e a sunna, ou a tradição, conjunto dos dizeres (ahadith) e comportamento do profeta que, naturalmente, agia inspirado divinamente e era imune ao erro.”[9]
Impende salientar também que diferentemente do sistema ocidental, não existe, na percepção islâmica a ideia de um homem legislador, como o que se tem nos Sistemas Jurídicos ocidentais. Não se fala aqui de homens empoderados para a redação de uma legislação para regular certas práticas sociais. Em sentido diverso, compreende-se que, quando da revelação da Lei, o próprio Deus diz aos homens o que espera deles.
Em seu artigo “Seria a Sharia a única fonte do Direito nos países árabes?”, o professor Salem H. Nasser traz importantes pontos para esta discussão. Inicialmente, acerca da aceitação social da Sharia como fonte de Direito:
“(...) a inclusão da Sharia entre as fontes e a aplicação de boa parte de suas normas explica-se porque de certo modo, estas são vistas como as mais aptas a regularem alguma extensão das relações sociais, por serem mais condizentes com os seus valores, e também porque, em certa medida, não podem simplesmente ser eliminadas em ração do equilíbrio das forças em ação na sociedade.”[10]
Depois, confirma-se a evidente compreensão de que a religião islâmica possui influência na forma como os Estados regulam as esferas privadas:
Assim, todas as questões relativas à personalidade jurídica e à capacidade de realizar atos jurídicos, casamento, divórcio, filiação, guarda dos filhos, regime de bens, sucessões, tendem a continuar regidas pela Sharia. (...) É igualmente possível que fique determinado nos ordenamentos jurídicos a aplicação direta da Sharia ao estatuto pessoal dso cidadãos pelas autoridades judiciárias do Estado ou religiosas. Essa permanência da Sharia no espaço específico do estatuto pessoal e do direito de família merece certamente alguma investigação mais detida a respeito de suas razões profundas, mas ela certamente parece indicar uma conexão mais automática e evidente nesses domínios, que se estabelece nas mentes das pessoas e traduz-se nos ordenamentos jurídicos, entre as normas chamadas a regular a vida e os valores sociais. O religioso, nessas sociedades, parece ganhar força e aparecer como essencial na medida em que se aproxima dos indivíduos e das famílias e ganha com isso maior legitimidade e sua pretensão a reger as situações e as relações”[11]
Com base nesses fatores, é notável que a formação de um núcleo familiar dentro de um Sistema como o Islâmico é basicamente regido com base nas morais da Sharia, da sunna e do próprio Alcorão. O papel que as mulheres ocupam nas famílias, os direitos que elas possuem, as diferenças entre homens e mulheres nas questões de sucessão, a prática da poligamia permitida apenas aos homens (inspirada pela vida do profeta), a condenação da prática da homoafetividade, entre outros são fatores que deixam clara a forma como a concepção de família está intimamente ligada ao aspecto religioso.
A admissão de um arcabouço religioso dentro do ordenamento jurídico é fato carregado de legitimidade por parte da maioria dos Estados que compõe os Sistema Jurídico do Direito Islâmico. Não obstante, impende levar em consideração, consoante explica o professor Salem H. Nasser, em resposta à questão levantada pelo título de seu artigo, que não é fato absoluto que a Sharia possa ser considerada fonte única do Direito Islâmico, havendo atualmente por parte dos países árabes, certa laicização quando da aplicação das normas de fundamento religioso:
“Atualmente, quando a maior parte dos Estados árabes reserva algum espaço à Sharia dentro de seus sistemas normativos – em geral, não lhe reservam a primazia dentro desses sistemas, subordinando-a ai poder e à vontade legisladora do próprio Estado, - é possível observar igualmente uma certa variedade de soluções para o problema da determinação das autoridades chamadas a aplicá-la.
A maioria desses Estados dota-se de poder judiciário organizado e laico chamado a dirimir todas as questões legais, civis ou penais. No que respeita à aplicação da Sharia, ainda que seja apenas no que se refere ao estatuto pessoal, a opção faz-se entre comandar essa aplicação por esses tribunais laicos ou delegar essa função aos tribunais religiosos ou simplesmente aos homens de religião.”[12]
O trecho em destaque salienta como, mesmo havendo certa laicização por parte do Estado em relação à construção de seus sistemas normativos, esse mesmo processo volta-se em favor da aplicação de normas de cunho religioso, inclusive na área civil, que abrange os temas de família.
Não se pode falar, destarte, em uma definição de família dentro deste sistema de justiça que não se relacione diretamente com o arcabouço religioso que prevalece na sociedade, qual seja os princípios e valores do Islamismo.