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O salário in natura (salário utilidade) e suas repercussões no contrato de trabalho

08/09/2017 às 09:20

Resumo:


  • O salário in natura é o pagamento feito ao empregado em bens ou serviços em contraprestação ao trabalho realizado, previsto no artigo 458 da CLT.

  • Para ser considerado salário utilidade, o fornecimento do bem ou serviço deve ter habitualidade, objetivo contraprestativo e não-onerosidade, sendo essencialmente contraprestativo.

  • A jurisprudência dominante entende que se a utilidade é fornecida para ajudar na realização do trabalho, mesmo que o empregado faça uso particular, ela é instrumento de trabalho e não salário, conforme a Súmula 367 do TST.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

As utilidades normalmente fornecidas para possibilitar ou viabilizar a própria prestação dos serviços não apresentam natureza salarial.

Há alguns meses eu recebi pelo Informativo do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (Minas Gerais), uma notícia que me chamou atenção: “Alimentação fornecida pela empresa não configura salário in natura se há pequena participação do empregado - TRT da 3ª Região (MG) – 01/12/2014”[1]. Depois de muito discutir e ponderar a possibilidade de afastamento da incorporação ao salário das utilidades fornecidas pelas empresas clientes aos seus funcionários, por meio da estipulação de um pagamento em conjunto, eu estava lendo a decisão que eu sempre almejei aos meus processos.

Entretanto, diferentemente do que eu gostaria e considero justo, a questão ainda é alvo de discussão doutrinária e jurisprudencial. Considerando essa divergência e as dúvidas que ela causa aos clientes, resolvi escrever, hoje, sobre o salário in natura (salário utilidade) e os efeitos de sua caracterização.

O salário in natura, ou salário utilidade, é o pagamento, em bens ou serviços, feito ao empregado em contraprestação ao trabalho realizado. Essa modalidade de pagamento está prevista pela Consolidação das Leis do Trabalho, em seu artigo 458.

Porém, nem todo fornecimento de bem ou serviço feito pelo empregador ao empregado será considerado salário utilidade. Para que seja considerado salário utilidade, o pagamento deverá ter dois principais requisitos: habitualidade e objetivo contraprestativo. Outro requisito também considerado pela doutrina e pela jurisprudência é a não-onerosidade do fornecimento do bem ou serviço, entretanto, este não se mostra essencial e sua exigência para caracterização do salário utilidade é motivo de grande divergência.

A habitualidade caracteriza-se pela repetição uniforme da conduta ao longo do tempo. O fornecimento não precisa ser diário ou mensal para que o bem ou serviço seja caracterizado como salário utilidade, podendo ser considerado habitual um bem ou serviço fornecido também por períodos mais distantes, como semestralmente ou anualmente.

Para caracterização do salário utilidade, não há necessidade do efetivo fornecimento do bem ou serviço, bastando a sua pactuação. Assim, se no contrato de trabalho de determinado funcionário está consignado que anualmente ele receberá uma cesta de alimentos diversos, e seu contrato tiver se encerrado antes de ele completar um ano de trabalho, ainda assim, ele terá direito a receber o valor parcial da cesta, correspondente ao período trabalhado e seus reflexos. Tal entendimento se fundamenta no artigo 444 da Consolidação das Leis do Trabalho.

O segundo requisito para caracterização do salário utilidade é o caráter essencialmente contraprestativo do pagamento, o que significa que o fornecimento do bem ou serviço deverá ter intuito preponderantemente retributivo pelo trabalho realizado. Assim, não terá caráter retributivo o bem ou serviço oferecido para viabilizar ou melhorar o trabalho realizado.

Como visto, não serão apenas os bens ou serviços indispensáveis ao trabalho que perderão a característica de salário in natura, mas, também, aqueles que melhorem o funcionamento do serviço. Neste liame, até meados da década de 90, a jurisprudência tinha uma visão ampliativa do salário utilidade, sendo que, se o empregado fizesse qualquer uso particular da utilidade, ela era considerada salário. Mas esta visão desestimulava o empregador a fornecer utilidades, e a jurisprudência foi mudando seu entendimento.

Hoje, a jurisprudência dominante é no sentido de que, se a utilidade é fornecida para ajudar na realização do trabalho, ainda que indiretamente, e mesmo que o empregado faça uso particular, ela é instrumento de trabalho e não salário. Prevalece a finalidade mais importante, a verdadeira intenção no fornecimento da utilidade. Esta posição é refletida na Súmula 367, I, Tribunal Superior do Trabalho (grifei):

Súmula nº 367, Tribunal Superior do Trabalho.

UTILIDADES "IN NATURA". HABITAÇÃO. ENERGIA ELÉTRICA. VEÍCULO. CIGARRO. NÃO INTEGRAÇÃO AO SALÁRIO (conversão das Orientações Jurisprudenciais nºs 24, 131 e 246 da SBDI-1) - Res. 129/2005, DJ 20, 22 e 25.04.2005. I - A habitação, a energia elétrica e veículo fornecidos pelo empregador ao empregado, quando indispensáveis para a realização do trabalho, não têm natureza salarial, ainda que, no caso de veículo, seja ele utilizado pelo empregado também em atividades particulares. (ex-Ojs da SBDI-1 nºs 131 - inserida em 20.04.1998 e ratificada pelo Tribunal Pleno em 07.12.2000 - e 246 - inserida em 20.06.2001). [...].

Neste ponto, importante recordar a máxima exposta pela doutrina de que somente será considerada salário in natura a utilidade fornecida pelo trabalho e não para o trabalho.

Também não serão consideradas salário in natura as utilidades fornecidas em atendimento a dever legal do empregador. Salienta-se, aqui, que o dever legal não necessariamente favorecerá o empregado, como é o caso das atividades educacionais as quais o empregador tem o dever de participar (art. 205; 212, §5º; CF). Este dever não se restringe aos funcionários, estendendo-se aos seus filhos ou, até mesmo, à comunidade, porém, de qualquer modo, não será considerado salário utilidade.

O terceiro requisito exposto na introdução é a onerosidade unilateral da oferta da utilidade, isto é, o custo do fornecimento teria que ser suportado somente pelo empregador. O fundamento deste requisito é que, se o empregado tivesse que pagar pela utilidade, o seu fornecimento deixaria de ter caráter estritamente contraprestativo.

A aplicabilidade deste terceiro requisito, entretanto, é bastante controversa. Os principais argumentos contrários à sua aplicação são: a imprecisão da tipificação do requisito, já que não se sabe até qual valor a contribuição do empregado poderia significar sua efetiva participação dos custos do fornecimento da utilidade e não mera simulação trabalhista; e a possibilidade de coação ao empregado para que este participe do pagamento da utilidade.

Na realidade, para aplicação do terceiro requisito, o relevante é verificar se a utilidade é fornecida pelo empregador ou se é o empregado quem, manifestando seu desejo de adquirir o bem ou o serviço, paga por ele, às vezes em um autêntico contrato de compra e venda. Neste último caso, não haverá que se falar em salário utilidade, mas, sim, em contrato de natureza civil, paralelo ao contrato de trabalho.

Quanto ao valor pago, mediante desconto, pelo empregado, há entendimento no sentido de que, se este for ínfimo, seria uma fraude, visando apenas a afastar, ilicitamente, a natureza salarial da utilidade. Como já observado, ínfimo ou não, o desconto não afasta, por si só, a natureza salarial da prestação fornecida, caso presentes os requisitos já vistos acima.

A norma jurídica contida em lei, instrumento normativo coletivamente ajustado ou sentença normativa poderá fixar natureza jurídica não salarial para uma utilidade fornecida, desde que esta norma apresente sentido expresso ou inequívoco quanto à instituição da natureza não salarial. Isso acontece, por exemplo, com a alimentação que, de maneira geral, desde que não seja entregue para viabilizar a prestação de serviços, terá caráter salarial (Súmula 241, TST); porém, a Lei 6.321/1976 (Lei do PAT – Programa de Alimentação ao Trabalhador) delimitou moldes sob os quais a alimentação fornecida pelo empregador não terá caráter salarial.

Sobre o tema, é muito comum a Convenção Coletiva de Trabalho estabelecer que o empregador deve fornecer vale-refeição, cesta básica ou auxílio-alimentação, ressalvando que estas utilidades não integrarão o salário. Nesse caso, a jurisprudência entende que devem ser obedecidos os limites estabelecidos na Convenção Coletiva. Entretanto, apesar deste entendimento majoritário (art. 7°, XXVI, CF), a rigor, a definição quanto à natureza jurídica da parcela ou utilidade é matéria reservada à lei (art. 22, I, CF).

A própria Consolidação das Leis do Trabalho apresenta, no parágrafo segundo do seu artigo 458, um rol de utilidades que não serão consideradas como salário in natura. Deve-se relembrar que tal relação é meramente exemplificativa, portanto, não taxativa.

Havendo a caracterização de salário in natura, haverá a sua repercussão sobre outras verbas contratuais trabalhistas (efeito expansionista circular dos salários), dependendo, o tipo e a extensão desses efeitos, da modalidade de salário em que se enquadra a respectiva utilidade.

Utilidades fornecidas em períodos mensais ou inferiores, normalmente serão considerados como salário-base; utilidades ofertadas em espaços temporais mais largos que o mês serão, normalmente, integradas ao salário como gratificação periódica; se a utilidade for fornecida em virtude do trabalho em circunstâncias especiais, sua integração será, normalmente, na qualidade de adicional convencional, produzindo os mesmos efeitos que o salário-base, porém com a peculiaridade de tratar-se de salário condição.

Quanto à valoração do salário utilidade, esta deve ser justa e razoável, não podendo exceder, em cada caso, os valores dos percentuais das parcelas componentes do salário-mínimo (art. 81 e 82, CLT). Ademais, o valor recebido em dinheiro não poderá ser inferior a trinta por cento do salário mínimo (art. 82, parágrafo único, CLT). Para empregados que recebam salário superior ao mínimo, o valor atribuído a cada utilidade deverá ser o valor real, respeitados os percentuais normativos aplicáveis ao correspondente salário contratual (Súmula 258, Tribunal Superior do Trabalho), isto é, os percentuais legais incidem sobre o salário contratual e não sobre o salário mínimo.

O parágrafo 3º do artigo 458 da Consolidação das Leis do Trabalho determina que o salário utilidade referente à habitação e à alimentação não poderão exceder a 25% (vinte e cinco por cento) e 20% (vinte por cento) do salário contratual, respectivamente. Quanto a outras utilidades, o Decreto 94.062/1987 fixa os percentuais referentes, segundo distintas regiões do país.

Quanto ao empregado rural, a Lei 5.889/1973 (Lei do Trabalho Rural) apresenta algumas especificidades, como um rol taxativo para fornecimento de salário utilidade aos empregados rurais (art. 9º, Lei 5.889/1973). Frisa-se que a referida lei inverte, para os empregados rurais, os percentuais aplicáveis aos empregados urbanos, sendo, naquele caso, permitido o máximo de 20% (vinte por cento) para moradia e 25% (vinte e cinco por cento) para alimentação. É importante relembrar também que, sendo a lei citada especial, esta se sobrepõe ao rol exemplificativo apresentado pela Consolidação das Leis do Trabalho.

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A taxatividade do rol apresentado pela Lei 5.889/1973 afasta a possibilidade de serem considerados salário utilidade outros benefícios porventura concedidos aos empregados rurais. Entretanto, havendo habitualidade no fornecimento de tais benefícios, apesar destes não se integrarem ao salário, não poderão ser retirados pelo empregador, pelo Princípio da Inalterabilidade Contratual Lesiva (art. 468, CLT; e 1º, caput, Lei 5.889/1973).

Quanto ao valor de integração ao salário, apresenta-se outra especificidade aplicada aos empregados rurais, já que aquele somente poderá ser calculado sobre o salário mínimo, pouco importando o valor real do bem ou o salário do obreiro.

A lei em comento, em seu artigo 9º, traz outra especificidade quando explicita a vedação originada do Princípio da Inalterabilidade Contratual Lesiva e deduzida da norma geral (CLT), referente à necessidade de autorização do empregado para realização de dedução em função da oferta de salário utilidade.

Por fim, ainda pela determinação do 9º artigo da Lei 5.889/1973 (parágrafo único), diferentemente do que ocorre quanto aos empregados urbanos, para os rurais, é possível que haja a supressão da natureza salarial do salário utilidade por meio de ajuste contratual, desde este seja escrito, haja assinatura de duas testemunhas, a cláusula que trate do tema seja expressa no sentido da supressão e o sindicato de trabalhadores rurais respectivo seja notificado a respeito do ajuste.

Quanto ao empregado doméstico, a Lei 5.859/1972 veda, em seu artigo 2ª-A, o desconto no salário do empregado por fornecimento de alimentação, vestuário, higiene ou moradia; salvo, neste último caso, quando o local da moradia seja diverso da residência em que ocorrer o labor e a possibilidade de desconto tenha sido expressamente acordada entre as partes (requisitos cumulativos).

Assim, as utilidades normalmente fornecidas para possibilitar ou viabilizar a própria prestação dos serviços domésticos não apresentam natureza salarial, com exceção da moradia, nos casos em que estiverem presentes os requisitos citados.

Da mesma forma, outras utilidades, caso tenham natureza salarial e sejam de modalidades diversas daquelas previstas no artigo 2°-A, caput, da Lei 5.859/1972, também podem ser objeto de descontos; além disso, se presentes os requisitos caracterizadores do salário in natura, e não houver o respectivo desconto (desde que não seja vedado por lei), o valor da utilidade deve ser computado no salário, para cálculo de outras verbas trabalhistas e previdenciárias.


FONTES:

Constituição Federal, 1988.

Consolidação das Leis do Trabalho, 1943.

Lei 5.859, de 11 de dezembro de 1972.

Lei 5.889, de 8 de junho de 1973.

Lei 6.321, de 14 de abril de 1976.

Súmula nº 241 do Tribunal Superior do Trabalho.

Súmula nº 258 do Tribunal Superior do Trabalho.

Súmula nº 367 do Tribunal Superior do Trabalho.

DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 12ª ed. São Paulo: LTr, 2013.


Notas

[1] Disponível em: http://trt-3.jusbrasil.com.br/noticias/154550470/alimentacao-fornecida-pela-empresa-nao-configura-salario-in-natura-se-ha-pequena-participacao-do-empregado

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Sobre a autora
Marcela Faraco

Advogada, Consultora de Direito. Atuante, desde 2007, na carreira jurídica, nas áreas do Direito Civil, Direito do Trabalho, Direito Empresarial e Direito do Consumidor.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PATRÍCIO, Marcela Faraco. O salário in natura (salário utilidade) e suas repercussões no contrato de trabalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5182, 8 set. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/40315. Acesso em: 22 dez. 2024.

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