O trabalho tem por objetivo demonstrar a possibilidade de bens públicos, que não atingem a função social, sofrerem prescrição aquisitiva, esse é o posicionamento de uma minoria da doutrina, posicionamento bastante rebatido, principalmente, pelos administrativistas e constitucionalistas, visto que a entendimento destes, tal posicionamento contrariaria a Súmula 340 do STF.
Far-se-á também uma exposição de legislações anteriores ao Código de 1916 que possibilitava algumas formas de usucapião de terras devolutas, terras públicas.
E mais, introduziu-se ao presente, julgados recentes que atualmente tem posicionado entendimento no sentido de não mais considerar o conceito residual de bem público, ficando determinando nesses posicionamentos, que cabe ao ente federado demandado provar a titularidade do bem, pois uma vez não feita, considerá-lo-á como res nullius.
A divisão do trabalho foi feita em quatro capítulos, no primeiro deles busca-se a conceituação da função social de maneira geral, intrínseco ao mesmo capítulo abordou-se o tema da função social do bem público, foi necessário incluir essa parte ao trabalho, vez que não é redundante afirmar que o bem público deve cumprir a sua função social, é claro que os bens públicos comuns devido sua natureza já possuem por sua natureza a função social, o bens de uso especial, possuem a função social devido sua afetação, então o parêntese foi aberto em relação aos bens dominicais.
No segundo capítulo traz-se a conceitualização do que são bens públicos, além de sua qualificação conforme a doutrina, dentro desse capítulo foi inserido um subcapítulo com intuito de aprofundar um pouco o estudo de terras devolutas.
Logo à frente, no quarto capítulo, é abordado á usucapião dentro do ordenamento jurídico, nesse capítulo traz-se um breve relato histórico, o conceito e as espécies de usucapião no ordenamento jurídico brasileiro, e além da inclusão de dois subcapítulos, no primeiro subitem é tratado á usucapião de bem público conforme doutrina minoritária e majoritária, já no segundo subitem conforme entendimento atual da jurisprudência.
No quarto e último capítulo traz-se uma análise da Lei Municipal de Sacramento n. 119/87 e da Lei n. 11.977/09, Capítulo III – Regularização Fundiária de Assentamentos Urbanos, demonstrando o quanto ambas as leis são inovadoras no ordenamento pátrio, uma datada de 1987 e a outra de 2009, além de ressaltar nesse capítulo o vanguardismo da Lei Municipal de Sacramento/MG, que regulamenta processo administrativo de regularização fundiária, dentro do Município de Sacramento/MG, muitíssimo similar ao da Lei n. 11.977/09.
No mais, salienta-se que sendo o direito uma ciência humana, este evolui juntamente com a sociedade, e é instrumento de efetivação não só de direitos, mas também de justiça social, de tal modo que o direito busca alternativas para igualizar as relações e preservar a harmonização do convívio em sociedade.
Dessa forma, a presente pesquisa visa contribuir com essa assertiva, uma vez que não se pode mais aceitar a inércia do Estado, e as injustiças e desigualdades sociais existentes na atualidade, assim a usucapião de bem classificado como público visa possibilitar a regularização fundiária e garantir o acesso à moradia, resguardando principalmente aqueles os quais o direito tem que primeiro socorrer, ou seja, os necessitados.
CAPITULO 1
A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
A evolução na História e no Direito produziu uma grande transformação no direito de propriedade retirando-lhe aquele caráter absoluto advindo do Direito Romano, de que se revestia em épocas passadas, onde o proprietário poderia usar, gozar, e dispor da propriedade como bem quisesse, passando a dar a propriedade uma conotação social em prol do coletivo.
Embora as constituições brasileiras sempre protegessem a propriedade, inclusive como direito fundamental, a primeira vez que no ordenamento jurídico brasileiro, positivamente, fez menção ao uso social da propriedade foi na Carta de 1946, bem estar social, com objetivo de promover a desapropriação por interesse social, in verbis: “Art. 147 - O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social. A lei poderá, com observância do disposto no art. 141, § 16, promover a justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos.[1]”
Porém, somente a partir das Constituições de 1967 e 1969, bem como na atual, de 1988, o constituinte empregou o conceito de função social para limitar o exercício do direito da propriedade, assim, a função social da propriedade atualmente é entendida como um princípio fundamental e limitador do caráter absoluto da mesma, deixando pra trás de vez o conceito romano privativo e individualista, e egoísta de propriedade.
A propriedade atualmente deve estar vinculada aos interesses sociais e econômicos da coletividade, de forma que a propriedade rural deverá ser produtiva para garantir a alimentação e o trabalho digno do povo brasileiro, o meio ambiente deverá ser conservado, e somente o excedente da produção da propriedade deve ser exportado, o imóvel urbano, da mesma forma, deve estar em consonância com as Leis Municipais, tais como o Plano Diretor, a Lei de uso e ocupação do solo e o Estatuto das Cidades, dentre outras, respeitando também o meio ambiente e o crescimento sustentável.
De acordo com o civilista Carlos Roberto Gonçalves em seu livro, Direito civil brasileiro - Direito das Coisas, Léon Duguit foi o precursor da ideia de que a propriedade gerava para o seu titular, um ônus, o dever de empregar a mesma em benefício e interesse da coletividade, segue transcrição:
(...) Duguit é considerado o precursor da ideia de que os direitos só se justificam pela missão social para a qual devem contribuir e, portanto, que o proprietário deve comportar-se e ser considerado, quanto à gestão dos seus bens, como um funcionário. Para o mencionado autor, a propriedade deixou de ser o direito subjetivo do indivíduo e tende a se tornar a função social do detentor da riqueza mobiliária e imobiliária; a propriedade implica para todo detentor de uma riqueza a obrigação de empregá-la para o crescimento da riqueza social e para a interdependência social. Só o proprietário pode executar certa tarefa social. Só ele pode aumentar a riqueza geral utilizando a sua própria; a propriedade não é, de modo algum, um direito intangível e sagrado, mas um direito em contínua mudança que se deve modelar sobre as necessidades sociais às quais deve responde.[2] (grifo nosso)
Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias, pactuam com o posicionamento de Duguit:
A função social penetra na própria estrutura e substância do direito subjetivo, traduzindo-se em uma necessidade de atuação promocional por parte do proprietário, pautada no estimulo a obrigação de fazer, consistentes em implementação de medidas hábeis a impulsionar a exploração racional do bem, com a finalidade de satisfazer os seus anseios econômicos sem aviltar as demandas coletivas, promovendo o desenvolvimento econômico e social, de modo a alcançar o valor supremo no ordenamento jurídico: a Justiça.[3]
Maria Helena Diniz, em seu livro, Curso de Direito Civil Brasileiro – Volume 4°, direito das coisas, de forma análoga ensina:
A função social da propriedade é imprescindível para que se tenha um mínimo de condições para a convivência social. A Constituição Federal, no art.5°, XXII, garante o direito de propriedade, mas requer, como vimos, que ele seja exercido atendendo a sua função social. Com isso, a função social da propriedade a vincula não só à produtividade do bem, como também aos reclamos da justiça social, visto que deve ser exercida em prol da coletividade. Fácil é perceber que os bens, que constituem objeto do direito de propriedade, devem ter uma utilização voltada à sua destinação socioeconômica. O princípio da função social da propriedade está atrelado, portanto, ao exercício e não ao direito de propriedade.[4]
A indigitada doutrinadora, faz inclusive uma citação do renomado e ilustre Miguel Reale, para respaldar seu posicionamento: “Como diz Miguel Reale "a propriedade é como Janus bifronte: tem uma face voltada para o indivíduo e outra para a sociedade." Sua função social é individual e social”.[5]
Salienta-se que o objetivo não é retirar do proprietário o seu direito sobre a propriedade, mas obriga-lo a cumprir a função social da mesma.
Contrariamente, vê-se que o princípio da função social da propriedade, está bem longe de ser aplicado, o que vemos não são propriedades rurais produzindo alimentos para o povo brasileiro, o que o cenário atual nos apresenta, são de hectares e hectares de cana de açúcar para produção de álcool e açúcar, hectares e hectares de lavoras de soja, hectares e hectares de pasto para o gado de corte, em todos esses exemplos com objetivo primordial e exclusivo para a exportação, e ainda, que haja uma parcela de propriedades produzindo alimentos para o consumo geral da coletividade, com certeza não vai demorar muito para que as mesmas sejam sucumbidas pelas monoculturas, a exemplo disso, verificamos a cana de açúcar adentrando do triângulo mineiro.
Reiteramos que não basta que a propriedade rural seja produtiva simplesmente, ela deve atender ao interesse da coletividade em todos os seus aspectos, como bem colocou Maria Helena Diniz:
O atendimento ao princípio da função social da propriedade requer não só que o uso do bem seja efetivamente compatível à sua destinação socioeconômica, p. ex., se este for imóvel rural, nele dever-se-á exercer atividade agrícola, pecuária, agropecuária, agroindustrial ou extrativa, mas também que sua utilização respeite o meio ambiente, as relações de trabalho, o bem-estar social e a utilidade de exploração.[6]
E mais, no âmbito urbano verificamos a presença de vários terrenos vazios sem nenhuma utilização, com finalidade exclusivamente especulativa, deve a Administração Pública nesses casos, atuar efetivamente por meio de seu poder de polícia, aplicando ás cominações da limitação administrativa as quais: o IPTU progressivo, parcelamento do solo, desapropriação-sanção, edificação compulsória, dentro outras, a fim inclusive de combater as situações de desigualdades econômicas e sociais.
Verifica-se que embora esteja á função social da propriedade positivada explicitamente na nossa Carta Magna em mais de um artigo, conforme as previsões do Art. 5°, XXIII [7], Art.170, III[8], no § 2° do art. 182[9], art. 184[10] e art. 186[11], e também no Código Civil de 2002 em seu artigo 1.228[12], o qual afasta o caráter individualista e egoístico da propriedade, coibindo inclusive o abuso de direito sobre a mesma, fica evidente que a função social da propriedade gravita em um campo abstrato, o que se evidencia é que a propriedade esta sendo exclusivamente valorizada não pela função social em prol da coletividade, mas sim em prol do privado, do particular, pelo tanto que a mesma vale ou lucra, e isso se comprova em relação aos imóveis rurais devido o grande crescimento do agronegócio no Brasil e no âmbito urbano devido ao crescimento imobiliário dos últimos anos, verifica-se de tal sorte, um retrocesso marcado pelo capitalismo mundial, sob pena de morte do princípio da função social da propriedade.
No que tange aos imóveis de públicos, Maria Sylvia Zanella di Pietro, escreveu um artigo, Função Social da Propriedade Pública[13], nesse artigo a nobre doutrinadora esclarece que é possível sim falar em função social da propriedade pública, sem que isso seja considerado por demasiado óbvio, uma vez que o bem público possui finalidade exclusiva de interesse público, assim bem coloca a doutrinadora no referido artigo: “(...) Não é demais repetir que a destinação pública é inerente à própria natureza jurídica dos bens de uso comum do povo e de seu uso especial, porque eles estão afetados a fins de interesse público, ou seja, por sua própria natureza seja por destinação legal.(...).”
Explica Maria Sylvia Zanella Di Pietro que não há dúvidas que os bens de uso comum do povo e os bens de uso especial possuam função social, a discussão em relação à função social do bem púbico paira sobre os bens dominicais, de forma que esses bens são considerados disponíveis, pois a Administração Pública poderá aliena-los, permuta-los ou mesmo cede-los conforme interesse social, e mais, há quem entenda que o tratamento dado a estes bens dominicais equipara-se aos dados aos bens particulares, devendo esses bens possuir função social da propriedade.
Completa, Maria Sylvia Zanella Di Pietro, no mesmo artigo: “(...) Com efeito, não há por que excluir os bens dominicais da incidência das normas constitucionais que asseguram a função social da propriedade, quer para os submeter, na área urbana, às limitações impostas pelo Plano Diretor, quer para enquadra-los, na zona rural, aos planos de reforma agrária.(...).”
E conclui dizendo: “(...) Com relação aos bens dominicais, a função social impõe ao poder público o dever de garantir a sua utilização por forma que atenda às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor, dentro dos objetivos que a Constituição estabelece para a política de desenvolvimento urbano. (...)”
Pelo exposto, conclui-se que tanto os bens particulares quanto os bens dominicais públicos são afetados pelo princípio da função social da propriedade, sob pena, inclusive de ir na contramão da nossa Constituição de 1988.
E por fim, considerando que no nosso país, existem milhares e milhares de família que não possuem moradia, direito este garantido explicitamente pela nossa Constituição em seu art. 6°, e mais do que isso que integra o princípio da dignidade da pessoa humana, cabe aqui tecer um questionamento, no que se refere aos bens públicos, que não a atingem a sua função social:
Será justo que os bens públicos desafetados fiquem imunes às mesmas culminações que sofrem os bens particulares que não atingem a sua função social?
CAPITULO 2
OS BENS PÚBLICOS - DEFINIÇÃO E ESPÉCIES
Os bens públicos de modo geral são chamados de bens dominiais, ou seja, conjunto de bens de propriedade de um ente público, sob o domínio da administração pública, muitos confundem essa nomenclatura e a coloca como sinônimo de bens dominicais, o que não é correto.
José dos Santos Carvalho Filho, cita Cretella Junior que ensina o seguinte a respeito do tema: “Distingue as noções, reservando a expressão “bens dominiais” como gênero indicativo dos bens do domínio do estado e “bens dominicais” como sendo os bens que constituem o patrimônio dos entes públicos, objeto de direito real ou pessoal.”[14]
Assim, a expressão “dominiais”, advém da noção de domínio, e domínio esse que o ente público também possui sobre os bens de uso especial e dos bens de uso comum do povo, de outro modo a expressão dominicais refere-se aos bens públicos de caráter residual, isto é, são todos os que não estejam incluídos nas demais categorias, bens de uso comum do povo e bens de uso especial.
Em relação à classificação o nosso Código Civil, classifica os bens públicos segundo sua destinação, assim são três as espécies, como previsto no art. 99 do CC/02: (i) bens de uso comum do povo; (ii) bens de uso especial; e (iii) bens dominicais, in verbis:
Art. 99. São bens públicos:
I - os de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças;
II - os de uso especial, tais como edifícios ou terrenos destinados a serviço ou estabelecimento da administração federal, estadual, territorial ou municipal, inclusive os de suas autarquias;
III - os dominicais, que constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal, ou real, de cada uma dessas entidades.
Parágrafo único. Não dispondo a lei em contrário, consideram-se dominicais os bens pertencentes às pessoas jurídicas de direito público a que se tenha dado estrutura de direito privado.[15]
O art. 98 do CC/02, por sua vez, esclarece que são bens públicos os bens de titularidade das pessoas jurídicas de direito público interno: “Art. 98. São públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem.[16]”
Como pode se observar há uma classificação tripartite em relação aos bens públicos, os quais em síntese são:
1. os bem de uso comum do povo, destinados á utilização geral, p.ex. ruas, praças, rios, florestas, etc.;
2. os bens de uso especial, são os que se referem ao serviço da administração pública, inclusive os de suas autarquias, p.ex. hospitais, creches, escolas, prédio da prefeitura, etc; e por fim,
3. os bens dominicais, esses por sua vez, são residualmente classificados, são os demais bens pertencentes ao patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, sem afetação, p. ex. o bem imóvel sem utilização, as terras devolutas, os bens móveis em desuso.
Maria Sylvia Zanella Di Pietro, assim explica essa classificação tripartite:
O critério dessa classificação é o da destinação ou afetação dos bens: os da primeira categoria são destinados, por natureza ou por lei, ao uso coletivo; os da segunda ao uso da Administração, para consecução de seus objetivos, como os imóveis onde estão instaladas as repartições públicas, os bens móveis utilizados na realização dos serviços públicos (veículos oficiais, materiais de consumo, navios de guerra), as terras dos silvícolas, os mercados municipais, os teatros públicos, os cemitérios públicos; os da terceira não têm destinação pública definida, razão pela qual podem ser aplicados pelo poder público, para obtenção de renda; é o caso das terras devolutas, dos terrenos de marinha, dos imóveis não utilizados pela Administração, dos bens móveis que se tornem inservíveis.[17]
Outra classificação semelhante a tripartite é a em relação á disponibilidade dos bens públicos, assim vejamos:
- Bens Públicos indisponíveis devido sua natureza – são aqueles que devido sua característica de não patrimoniais, são insuscetíveis de alienação, são bens de uso comum do povo, naturalmente inalienável, são de utilização universal e difusa, à exemplo: meio ambiente.
- Bens patrimoniais indisponíveis – são bens patrimoniais, contudo com finalidades específicas, permanecem inalienáveis enquanto mantiverem essa condição, são bens de uso especial do povo.
- Bens patrimoniais disponíveis – são totalmente passíveis de alienação, bens sem finalidade específica, em desuso pelo ente público.
Há também uma conceituação como bipartite, considerando a finalidade, afetação, dos bens públicos, conforme esclarece Maria Sylvia Zanella Di Pietro:
Pelos termos do artigo 99, já se nota um ponto comum -destinação pública -nas duas primeiras. modalidades (bens de uso comum do povo e bens de uso especial), e que as diferencia da terceira, sem destinação pública. Por essa razão, sob o aspecto jurídico, pode-se dizer que há duas modalidades de bens públicos: 1. os do domínio público do Estado, abrangendo os de uso comum do povo e os de uso especial; 2. os do domínio privado do Estado, abrangendo os bens dominicais.
Na concepção de Marçal Justen Filho essa classificação realizada deixa um tanto a desejar:
Essa classificação apresenta grandes problemas, encontrando-se ultrapassada em face do direito positivo brasileiro. O primeiro problema reside em que o legislador tinha em mente apenas os bens imóveis, olvidando a existência e a relevância dos bens moveis e direitos. Assim, a classificação não contempla, por exemplo, os direitos de propriedade industrial (patetes, por exemplo), que apresentam enorme importância. Ademais disso, existe grande relevância jurídica quanto aos direitos de uso e fruição de bens públicos de natureza imóvel. O grande exemplo é o direito de exploração de potenciais hidráulicos de geração energética.[18]
O Novo Código Civil de 2002, o legislador, aparentemente, ao editar o respectivo código deixou-o este praticamente cópia literal do Código Civil de 1916[19], sem trazer as inovações referidas pelo nobre doutrinador.
Na definição de bem público, Marçal Justen Filho completa: “Bens públicos são os bens jurídicos atribuídos à titularidade do Estado, submetidos a regime jurídico de direito público, necessários ao desempenho das funções públicas ou merecedores de proteção especial.[20]”
No que condiz com o desempenho das funções públicas, o ilustre doutrinador, esclarece que se trata de bens móveis e imóveis para o desempenho da administração pública, seja administrativa ou não, já quando se refere a bens merecedores de proteção especial, são os de uso comum do povo, tais como praças ruas, nascentes, florestas, ou seja, são bens utilizados por toda a coletividade, etc.
Maria Sylvia Zanella Di Pietro, sita em seu livro a definição de bem público estabelecida no Regulamento do Código de Contabilidade Pública da União, Decreto n. 15.783/1922:
Outra classificação dos bens públicos é a que constava do Regulamento do Código de Contabilidade Pública da União, aprovado pelo Decreto nº 15. 783, de 8-11-22 (revogado pelo Decreto de 25-4-91). Embora empregando, no artigo 803, a mesma terminologia utilizada no artigo 66 do Código Civil anterior, fazia melhor distinção, no artigo 807, chamando os bens de uso especial de patrimoniais indisponíveis e, os dominicais, de patrimoniais disponíveis. Daí já resultava mais clara a natureza alienável dos bens dominicais e a inalienabilidade dos demais, que são indisponíveis, ou por se destinarem ao uso coletivo ou por estarem destinados ao uso direto ou indireto da Administração, para consecução de seus fins.[21]
Fica evidenciado assim a disponibilidades dos bens dominicais, podendo esses serem inclusive, alienados, permutados, cedidos, etc, enquanto os de uso comuns são indisponíveis, portando inalienáveis, insta esclarecer que os bens de uso especial só poderão ser alienados se desafetados pelo ente público.
E ainda, há alguns doutrinadores que classificam os bens públicos em formais e materiais, para explicar a possibilidade de alienação dos bens dominicais, assim explica Elder Luís dos Santos Coutinho em seu texto “Da possibilidade de usucapião de bens formalmente públicos” [22]:
Muitos autores ainda dividem os bens públicos em materiais e formais. Os materiais seriam aqueles bens públicos por excelência, já que destinados à função público-social. Já os bens públicos formais, contrariamente, seriam aqueles desafetados de qualquer destinação pública, ou seja, públicos pela simples designação legal, os quais, no entendimento de alguns doutrinadores, seriam prescritíveis e consequentemente passíveis de aquisição por usucapião, em respeito ao princípio da função social da propriedade.
Esse inclusive é o entendimento de Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias.
(...) Os bens públicos poderiam ser divididos em materialmente e formalmente públicos. Estes seriam aqueles registrados em nome da pessoa jurídica de Direito Público, porém excluídos de qualquer forma de ocupação, seja para moradia ou exercício de atividade produtiva. Já os bens materialmente públicos seriam aqueles aptos a preencher critérios de legitimidade e merecimento, posto dotados de alguma função social.[23]
Desta feita, verifica se que há uma corrente minoritária que defende a premissa que os bens dominicais, ou seja, que não possuem afetação, que consequentemente não atinge a função social da propriedade, podem sucumbir á prescrição aquisitiva por particulares.
Assim, o enfoque do presente trabalho ficará adstrito á posse de bens “tidos como públicos”, pertencentes ao patrimônio público, dominicais, e a possibilidade de usucapião dos mesmos, assim como os bens que atualmente a doutrina considera de ninguém, res nullius, uma vez que não há registro de propriedade nem do ente público nem de particulares, podendo evidentemente sofrer a prescrição aquisitiva.
2.1 As terras devolutas
É sabido que as terras devolutas são assim designadas por terem sido restituídas à Coroa Portuguesa, uma vez que essas terras primevamente foram divididas em capitanias e sesmarias, distribuídas a particulares, sendo que muito dessas terras sequer foram ocupadas, gerando assim no século XIX muita confusão em relação á titularidade destas.
Celso Antônio Bandeira de Melo, ensina em sua obra, Curso de Direito Administrativo[24]: “(...) Tanto as terras que jamais foram trespassadas, como as que caíram em comisso, se não ingressaram no domínio privado por algum título legítimo e não receberam destinação pública, constituem as terras devolutas. Com a independência do País, passaram a integrar o domínio imobiliário do Estado brasileiro.”
E completa dizendo:
Pode-se definir as terras devolutas como sendo as que, dada a origem pública da propriedade fundiária no Brasil, pertencem ao Estado – sem estarem aplicadas a qualquer uso público – porque nem foram trespassadas do Poder Público aos particulares, ou se o foram, caíram em comisso, nem se integraram no domínio privado por algum título reconhecido como legítimo.
Em 1850 foi editada a Lei de Terras (Lei n. 601/1850) que destinava fazer a regularização fundiária brasileira, foi a primeira lei brasileira a regulamentar o direito agrário, a indigitada lei traz em seu bojo definição do que se entende como terras devolutas, no seu art. 3º, verbis :
Art. 3º São terras devolutas:
§ 1º As que não se acharem aplicadas a algum uso público nacional, provincial, ou municipal.
§ 2º As que não se acharem no domínio particular por qualquer titulo legítimo, nem forem havidas por sesmarias e outras concessões do Governo Geral ou Provincial, não incursas em comisso por falta do cumprimento das condições de medição, confirmação e cultura.
§ 3º As que não se acharem dadas por sesmarias, ou outras concessões do Governo, que, apesar de incursas em comisso, forem revalidadas por esta Lei.
§ 4º As que não se acharem ocupadas por posses, que, apesar de não se fundarem em titulo legal, forem legitimadas por esta Lei.
Na definição de Marçal Justem Filho as terras devolutas são:
“As terras devolutas são os bens imóveis que, qualificados como públicos pela Lei n. 601/1850, porque, na data da vigência dela, não se encontravam nem (a) afetados ao desenvolvimento de atividades estatais nem (b) sob o domínio privado, não receberam uma outra qualificação jurídica posteriormente.” [25]
Assim havia nessa época três situações jurídicas envolvendo as terras brasileiras, conforme ensina, Maçal Justen Filho, vejamos:
“Haviam imóveis ocupados pelos poderes públicos (Coroa Imperial, províncias e municípios), com ou sem título. Depois, havia bens na titularidade inquestionável de sujeitos privados (ainda que a titulação jurídica pudesse ser produzida por diversas vias). E, em terceiro lugar, havia uma enorme parcela de terras cuja situação jurídica era indeterminada. Ou estavam abandonadas ou eram ocupadas sem qualquer título formal por um particular. Essa terceira categoria foi qualificada como “terra devoluta”, sendo integrada no domínio público.”[26]
Ou seja, as terras que não eram de particulares e não eram da Coroa Portuguesa, passaram a integrar a coroa, sendo, portanto, consideradas públicas, corresponde aos imóveis atualmente classificados como dominicais, destituídas de afetação, pois não possuíam qualquer finalidade específica.
Há que salientar que até 1916 era permitida a usucapião de terras devolutas conforme o art. 5° da Lei n. 601/1850, Ipsis litteris:
Art. 5º Serão legitimadas as posses mansas e pacificas, adquiridas por ocupação primaria, ou havidas do primeiro ocupante, que se acharem cultivadas, ou com principio de cultura, e morada, habitual do respectivo posseiro, ou de quem o represente, guardadas as regras seguintes:
§ 1º Cada posse em terras de cultura, ou em campos de criação, compreenderá, além do terreno aproveitado ou do necessário para pastagem dos animais que tiver o posseiro, outrotanto mais de terreno devoluto que houver contiguo, contanto que em nenhum caso a extensão total da posse exceda a de uma sesmaria para cultura ou criação, igual ás ultimas concedidas na mesma comarca ou na mais vizinha.
§ 2º As posses em circunstancias de serem legitimadas, que se acharem em sesmarias ou outras concessões do Governo, não incursas em comisso ou revalidadas por esta Lei, só darão direito á indenização pelas benfeitorias.
Exceptua-se desta regra o caso do verificar-se a favor da posse qualquer das seguintes hipóteses: 1ª, o ter sido declarada boa por sentença passada em julgado entre os sesmeiros ou concessionários e os posseiros; 2ª, ter sido estabelecida antes da medição da sesmaria ou concessão, e não perturbada por cinco anos; 3ª, ter sido estabelecida depois da dita medição, e não perturbada por 10 anos.
§ 3º Dada a excepção do parágrafo antecedente, os posseiros gozarão do favor que lhes assegura o § 1º, competindo ao respectivo sesmeiro ou concessionário ficar com o terreno que sobrar da divisão feita entre os ditos posseiros, ou considerar-se também posseiro para entrar em rateio igual com eles.
§ 4º Os campos de uso comum dos moradores de uma ou mais freguesias, municípios ou comarcas serão conservados em toda a extensão de suas divisas, e continuarão a prestar o mesmo uso, conforme a pratica atual, enquanto por Lei não se dispuser o contrário. [27] (sic)
Houve nessa época uma grande transferência de terras devolutas a particulares que comprovavam a posse sobre a propriedade, sobre fundamento do dispositivo acima citado.
Após 1916, ainda existiram algumas possibilidades de usucapião de bens públicos, as quais eram, a usucapião pro labore (Constituições de 1934, 1937 e 1946) e a usucapião especial (Lei n. 6.969, de 1012-81), e somente com a Carta Magna de 1988, essa possibilidade foi positivamente retirada do texto constitucional.
Atualmente as terras devolutas enquadram-se no regime de bem público, como bens dominicais e pertencentes ao Estado, são terras sem afetação, não podendo sofrer prescrição aquisitiva como coloca a doutrina dominante.
Contudo, e considerando que praticamente nenhum ente federado detinha ou detém conhecimento das terras devolutas em seus territórios, foi editada a Lei n. 6.383/76, objetivando a ação discriminatória, com a finalidade de identificar essas terras, dessa forma, e a partir da edição dessa lei, para que a terra seja intitulada como devoluta é necessário um procedimento inicialmente administrativo e após o reconhecimento deste pela via judiciária, por meio de Ação Discriminatória, ou seja, o ente federativo deve demarcar as suas terras devolutas e pedir ao judiciário o reconhecimento das mesmas, conforme ensinamentos de Marçal Justen Filho:
A disciplina da ação discriminatória envolve a titularidade do direito de ação para uma pessoa estatal. O ajuizamento da ação pressupõe o exaurimento de uma etapa administrativa prévia, destinada a verificar a presença dos pressupostos necessários, inclusive com a oportunidade de manifestação de potenciais interessados. Concluída a via administrativa, abre-se a oportunidade para o início do processo judicial, que é orientado a obter sentença declaratória da submissão da área ao regime de terra devoluta – mas poderá conduzir ao reconhecimento da existência de fato superveniente a 1850, apto a excluir esse resultado.[28]
E mais, atualmente, a jurisprudência da nossa colenda corte postula entendimento pacificado de que não mais se presume a titularidade de terras devolutas em favor dos Entes Federados, no Recurso Especial n. 964.223 o relator, Senhor Ministro Luiz Felipe Salomão cita Pontes de Miranda, o qual leciona que existem as terras devolutas, ás quais de propriedade do Estado, terras particulares e terras de ninguém, segue parte do excerto:
(...) A concepção de que ao Príncipe toca o que, no território, não pertence o outrem, particular ou entidade de direito público, é concepção superada. As terras ou são dos particulares, ou do Estado, ou nullius. Nem todas as terras que deixam de ser de pessoas físicas ou jurídicas se devolvem ao Estado. Ao Estado vai o que foi abandonado, no sentido preciso do art. 589, III. Ao Estado foi o que, segundo as legislações anteriores ao Código Civil, ao Estado se devolvia. A expressão "devolutas", acompanhando "terras", a esse fato se refere. O que não foi devolvido não é devoluto. Pertence a particular, ou ao Estado, ou a ninguém pertence. Quanto às terras que a ninguém pertence e sobre as quais ninguém tem poder, o Estado - como qualquer outra pessoa, física ou jurídica - delas pode tomar posse. Então, é possuidor sem ser dono. Não foi a essas terras que se referiu a Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850, art. 3º, tanto assim que se permitia a usucapião das terras não-apropriadas. Cf. Lei nº 601, art. 1 Q, alínea 1ª: "Ficam proibidas as aquisições de terras devolutas por outro título que não seja o de compra." Tal proposição existia no mesmo sistema jurídico em que existiam as regras jurídicas sobre usucapião (de tempo longo e de tempo breve). (Tratado de direito privado. v. 12, Campinas: Bookseller, 2001, p. 523/524).
Resta demonstrado com a leitura do trecho de Pontes de Miranda, que terras sem dono, adéspotas, são diferentes de terras devolutas, ou seja, não pertence ao Estado e nem a particular, podendo ser ocupadas por ambos.
E por fim, não se pode olvidar que uma brecha foi aberta no sentido de possibilitar a usucapião de bens considerados como públicos e que não possuem registro de propriedade, já que a própria legislação prevê que deverá as terras públicas ser demarcadas e intituladas como terras devolutas, para ser consideradas do patrimônio público, conclusão essa que contraria a maioria esmagadora dos doutrinadores constitucionalistas e administrativistas, que consideram o conceito de terras devolutas como residual.
CAPITULO 3
A USUCAPIÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO
A palavra “usucapião” advém do latim capio que significa tomar e usu que significa pelo uso, ou seja, tomar alguma coisa em relação ao seu uso.
Assim, o termo “usucapião” pode ser traduzido por ocupação, tomada, ou aquisição pelo uso, é importante salientar que a usucapião é modo originário, isto porque não se dá por transmissão, mas sim pelo cumprimento de requisitos elencados pela lei e mediante sentença declaratória.
A ilustre doutrinadora Maria Helena Diniz conceitua a usucapião como um modo de aquisição de propriedade e outros direitos reais pela posse prolongada da coisa com observância dos requisitos legais, ainda nas palavras de Maria Helena Diniz:
“A usucapião é um direito novo, autônomo, independente de qualquer ato negocial provindo de um possível proprietário, tanto assim que o transmitente da coisa objeto do usucapião não é o antecessor, o primitivo proprietário, mas a autoridade judiciária que reconhece e declara por sentença a aquisição por usucapião. [29]”
Assim também coloca, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald: “A aquisição é modo originário de aquisição de propriedade e de outros direitos reais, pela posse prolongada da coisa, acrescida de demais requisitos legais.[30]”
A Lei das XII Tábuas foi a primeira a positivar o instituto, conforme ensina Maria Helena Diniz:
A sua primeira manifestação caracterizou-se por uma posse prolongada durante o tempo exigido pela Lei das XII Tábuas: 2 anos para os imóveis e 1 ano para os moveis e as mulheres, pois o usus também foi uma das formas de matrimônio na antiga Roma. Posteriormente, o prazo para bens imóveis passou para 10 anos entre presentes e 20 anos entre ausentes.[31]
No ordenamento pátrio, a Lei n. 601, de 18 de setembro de 1850, foi a primeira a reconhecer e a legitimar a posse pelos posseiros, desde que esses cultivassem a terra e fixa-se moradia.
O direito brasileiro prevê várias formas de usucapião:
As usucapiões especiais constitucionais, regulamentadas pela nossa Constituição Federal nos artigos 183 (usucapião especial urbano ou pro morare), espécie também regulamentada também pelo art. 9º do Estatuto da Cidade, os requisitos são: imóvel até 250m², 5 anos de posse, não possuir outro imóvel, utilizando para moradia da família.
E art.191 (usucapião especial rural ou pro labore)[32], espécie regulamentada também regulamentada pelo art. 1º da Lei n.6969/1981, os requisitos são: área de 50 ha. Zona rural, 5 anos de posse, não possuir outro imóvel, tornando a terra produtiva, tendo nela a morada de sua família
A Usucapião Comum – está regulamentada pelo Código Civil de 2002 em seus artigos 1238 a 1244, as quais são:
Extraordinária – art. 1238, o qual prevê a aquisição da propriedade em 15 anos, reduzida para 10 anos, caso o adquirente esteja cultivando a propriedade;
Ordinária – art. 1242, o qual prevê a aquisição da propriedade em 10 anos, reduzida para 05 anos, caso o adquirente esteja cultivando a propriedade e/ou utilizando como moradia e havendo justo título e boa-fé.
A Usucapião Coletiva - o Estatuto da Cidade, Lei n. 10.257/01, lei que regulamentou o art. 183 da CF/88, estabelece as diretrizes gerais de política urbana, regulamenta a usucapião especial de imóveis urbanos, usucapião coletiva, com áreas acima de 250m², ocupadas por população de baixa carente, de baixa renda, assim dispõe o art. 10:
Art. 10. As áreas urbanas com mais de 250m² (duzentos e cinqüenta metros quadrados), ocupadas por população de baixa renda para sua moradia, por 5 (cinco) anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, são susceptíveis de serem usucapidas coletivamente, desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel, urbano ou rural.[33]
Há ainda, a usucapião entre ex-conviventes, sejam cônjuges ou companheiros, modalidade incluída pela novíssima Lei n. 12.424, de 2011:
Art. 1.240 – A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
§ 1o O direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.[34]
E por fim, a usucapião extrajudicial, regulamentada pela Lei n. 11977/2009, essa lei de cunho social traz em seu bojo a regularização fundiária de assentamentos urbanos para pessoas de baixa renda, essa lei confere o direito a usucapião após 5 anos de posse, mediante procedimento extrajudicial, reservou-se um capítulo a parte, logo a frente, para melhor elucidar a respeito da referida norma.
E relação aos requisitos da usucapião, estes podem ser divididos em: pessoais, reais e formais.
O primeiro requisito determina a legitimidade do possuidor que pretende adquirir o bem e do proprietário que perde o bem, refere-se ao caráter pessoal, descrito no art. 1244 do Código Civil[35], trazendo restrições que impedem certas pessoas de usucapir, a título de exemplo, não pode ser alegada usucapião entre ascendentes e descendentes durante o poder familiar, entre tutelados e curatelados e seus tutores ou curadores durante essa constância, entre condôminos, salvo no condomínio pro diviso, pretendente incapaz, etc.
Nota, Maria Helena Diniz, cita Orlando Gomes, para explicar que não importa se o que sofre os efeitos da usucapião é capaz ou incapaz: “Esclarece-nos, ainda, Orlando Gomes, que quanto aquele que sofre os efeitos da usucapião não há exigência relativamente à capacidade. Basta que seja proprietário do imóvel. Ainda que não tenha capacidade de fato, pode sofrer os efeitos da posse continuada de outrem, pois cabe ao seu representante impedir esse fato.(...) [36]”
Quanto aos requisitos formais a serem observados, dizem respeito aos fatores necessários e comuns da usucapião, como a posse, o lapso temporal e a sentença judicial, e também os especiais, como o justo título e a boa fé, estes últimos possuem o condão de diminuir o prazo da aquisição.
E ainda, cabe mencionar que a posse deve vir acompanha de dois pressupostos: ad usucapionem e o animus domini, deverá ser mansa e pacífica (exercida sem a contestação do proprietário contra quem pretende usucapir), contínua e pública, no prazo estabelecido em lei.
Assim ensina Carlos Roberto Gonçalves:
Posse ad usucapionem é a que contém os requisitos exigidos pelos arts. 1.238 a 1.242 do Código Civil, sendo o primeiro deles o ânimo de dono (animus domini ou animus rem sibi habendi). Requer-se, de um lado, atitude ativa do possuidor que exerce os poderes inerentes à propriedade; e, de outro, atitude passiva do proprietário, que, com sua omissão, colabora para que determinada situação de fato se alongue no tempo 49. (...)
E continua dizendo.
O segundo requisito da posse ad usucapionem é que seja mansa e pacífica, isto é, exercida sem oposição. Se o possuidor não é molestado, durante todo o tempo estabelecido na lei, por quem tenha legítimo interesse, ou seja, pelo proprietário, diz-se que a sua posse é mansa e pacífica. Requer-se a “ausência de contestação à posse, não para significar que ninguém possa ter dúvida sobre a conditio do possuidor, ou ninguém possa pô-la em dúvida, mas para assentar que a contestação a que se alude é a de quem tenha legítimo interesse, ou seja, da parte do proprietário contra quem se visa a usucapir” 52.[37]
Já os requisitos reais, são referentes aos bens e direitos suscetíveis de serem usucapidos, visto que não são todas as coisas que podem ser alvo da usucapião, conforme já mencionamos os bens públicos não poderão ser objeto de usucapião, ao menos aqueles que possuem função social e interesse público e os bens extracorpóreos.
A Constituição Federal de 1988 no parágrafo 3° do art. 183[38], é expressa ao regulamentar que os bens públicos não poderão ser adquiridos por usucapião.
O STF, por sua vez, sumulou a questão dos bens dominicais com a edição da Súmula 340: “Desde a vigência do Código Civil, os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem ser adquiridos por usucapião.”
A maioria doutrinária não admite a prescrição aquisitiva de bens públicos, ainda que os mesmos sejam desafetados, esse inclusive, é o entendimento dos administrativistas e constitucionalistas consagrados, como Maria Sylvia Zanella di Pietro, Maçal Justen Filho, Celso Antônio Bandeira de Melo, etc.
Contudo, como já mencionado em capítulos anteriores, há uma minoria que reconhece essa possibilidade caso esse imóvel não possua função social, afetação, é o caso dos bens dominicais, minoria esta representada por Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald, assim, para os referidos doutrinadores os bens públicos possuem o dever de cumprir com a função social da propriedade sob pena de descumprir com preceito constitucional:
“Detecta-se, ademais, em análise civil-constitucional que a absoluta impossibilidade de usucapião sobre bens públicos é equivocada, por ofensa ao valor (constitucionalmente contemplado) da função social da posse e, em última instância, ao próprio princípio da proporcionalidade." [39]
Entendem os doutrinadores acima que não considerar a possibilidade da usucapião o bem público é lesão ao princípio da proporcionalidade, posto que não pode o Estado a pretexto da imprescritibilidade do bem público, manter-se inerte e sobrepujar o direito a moradia.
Citam ainda trecho do texto “A função Social dos Bens Públicos e o Mito da Imprescritibilidade” escrito por Cristiana Fortini, para reforçar esse entendimento:
“Se a inécia e o descompromisso do proprietário privado são devidamente punidos, que via oblíqua, com o reconhecimento de que novo é o titular do bem, configurada a hipótese de usucapião, quer com a aplicação das penas delineadas no Estatuto da Cidade, insustentável defender que a administração pública possa negar a vocação dos bens que formam seu patrimônio, deixando de lhes atribuir a destinação consentânea com o clamor social” 139. [40]
É mister reforçar que de fato tais argumentos encontram razão de ser, tendo em vista que o direito a moradia está assegurado na nossa Carta Magna e está intrinsecamente ligado à dignidade humana, considerando que a reforma agrária no Brasil anda a passos de “tartaruga preguiçosa”, e considerado, também, que milhares e milhares de famílias ainda não possuem moradia, além de que, ser crescente o número de pessoas vivendo nas ruas.
3. 1 A usucapião de bem público de acordo com a doutrina
É notório o entendimento de que bens públicos de qualquer natureza não podem ser usucapidos, conforme se extrai dos artigos 183, § 3º e 191 § único, ambos da CF e art. 102, do Código Civil Brasileiro, e isso incluem os bens dominicais, pois como já mencionado há súmula que restringe essa possibilidade, Súmula 340 STF.
Entende-se como bem dominical, aquele bem disponível, desafetado, com o qual o Estado pode vir a obter renda, visto a possibilidade de ser alienado, ou outra finalidade inerente ao interesse público, são exemplos: as terras devolutas, imóveis em desuso, os terrenos de marina, dentre outros.
Maria Sylvia Zanella Di Pietro, elenca as características do bem dominical em seu livro Direito Administrativo:
Tradicionalmente, apontam-se as seguintes características para os bens dominicais: 1.comportam uma função patrimonial ou financeira, porque se destinam a assegurar rendas ao Estado, em oposição aos demais bens públicos, que são afetados a uma destinação de interesse geral; a conseqüência disso é que a gestão dos bens dominicais não era considerada serviço público, mas uma atividade privada da Administração; 2. submetem-se a um regime jurídico de direito privado, pois a Administração Pública age, em relação a eles, como um proprietário privado.[41]
Assim, esses bens possuem natureza de direito privado, uma vez que não possuem finalidade pública, Maria Sylvia Zanella Di Pietro cita Pontes de Miranda, ilustre doutrinador, para respaldar seu posicionamento:
“O mesmo pensamento encontra-se em Pontes de Miranda (1954, v. 2:136): "na falta de regras jurídicas sobre os bens dominicais, incidem as de direito privado, ao passo que, na falta de regras jurídicas sobre bens púbicos stricto sensu (os de uso comum e os de uso especial), são de atender-se os princípios gerais de direito público".
E mais, em outro momento, coloca Maria Sylvia Zanella Di Pietro, em seu texto, Função social da propriedade pública[42], que essas afirmações não podem ser admitidas de forma absoluta ou mesmo generalizada, uma vez que aos bens públicos possuem prerrogativas atinentes a sua natureza de bem público, segue trecho:
Costuma-se dizer que o poder público age em relação a eles da mesma forma que o particular; a sua gestão corresponderia a atividade privada da Administração. Tais afirmações devem ser aceitas com reservas, porque existem normas de direito público que derrogam parcialmente o direito privado. É o caso das normas que impedem a penhora, a usucapião, ou exigem licitação para celebração de contratos que tenham por objeto os bens públicos. Não há como fugir inteiramente ao direito público quando o patrimônio esteja envolvido em uma relação jurídica de qualquer natureza.
Desta forma, embora esses bens públicos sejam de natureza jurídica privada, isto é, são tratados como tal, a maioria da doutrina defende que diversamente dos bens privados esse bens não podem sofrer a prescrição aquisitiva.
Contudo, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald defendem a tese de que bem público dominical que não possua função social pode sofrer a prescrição aquisitiva e consequente ser adquirido por particular por meio da usucapião:
(...) Não é a personalidade jurídica do titular do bem que determinará a sua natureza, mas a afetação de suas finalidades a um serviço público. Vivencia-se uma época em que não se avalia o rótulo, mas a efetividade dos modelos jurídicos. Em outras palavras, se o bem pertencente à União, Estados, Municípios, Autarquias e Fundações Públicas de Direito Público, não guardar qualquer relação com a finalidade pública exercitada pela pessoa jurídica de direito público, haverá possibilidade de usucapião. [43]
Trata-se de um posicionamento que busca justiça social, a usucapião de bem público desafetado, uma vez que o Estado permanece inerte a questões como reforma agrária e regularização fundiária, são muitos os instrumento legais que viabilizam essas duas ações de governo, porém até a presente data pouco se tem feito nesse sentido, sendo que, pode o Poder Judiciário ser um instrumento hábil para permitir uma revolução nessa ceara, a partir de posicionamentos mais moderno como os que serão estudados no próximo capítulo.
3.2 A usucapião de terras que não possuem registro conforme posicionamentos jurisprudenciais recentes
Reserva se esse capítulo para melhor contemplar as decisões dos nossos tribunais, o que passa a expor, uma vez que coerentemente os mesmos tem proferido entendimento de que não poderá ser presumida a terra sem registro como terra devoluta, devendo o ente demandante fazer prova da titularidade do bem, inexistindo assim presunção de propriedade em favor da União, Estado, Município e DF.
Segue julgado nesse sentido, onde a União e o Município de Taipu manifestaram desinteresse na ação, mas o Estado do Rio Grande do Norte de outro modo se posicionou alegando ser a terra devoluta, contudo o referido ente não conseguiu provar a titularidade sobre o bem.
DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. USUCAPIÃO. IMÓVEL URBANO. AUSÊNCIADE REGISTRO ACERCA DA PROPRIEDADE DO IMÓVEL. INEXISTÊNCIA DEPRESUNÇÃO EM FAVOR DO ESTADO DE QUE A TERRA É PÚBLICA. 1. A inexistência de registro imobiliário do bem objeto de ação de usucapião não induz presunção de que o imóvel seja público (terras devolutas), cabendo ao Estado provar a titularidade do terreno como óbice ao reconhecimento da prescrição aquisitiva. 2. Recurso especial não provido. (STJ , Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 18/10/2011, T4 - QUARTA TURMA) [44]
Em outro julgado o Superior Tribunal de Justiça, proferiu decisão a qual reconheceu a posse de imóvel situado em faixa de fronteira, a União se manifestou contrariamente alegando em síntese ser a faixa de fronteira reservada como terra devoluta, nos termos do art. 1º da Lei n. 601 de 18 de setembro de 1850, regulamentada pelo Decreto n. 1318, de 30 de janeiro de 1854, em seu art. 82.
Em que pese a defesa da União, a mesma também sucumbiu a demanda, em seu voto o Sr. Ministro Luiz Felipe Salomão, alegou que o próprio art. 5º, do Decreto-lei n. 9.760, de 5 de setembro de 1946, ao prescrever que somente são devolutas as terras na faixa da fronteira as que não se incorporaram ao domínio privado, deixa brechas para concluir que nem todas as terras localizadas na faixa de fronteira são devolutas, podendo assim sofrer a aquisição prescritiva.
Concluiu o voto dizendo que inexisti presunção de propriedade em favor do Estado, que a este cabe o ônus probatório de comprovar que o bem seja público e que, portanto, a decisão das instâncias inferiores deveria ser mantida, a fim de que reconhecer a aquisição originária da terra por usucapião.
RECURSO ESPECIAL. USUCAPIÃO. FAIXA DE FRONTEIRA. POSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE REGISTRO ACERCA DA PROPRIEDADE DO IMÓVEL. INEXISTÊNCIA DE PRESUNÇÃO EM FAVOR DO ESTADO DE QUE A TERRA É PÚBLICA. 1. O terreno localizado em faixa de fronteira, por si só, não é considerado de domínio público, consoante entendimento pacífico da Corte Superior. 2. Não havendo registro de propriedade do imóvel, inexiste, em favor do Estado, presunção iuris tantum de que sejam terras devolutas, cabendo a este provar a titularidade pública do bem. Caso contrário, o terreno pode ser usucapido. 3. Recurso especial não conhecido. (STJ - REsp: 674558 RS 2004/0071710-7, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 13/10/2009, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 26/10/2009) [45]
O tribunal de Minas Gerais também se posicionou nessa esteira ao reconhecer a posse e declarar a aquisição ordinária por usucapião a um casal que ingressou com a ação cujo objeto era um imóvel urbano situado no Município de Juiz de Fora, o Município por sua vez apelou sob a alegação de que o terreno não pode entrar para o domínio do particular pela via do usucapião, pois cuida-se de bem público integrante do patrimônio público.
Interessante chamar a atenção nesse caso para o voto do Desembargador Wander Marotta, no qual o mesmo afirma que a inalienabilidade dos bens públicos não é absoluta, com a ressalva aos bens que por sua própria natureza, são insuscetíveis de valoração patrimonial, a exemplo os mares, rios, etc., e seguiu afirmando, que os bens públicos podem perder a característica de Inalienabilidade, se vir perder a destinação de coisa pública, ou seja, a sua afetação, e que os bens dominicais, em regra, são alienáveis e suscetíveis de usucapião, devido seu tratamento que se cinge ao direito privado.
USUCAPIÃO - IMÓVEL ADÉSPOTA - ALEGAÇÃO DE QUE O TERRENO É BEM PÚBLICO, PERTENCENTE A LOTEAMENTO - AUSÊNCIA DE PROVA CABAL DO FATO. As terras que não são da União, do Estado, do Município, ou de particulares, são imóveis sem dono, terrenos adéspotas, que podem ser objeto de posse e, portanto, suscetíveis de serem usucapidos. Cabe ao Município a prova da propriedade se alega serem suas as terras pretendidas por particular. Provada a posse mansa e pacífica, por mais de 25 anos, com animus domini, e presentes, nos autos, os limites e confrontações do imóvel, além do mapa e do memorial descritivo, de modo a tornar precisa a área usucapienda, é de declarar-se o domínio pelo usucapião. (TJ-MG 101459400445580011 MG 1.0145.94.004455-8/001(1), Relator: WANDER MAROTTA, Data de Julgamento: 13/04/2004, Data de Publicação: 29/06/2004)[46]
A análise das jurisprudências acima demonstra que de certa forma o tema tem evoluído por meio de lacuna expressa em previsão legal, o que antes era praticamente impensado, tem hoje ganhado contorno novo, uma vez que cabe ao ente público promover ações discriminatórias, a fim de identificar as terras devolutas dentro de seu território, além de registrar os seus bens imóveis urbanos a fim de estes não sofram a prescrição aquisitiva.
Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald ao depararem com os julgados recentes também manifestaram os seus posicionamentos em sua brilhante obra:
A outro giro, decisões recentes permitem a usucapião das terras que ainda não foram registradas em nome de alguém. São reputadas res nullius (coisas de ninguém) ou terras adéspotas; portanto, bens excluídos da propriedade pública e apropriáveis pelo particular. Caberá ao Poder Público elidir a presunção relativa, provando que o bem em questão sofreu processo discriminatório – judicial ou administrativo -, antes de o particular haurir o prazo da usucapião (Lei n. 6.383/76).[47]
Se por um lado as decisões não possuem o lado extremista dos doutrinadores, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, os quais defendem a usucapião de bens públicos desafetados, os tribunais encontraram um meio de se fazer justiça social com observância dos preceitos constitucionais.
Por fim, não pode se deixar de trazer à baila, a proposta de Emenda Constitucional, PEC 270/2013, de autoria do Deputado Augusto Coutinho, a qual tem por objetivo reconhecer e garantir direito de propriedade por usucapião de imóveis urbanos públicos ocupados por famílias com uso exclusivo para moradia, há mais de dez anos e sem contestação do poder público, com o acréscimo do art. 97-A no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
Pelo exposto, conclui-se que o ordenamento jurídico pátrio tem evoluído no sentido de fazer melhor utilização da propriedade pública desafetada, retirado dessa forma seu caráter intocável – imprescritível do qual a mesma se reveste.
CAPITULO 4
A LEI MUNICIPAL DE SACRAMENTO N. 119/87 E O CAPÍTULO III – REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA - DA LEI N. 11.977/09.
Esse capítulo tem um viés um tanto especial, uma vez que ao contrário da maioria local, dos “pensadores do direito” da cidade de Sacramento/MG, esse capítulo vem enaltecer a Lei Municipal de Sacramento n. 119/87, devido seu caráter vanguardista e por a mesma vir ao encontro dos princípios constitucionais da moradia e dignidade da pessoa humana, concebidos pela nossa Carta de 1988.
Conforme podemos verificar na leitura da referida Lei, o legislador buscou resguardar o direito do povo de Sacramento/MG ao acesso á moradia, visto que a época dos fatos havia muitas famílias de posse de imóveis sem, contudo, possuir o título de propriedade, trata-se de perfeita regularização fundiária dentro do município de Sacramento (MG), feita totalmente pela via administrativa, já que o processo de usucapião tramita junto a administração pública, com observância, claro, dos requisitos traçados Código Civil Brasileiro e da nossa Constituição de 1988, terminando com o reconhecido da posse por meio de ato administrativo, Decreto, o qual possibilita a outorga e lavratura da escritura pública.
É imperioso esclarecer que durante mais ou menos 10 (dez) anos da aprovação e publicação da lei, o processo administrativo de usucapião tramitava sob a tutela do Poder Legislativo Municipal, e a outorga de escritura pública era reconhecida pelo ato administrativo denominado Resolução, somente em meados de 1997, o procedimento foi levado à competência do Poder Executivo, tal qual se processa até a presente data.
Há que salientar que a lei não busca dirimir conflitos, e não possui caráter coercitivo, a Lei Municipal de Sacramento n. 119/87 busca reconhecer a posse mansa e pacífica e a aquisição do direito de outorga de escritura pelo tempo da posse, notadamente o parágrafo único o seu artigo 3º, regulamenta que havendo contestação em relação a posse, a divergência deverá ser decida pelo poder judiciário, sendo indeferido o processo na via administrativa.
Ao afirmar o caráter vanguardista da referida lei, se faz com respaldado no estudo da Lei n. 11.977/09, Capítulo III – Regularização Fundiária, do Programa Minha Casa Minha Vida, uma vez que a referida traz em seu bojo procedimento de regularização fundiária pela via administrativa, muito similar ao utilizado e positivado na Lei Municipal, conforme se verifica da leitura de ambas as leis, nos dando inclusive a impressão que o legislador da referida lei tinha conhecimento da lei local, do Município de Sacramento/MG.
É salutar que registremos que a Lei n. 11.977/09, é uma lei revolucionária, visto que disciplina, a regularização de imóveis urbanos, privados ou públicos, ocupados por famílias carentes com uso exclusivo para moradia, é o que se extrai com a leitura do § 5° do art. 56 da Lei n. 11.977/09[48], esse estabelece que poderá ser objeto de regularização fundiária tanto os imóveis de domínio privado, ou mesmo os de domínio público em consonância com o que dispõe o art. 183 da CF/88.
E ainda, cumpre esclarecer que o artigo 60 da Lei n. 11.977/09, regulamenta a conversão do título de legitimação de posse em registro de propriedade, in verbis:
Art. 60. Sem prejuízo dos direitos decorrentes da posse exercida anteriormente, o detentor do título de legitimação de posse, após 5 (cinco) anos de seu registro, poderá requerer ao oficial de registro de imóveis a conversão desse título em registro de propriedade, tendo em vista sua aquisição por usucapião, nos termos do art. 183 da Constituição Federal.
Note não se trata de mera expedição de mera autorização de uso para fins de moradia (título precário), mas sim de reconhecimento de posse e conversão em título de propriedade.
Restando evidenciado que a presente lei regulamentou a usucapião administrativa de imóvel público, por óbvio desafetado, com objetivo de promover a regularização fundiária de interesse social, o que vai ao encontro dos posicionamentos de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald.
Contudo, há quem defenda que o dispositivo supra transcrito possua vício de inconstitucionalidade, porém contrariamente, entende se com a leitura integral do capítulo III da Lei n. 11.977/09, que não é o caso, vez que seria por demasiado grosseiro o erro do legislador, de sorte que este pretendeu na verdade a regularização fundiária de imóveis públicos sem função social, buscando tão somente garantir o direito à moradia, constitucionalmente garantido.
No mais, a Lei n. 11.977/09 não impõe métodos ou procedimentos coercitivos, tal qual a Lei Municipal, a presente lei prevê que havendo conflito a ser dirimido, o processo administrativo deve ser encerrado e encaminhado para apreciação do Poder Judiciário.
No que tange a Lei Municipal de Sacramento n. 119/87, essa somente reconhece a posse e outorga escritura daqueles imóveis que são de ninguém, res nullius, traço esse que a coloca novamente á frente, uma vez que a Lei Municipal de Sacramento n. 119/87 se harmoniza com a jurisprudência recente, notadamente no quesito que exige certidão emitida pelo Cartório de Registro de Imóveis que esclareça que o imóvel objeto da usucapião administrativa não possua qualquer registro de propriedade.
Dessa forma, não há duvidas que a Lei Municipal de Sacramento n. 119/87, encontra-se recepcionada pela nova Carta de 1988, contrariando posicionamento arraigado dos “pensadores do direito” local, os quais veementemente pregam a inconstitucionalidade da nobre lei, uma vez, repita-se, que seus fundamentos estão em plena consonância com os princípios constitucionais.
No mais, a usucapião administrativa, ou extrajudicial, em todas as suas modalidades, deverá se tornar em breve, uma realidade no ordenamento jurídico, aos moldes do que ocorre em Portugal, onde já existe a usucapião extrajudicial que é realizada junto aos Cartórios Notariais, devido, inclusive, ao precedente introduzido pela Lei n. 11.977/09, o qual possibilita a regularização fundiária de áreas urbanas se processe nos Cartórios Extrajudiciais.
Há atualmente um projeto de lei nessa perspectiva sendo discutido, projeto esse que foi desenvolvido a pedido da ANOREG-BR (Associação dos Notários e Registradores do Brasil) e do Secretário Geral do Ministério da Justiça, Dr. Rogério Favreto, e elaborado por: João Pedro Lamana Paiva, Pércio Brasil Alvares, Ricardo Guimarães Kollet e Tiago Machado Burtet. [49]
Além do que há uma tendência cada mais maior na desjudiciação dos procedimentos, inclusive para aliviar o próprio Poder Judiciário, posto a crise existente de excessos de demandas, podemos citar como exemplo: a Lei n. 11.441, de 4 de janeiro de 2007, a qual regulamenta a realização de inventário, partilha, separação consensual e divórcio consensual por via administrativa.
Não resta dúvida que a possibilidade, de usucapião extrajudicial, irá desburocratizar o procedimento, dar celeridade e desafogar o judiciário, além de ser menos onerosa, tendo em vista, que um processo judicial de usucapião tem tramite de pelo menos de oito a dez anos, uma vez que requer a intimação de todos os interessados, inclusive por edital, dos confrontantes, além da intimação da União, do Estado e do Município, o que torna o processo lento demais.
Verifica se dessa forma, mais um aspecto vanguardista da referida Lei Municipal, visto que todo procedimento de usucapião administrativo demora no máximo em torno de 1 a 4 meses a depender do requerente, que no caso deve providenciar a documentação necessária.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como visto, o presente trabalho buscou trabalhar com uma nova concepção de usucapião de bem considerados públicos, tendo em vista os novos posicionamentos jurisprudenciais, conceito esse que não pode mais ser presumido, ou seja, terras devolutas ou imóveis dominicais, devem possuir registro imobiliário que comprove a titularidade do respectivo ente público, sob pena de serem considerados res nullius, devendo assim o Poder Público promover as Ações Discriminatórias com base na Lei n. 6.383, de 7 de dezembro de 1976.
Trabalhou-se também com a questão da desburocratização do procedimento de usucapião inserido pela Lei n. 11.977/09, com viés o social, uma vez que a mesma busca a regularização fundiária, para atender principalmente a população carente.
Esse estudo trouxe á lume a Lei Municipal de Sacramento n. 119/87, a qual permitiu que mais de 400 (quatrocentas) famílias, pudessem regularizar seus imóveis por meio de procedimento administrativo, sendo dessa forma, instrumento de justiça social, um achado no ordenamento jurídico da cidade de Sacramento que data de 14 de abril de 1987.
Assim buscou-se com esse trabalho uma reflexão sobre o tema usucapião do bem considerado público, bem dominical, sem finalidade pública, e/ou da res nullius, pautada na doutrina minoritária, em jurisprudências, na Lei n. 11.977/09 e na Lei Municipal de Sacramento n. 119/87, com objetivo de demonstrar que a imprescritibilidade do bem público não pode ser superior á garantia do direito à moradia, constitucionalmente garantido, sob pena de gerar grande injustiça social!
AMORIM, Karolynne Silva, A legitimação da posse sobre as terras devolutas. Disponível em:file:///C:/Users/user/Desktop/TCC/A%20legitima%C3%A7%C3%A3o%20da%20posse%20sobre%20terras%20devolutas%20-%20Artigos%20-%20Jus%20Navigandi.htm.
ANJOS FILHO, Robério Nunes dos. A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. Disponível em: http://www.juspodivm.com.br/novo/arquivos/artigos/agrario/roberio-a_funcao_social.pdf. Acesso em 24 de fevereiro 2015.
BINHOTE, Juliana Molina, USUCAPIÃO EM BENS PÚBLICOS: A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE PÚBLICA. Disponível em: http://www.puc-rio.br/pibic/relatorio_resumo2007/relatorios/dir/relatorio_julianamolina.pdf. Acesso em 26 de fevereiro de 2015.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 17ª edição revista, ampliada e atualizada até 05.01.2007. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007.
COSTA, Dilvanir José da. Usucapião: doutrina e jurisprudência. Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/524/r143-25.PDF?sequence=4. Acesso em 24 de fevereiro 2015.
COUTINHO, Elder Luís dos Santos. Da possibilidade de usucapião de bens formalmente públicos. Disponível em: http://www.convibra.com.br/2009/artigos/91_0.pdf. Acesso em 08 de dezembro 2014.
DALLABONA, Maicon César, A conversão em propriedade, por usucapião extrajudicial, da posse de imóveis públicos, à luz da Constituição Federal, http://jus.com.br/artigos/29471/a-conversao-em-propriedade-por-usucapiao-extrajudicial-da-posse-de-imoveis-publicos-a-luz-da-constituicao-federal. Acesso em: 24 de fevereiro 2015.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 27 ed. São Paulo. Editora Atlas. 2013.
DINIZ, Maria Helena. A função Social da Propriedade Pública. Disponível em: http://nute.ufsc.br/moodle/biblioteca_virtual/admin/files/funcao_social_da_propriedade_publica_aula_10_-_parte_i.pdf. Acesso em 08 de dezembro 2014.
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito das coisas. 29 ed. São Paulo: Saraiva. 2014. 4.v.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil: direitos reais. 4ª ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris. 2007. 5.v.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: direito das coisas. 7ª ed. – São Paulo. Saraiva. 2012. 5.v.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l11977.htm. Acesso em 23 de março de 2015.
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 4ª ed. São Paulo. Saraiva. 2009.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo.
NEGRÃO, Teotonio; GOUVEIA, Jose Roberto F.; BONDIOLI, Luis Guilherme Aidar; com colaboração de João Francisco Naves da Fonseca. Código Civil e Legislação Civil em vigor. 30ª ed. São Paulo: Saraiva. 2011.