Para muitos brasileiros, o presídio que oferece água morna, alimentação balanceada - não quer dizer, com caviar, champanhe -, escova de dente, vestiários novos e asseados, espaço físico com privada e cama, não é aceitável. Por quê? Porquanto há milhões de brasileiros vivendo de forma miserável, sem luz, sem água e esgoto canalizados, sem água para mitigar a sede; em muitos casos, as sarjetas servem como moradias aos brasileiros que não "venceram" na vida.
Há certa admissibilidade no pensamento de que os presos estão tendo mais direitos em relação aos cidadãos não criminosos, mas os presos em prisões de segurança máxima. Não obstante, não se justifica que os presídios devam ser masmorras medievais. O cerne está na questão da política de governo. O Poder Executivo deve criar mecanismos eficientes para materializar os direitos humanos para o povo, independentemente de ser o cidadão presidiário ou não.
E por que os presídios devem atender condições mínimas de dignidade dos presidiários? Se pegarmos um animal irracional e maltratar, qual será o resultado? Raiva e descontrole, ataques a quem estiver ao seu alcance. O animal associará os atos e objetos de torturas usados contra ele, e logo ficará em alerta. É o que Pavlov chamou de reflexo condicionado. No ser humano não é diferente.
Todavia, toda causa tem uma origem, nada acontece por acaso, até o cair de uma folha. Há leis, como a da física, a da química, as quais estão presente no dia a dia de qualquer ser vivo, dos objetos inanimados etc. O Brasil, pela sua historicidade, é um fenomenal produtor de neuroses. E não pense que a neurose é somente assunto de párias. A nossa sociedade é um antro de personalidades neuróticas em ebulição.
Luta-se, ferozmente, para se conseguir o mínimo de qualidade de vida, diante de vários obstáculos criados por políticas públicas privilegiadoras dos próprios agentes políticos, de lobistas e de quem ingressa na panaceia do toma lá da cá. Dizer que furtar é questão de caráter não é uma verdade, quando se analisa os obstáculos à ascensão social em nosso país.
Fácil julgar quando se está em posição privilegiada. Criou-se uma mentalidade de superioridade, e Alfred Adler explica em nossa cultura. Aquele que tem pouco, mas o pouco é mais do que o outro tem, logo há a sensação de que é “privilegiado”, “capacitado”. A felicidade, então, é proporcional à comparação com os demais cidadãos. Na mesma classe social, a comparação se faz, e sempre se buscando alguma particularidade para se sentir melhor. As desigualdades sociais criam neuroses, e mais acentuadas são quando há apelativos comerciais demonstrando como obter "felicidade".
O livro The Spirit Level tem se mostrado fiel aos estudos das áreas de sociologia e psicanálise. Quanto mais desigual numa sociedade, por questões de políticas econômicas ineficientes, ou exclusivistas, mais perturbadoras são as relações humanas, isto é, nível menor de confiança entre as pessoas, aumento de doenças física e psíquica, consumismo desenfreado. Há, ainda, aumento significativo no consumo de drogas, lícitas ou não, obesidade, violência, gravidez na adolescência. O interessante é que quanto mais rico um país em seu Produto Interno Bruto [PIB], mas com desigualdades sociais abissais, piores são as condições de vida dos cidadãos. Se verificarmos o Brasil, uma das maiores economias mundiais, não é de se desconsiderar o estudo.
Os indivíduos que possuem algo, mesmo que quase sem importância [status], sentem medo - o chamado "olho gordo" - das pessoas que pouco têm. Os indivíduos que pouco têm acham que os que têm são soberbos. Em relação ao Brasil, cai como luva. As relações humanas são apáticas. Não há somente o medo de ser assaltado, mas o receio de se aproximar de alguém “desigual”, ou seja, será a pessoa uma invejosa? E as que professam que as demais são invejosas, no íntimo, são avaras. O poder ilusório de ter algum status social faz com que as pessoas se digladiem para ter e manter o status. As músicas exaltando o consumismo ou a classe social elitizada mostram a necessidade de autoafirmação.
No Brasil, saindo das metrópoles brasileiras é fácil constatar o nível de entrosamento nas relações interpessoais. Nas metrópoles, as relações são metricamente distantes. Num condomínio, os próprios condôminos, em muitos casos, não se conhecem estritamente. Já no interior – não o interior marginalizado –, as pessoas têm maior aproximação entre elas. Os antigos hábitos de “Bom dia!”, “Por favor, estou sem açúcar!”, ou “Dá licença!”, mostram-se mais vezes do que nas metrópoles e periferias das metrópoles. Nas cidades não periféricas, as metrópoles, também há certo receio quanto aos cidadãos que estão de passagem pela cidade. Já escutei “Eles estão chegando!”, “Cuidado!”. Por que as advertências? Notei que durante o período sem muitos turistas, isto é, fora de temporada de férias e feriados, os moradores dessas localidades mantinham as janelas de seus veículos abertas, assim como as portas de suas residências. As bicicletas encostadas nos postes das vias públicas não eram acorrentadas, pertences eram deixados nas cadeiras dos restaurantes, enquanto os proprietários colocavam comida nos pratos. Não quer dizer que em tais localidades não existiam desigualdades sociais, mas elas eram bem menores do que nas metrópoles. Os moradores destas cidades se sentem mais realizados, não pelo possuir dos bens materiais, mas por estarem morando em localidade que oferece qualidade de vida: água, ar e alimentos de boa qualidade; convívio humano baseado na confiança, no respeito, na solidariedade, não importando se é negro ou branco, magro ou gordo etc.
O leitor deve me perguntar “Qual a relação da desigualdade social com o tipo de modelo prisional?”. Muitas; se quisermos entender o aumento da corrupção, em todos os segmentos de nossa sociedade, dos homicídios animalescos em nossa sociedade, da reincidência dos presos na criminalidade, do aumento da prostituição.
As desigualdades sociais, pela ausência ou precariedade das políticas sociais [Estado social], aliadas ao Estado liberal – neste aspecto, o Estado liberal não é ruim em si, mas a mentalidade do empresário de achar que pode fazer de tudo, desde violações às normas ambientais até aos trabalhadores – , formam conceitos de que cada cidadão é responsável pela sua própria sobrevivência. Criam-se, com isto, comportamentos apáticos na sociedade. Sem políticas sociais [Estado social], e pelas abissais diferenças sociais, produzidas por políticas restritivas, a ascensão socioeconômica às pessoas chanceladas de desiguais, o complexo de inferioridade se eleva. Cada pessoa, em sua resolução pessoal de como viver, irá se moldar às circunstâncias apresentada no contexto social. A psicologia reversa, em muitos casos, explica o comportamento humano. Nas sociedades em que se privilegia a condição do indivíduo por ter status positivo, seja pelo tipo de indumentária, cargo, função, emprego, dicção, sexualidade etc., em detrimento de seu comportamento em relação às demais pessoas, acentua-se o ego [egolatria]. Pelo instinto de grupo, de forma consciente ou inconsciente, o indivíduo se desempenhará para conseguir fazer parte da sociedade que tem maior apreço. No Brasil, pela sua historicidade transformadora de valoração do indivíduo, pelo que é – branco, família com nome e sobrenome de linhagem nobre, intelectualizado, profissão não braçal –, multidões se acotovelam para alcançar esta valoração. E quanto ao negro que atinge tal patamar? Mesmo assim, ele sempre será um desigual.
A desigualdade é fruto de discriminações catalogadas como “corretas”, “justificáveis” – já explanei, em vários artigos, sobre o darwinismo social e eugenia. E são transformadoras para os comportamentos humanos. Pois bem, dessa Arquitetura da Exclusão, os indivíduos não condizentes com os preceitos do que seja “legítimo” se digladiam para conseguir reconhecimento por parte dos “legítimos”. A evolução dos direitos humanos nos mostra que as desigualdades sociais, os genocídios, as perseguições religiosas etc. são frutos de concepções teóricas institucionalizadas como benéficas à humanidade. E tais concepções foram criadas como limitadoras à ascensão social dos excluídos socialmente.
Diante das concepções teóricas exclusivas, os indivíduos não pertencentes às condições exigidas por essas concepções buscam condições de ter um mínimo de qualidade de vida. Pelo instinto de grupo, os excluídos tentam se aproximar dos “eleitos”. A pirataria de produtos é um bom exemplo disto. A pirataria alimenta o imaginário, os anseios de uma sociedade desigual, a qual valoriza o ser humano que apresenta as mesmas condições materiais, comportamentais. Todavia, para ser um “eleito” não basta somente ter, é preciso ser internamente, em toda a sua estrutura morfológica. As cirurgias plásticas são bons exemplos de transformações niveladoras para ser um dos “eleitos”. Conquanto, apesar de se apresentar como “eleito”, a diferença, quando descoberta pelos “eleitos”, mostra-se como perniciosa. O mimetismo, então, é pernicioso à perpetuação dos “eleitos”. Tem-se, com isto, a máxima de que, uma vez “desigual”, sempre será “desigual”.
O Sistema prisional é representatividade das características marcantes de uma sociedade. No caso do Brasil, o sistema prisional serve como punição ao “desigual” que se insurge contra as normas jurídicas criadas pelos “iguais” [privilegiados]. Os presídios brasileiros, em sua maioria, detêm os ânimos exaltados de párias. O modelo prisional brasileiro, por não ter plena ressocialização, é um exemplo de punição clássica do Estado absolutista, ou déspota. Há um ciclo de punição dupla no sistema brasileiro: o primeiro é através de políticas públicas, as quais favorecem bairros que não possuem inquilinos e proprietários “desiguais”, assim como a possibilidade de ascensão econômica; o segundo é o próprio sistema Judiciário, o qual permite que o Estado reprima [penas de morte, galés e açoites] qualquer ação contra a “ordem pública”, no caso, de párias.
Se verificarmos a história brasileira sobre punições, as punições aos crimes de colarinho branco são menores do que aos crimes comuns [de párias]. A institucionalização da proteção aos crimes de colarinho permite que tais agentes fiquem acobertados. Há uma proteção para tais crimes, pois muitos deles têm participação de agentes públicos, de operadores de direitos, de pessoas com influência e conhecimento nos meandros políticos. Aos que não têm tais “prerrogativas”, qualquer delito é logo noticiado. Párias são os evidenciados nos noticiários policiais. As desigualdades sociais, mais conceitos de “superior” e “inferior”, causam neuroses diversas. Padronizações e modismos também criam neuroses. Por exemplo, o corpo das modelos. Na década de 1960, o corpo esquelético [anorexia] fora apreciado pelos estilistas. De lá para cá há uma histeria coletiva para se ter a silhueta da moda. Claro que as circunstâncias variam, conforme os ditames da moda.
Afinal, o que leva ao modelo prisional embasado nos direitos humanos? Uma sociedade neurótica precisa de tratamento. E os presídios, assim como as medidas socioeducativas, devem dar tratamentos para essas neuroses. Conter uma pessoa, pelo simples motivo de ela ser criminosa, não condiz com a realidade brasileira, e muito menos mundial: a de que os valores humanos são baseados nas aparências, em conceitos excludentes, seja pelo dogma religioso, o tipo de política etc. Se no seio da sociedade o ser humano é condicionado a ser neurótico, nas prisões atuais, com seus modelos de Made in Inquisição, mais neurótico ficará. Claro que as estruturas nas sociedades devem ser revistas, de forma que se valorize o ser humano pelo que faz para a sociedade, e não pela imagem que se espera dele, por conceitos de “pureza” racial.
Se tivermos uma sociedade embasada na valorização do ser humano por sua conduta universalista, haverão poucas prisões em nosso país. E se houver algum criminoso, a sociedade saberá que ele terá condições de ser ressocializado, não oferendo perigo posteriormente. O que é bem diferente das estruturas sociais, desde a educação familiar até o sistema prisional. Claro que há pessoas diferentes, as quais não terão a mesma facilidade com alguma área do saber, mas, no capitalismo, a inteligência para os negócios extravasam o senso de humanização. A competitividade do mais forte favorece a inúmeros atos sádicos. E o público voraz pelo consumismo favorece tais predadores. Espionagem, excesso de agrotóxico, pedras preciosas oriundas de mão de obra escrava, mercado clandestino de pele etc., tudo favorece ao capitalismo destrutivo, das relações humanas e do meio ambiente. O capitalismo atual deve mudar, e é preciso, diante do caos planetário com suas intempéries avassaladoras.
Em suma, tudo está interligado, pois a vida humana é indivisível. Os atos humanos repercutem entre si, na fauna e na flora. Trata-se de uma consciência universal que precisa, urgentemente, estar no cotidiano humano. A prisão, física e psíquica, é o grande empecilho para a liberdade do ser humano, de forma que possa, por si, tomar as próprias decisões sem se descuidar do conjunto. Enquanto não for possível esta postura, as leis serão necessárias para controlar os grupos humanos. Todavia, leis punitivas apenas punem, leis punitivas ressocializadoras punem, mas também libertam.
Referências:
BENTO, Cida. “O racismo é forte no Brasil”. Disponível em: < http://www.panoramamercantil.com.br/o-racismo-e-forte-no-brasil-cida-bento-doutora-em-psicologia-social-e-co-fundadora-do-ceert/>
DESIGUALDADE E POBREZA NO BRASIL: retrato de uma estabilidade inaceitável. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v15n42/1741.pdf>.
LEI DE 16 DE DEZEMBRO DE 1830. Código Penal Imperial. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LIM/LIM-16-12-1830.htm>.
RODYCZ, Wilson Carlos. O Juiz de Paz imperial: uma experiência de magistratura leiga e eletiva no Brasil. Disponível em:< https://www.tjrs.jus.br/export/poder_judiciario/historia/memorial_do_poder_judiciario/memorial_judiciario_gaucho/revista_justica_e_historia/issn_1676-5834/v3n5/doc/02-Wilson_Rodycz.pdf>.
SOUZA, José. A Ralé brasileira : quem é e como vive / Jessé Souza ; colaboradores André Grillo ... [et al.] — Belo Horizonte : Editora UFMG, 2009.