1.Introdução
O afeto é elemento estrutural da família contemporânea. O afeto talvez seja apontado, atualmente, como o principal fundamento das relações familiares, sendo a afetividade um dos principais regramentos do Novo Direito das Famílias. Mais do que isso, é um princípio constitucional implícito – o princípio da afetividade. Daí surge a seguinte indagação: Pode-se exigir judicialmente o afeto? Pode-se obrigar alguém a amar?
O afeto é mola propulsora dos laços familiares e das relações interpessoais movidas pelo sentimento e pelo amor, para ao fim e ao cabo dar sentido e dignidade à existência humana. (MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. 4ª ed. Forense. p. 95).
O afeto e o amor são espontâneos, sendo uma de suas maiores características. O afeto e o amor são valores espirituais dedicados a outrem por absoluta vontade pessoal, não por imposição jurídica. Por isso, o amor não é uma obrigação, um dever. Não se pode obrigar ninguém a amar.
O afeto é elemento intrínseco às relações familiares, porém insuscetível de ser entendido como um valor exigível através do poder judiciário, sob pena de martirizar a sua própria essência espontânea (ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito das Famílias. Lumenjuris. 3ª ed. p. 34).
2.Responsabilidade civil pelo abandono afetivo
Todavia, é preciso analisar se a falta de amor e afeto, ou sua ruptura, geram responsabilidade civil, nas relações paterno-filiais. Em outras palavras, é preciso averiguar se o abandono afetivo, entre pais e filhos, gera responsabilidade civil.
Na relação paterno-filial a questão envolve, na maioria das vezes, crianças ou adolescentes, que gozam de prioridade absoluta, merecedores de tutela integral, que por sofrerem o abandono afetivo dos pais, muitas vezes, apresentam sequelas pelo resto da vida.
Quanto ao tema, há duas posições. A primeira entende que não cabe indenização pela ausência de amor ou ruptura dele. Seus defensores entendem que o amor não tem preço, não possuindo valor econômico, sendo a perda experimentada tanto pelo pai quanto pelo filho. Ademais, por certo um litígio entre as partes reduziria drasticamente a esperança do filho de se ver acolhido, ainda que tardiamente, pelo amor paterno. A indenização, não atenderia, ainda, o objetivo de reparação financeira, porquanto o amparo nesse sentido já é providenciado com a pensão alimentícia, nem mesmo alcançaria efeito punitivo e dissuasório, porquanto já obtidos com outros meios previstos na legislação civil – destituição do poder familiar. Desta feita, como escapa ao arbítrio do Judiciário obrigar alguém a amar, ou a manter um relacionamento afetivo, nenhuma finalidade positiva seria alcançada com a indenização.
ALIMENTOS. FILHO MAIOR E CAPAZ. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. ABALO EMOCIONAL PELA AUSÊNCIA DO PAI. 1. Sendo o filho maior, capaz, apto ao trabalho e com receita própria, com plenas condições de prover seu próprio sustento, descabe impor ao genitor encargo alimentar ou mesmo a obrigação de custear-lhe os estudos ou visando, ainda, o pagamento de prestações pretéritas da sua faculdade. 2. O pedido de reparação por dano moral no Direito de Família exige a apuração criteriosa dos fatos e o mero distanciamento afetivo entre pais e filhos não constitui situação capaz de gerar dano moral, nem implica ofensa ao (já vulgarizado) princípio da dignidade da pessoa humana, sendo mero fato da vida. 3. Embora se viva num mundo materialista, nem tudo pode ser resolvido pela solução simplista da indenização, pois afeto não tem preço, e valor econômico nenhum poderá restituir o valor de um abraço, de um beijo, enfim de um vínculo amoroso saudável entre pai e filho, sendo essa perda experimentada tanto por um quanto pelo outro. Recurso desprovido. (SEGREDO DE JUSTIÇA) (Apelação Cível Nº 70032449662, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Julgado em 26/05/2010)
CIVIL E PROCESSUAL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. RECONHECIMENTO. DANOS MORAIS REJEITADOS. ATO ILÍCITO NÃO CONFIGURADO. I. Firmou o Superior Tribunal de Justiça que "A indenização por dano moral pressupõe a prática de ato ilícito, não rendendo ensejo à aplicabilidade da norma do art. 159 do Código Civil de 1916 o abandono afetivo, incapaz de reparação pecuniária" (Resp n. 757.411/MG, 4ª Turma, Rel. Min. Fernando Gonçalves, unânime, DJU de 29.11.2005). II. Recurso especial não conhecido. (STJ. REsp 514.350/SP, Rel. Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, QUARTA TURMA, julgado em 28/04/2009, DJe 25/05/2009)
Para essa corrente, a falta de afeto ou sua ruptura, na relação paterno-filial, não gera responsabilidade civil.
A segunda posição entende de forma diferente. Para tal posição, não se trata de impor um valor ao amor, mas reconhecer que o afeto é um bem muito valioso (DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. RT. 5ª ed. p. 416), e, portanto, a omissão em amar gera repercussões civis indenizatórias. Os que defendem a inclusão do abandono afetivo como dano indenizável reconhecem ser impossível compelir alguém a amar. Todavia, a indenização por abandono afetivo atenderá a duas relevantes funções, além da compensatória: a punitiva e a dissuasória. (SANTOS, Luiz Felipe Brasil. Indenização por Abandono Afetivo. ADV - Seleções Jurídicas. Fev/2005).
Não se trata, pois, de "dar preço ao amor" – como defendem os que resistem ao tema em foco -, tampouco de "compensar a dor" propriamente dita. Talvez o aspecto mais relevante seja alcançar a função punitiva e dissuasória da reparação dos danos, conscientizando o pai do gravame causado ao filho e sinalizando para ele, e outros que sua conduta deve ser cessada e evitada, por reprovável e grave. (SILVA, Claudia Maria da. Descumprimento do Dever de Convivência Familiar e Indenização por Danos à Personalidade do Filho. Revista Brasileira de Direito de Família, Ano VI, n° 25, Ago-Set/2004)
A indenização por abandono afetivo poderá converter-se em instrumento de extrema relevância e importância para a configuração de um direito das famílias mais consentâneo com a contemporaneidade, podendo desempenhar papel pedagógico no seio das relações familiares (DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. RT. 5ª ed. p. 417).
INDENIZAÇÃO DANOS MORAIS - RELAÇÃO PATERNO-FILIAL - PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA - PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE. O dor sofrida pelo filho, em virtude do abandono paterno, que o privou do direito à convivência, ao amparo afetivo, moral e psíquico, deve ser indenizável, com fulcro no princípio da dignidade da pessoa humana. (TJMG. AC 408.550-5. DES. UNIAS SILVA. DJ. 01/04/2004)
Na minha opinião, como dito acima, não cabe indenizar alguém pela falta de amor. Não sendo o afeto um dever, o seu descumprimento, pura e simplesmente, não gera indenização. Ademais, não se pode patrimonializar, quantificar financeiramente um valor existencial.
A simples violação de um dever decorrente de norma de família não é idônea, por si só, para a reparação de um eventual dano. Exatamente por isso, não admitimos que a pura e simples violação de afeto enseje uma indenização por dano moral (ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito das Famílias. Lumenjuris. 3ª ed. p. 626).
A aplicação das regras da responsabilidade civil na seara familiar, portanto, depende da ocorrência de um ato ilícito, devidamente comprovado. Caberá, indenização, tão somente, em sede familiarista, havendo ato ilícito.
As peculiaridades próprias do vínculo familiar não admitem a incidência pura e simples das regras de responsabilidade civil, exigindo uma filtragem, sob pena de desvirtuar a natureza peculiar (e existencial) da relação de direito das famílias. A aplicação das regras de responsabilidade civil na seara familiar, portanto, dependerá da ocorrência de um ato ilícito, devidamente comprovado. A simples violação de um dever decorrente de norma de família não é idônea, por si só, para a reparação de um eventual dano (ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito das Famílias. Lumenjuris. 3ª ed. p. 116).
Na relação paterno-filial, o ato ilícito ocorrerá em razão da violação do dever de cuidado, recíproco entre pais e filhos.
Em suma, amar seu filho é uma faculdade, mas cuidar dele é um dever (art. 1634 I e II do CC e art. 227 da CF). Embora possam ocorrer inúmeros fatores que dificultem o pleno exercício – pelo pai – do seu dever de cuidado perante seu filho, existe um núcleo mínimo de cuidados parentais do qual o genitor não pode se omitir, sob pena de ato ilícito e responsabilidade civil.
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. ABANDONO AFETIVO. COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL. POSSIBILIDADE. 1. Inexistem restrições legais à aplicação das regras concernentes à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar no Direito de Família. 2. O cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento jurídico brasileiro não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF/88. 3. Comprovar que a imposição legal de cuidar da prole foi descumprida implica em se reconhecer a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de omissão. Isso porque o non facere, que atinge um bem juridicamente tutelado, leia-se, o necessário dever de criação, educação e companhia – de cuidado – importa em vulneração da imposição legal, exsurgindo, daí, a possibilidade de se pleitear compensação por danos morais por abandono psicológico. 4. Apesar das inúmeras hipóteses que minimizam a possibilidade de pleno cuidado de um dos genitores em relação à sua prole, existe um núcleo mínimo de cuidados parentais que, para além do mero cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à afetividade, condições para uma adequada formação psicológica e inserção social. 5. A caracterização do abandono afetivo, a existência de excludentes ou, ainda, fatores atenuantes – por demandarem revolvimento de matéria fática – não podem ser objeto de reavaliação na estreita via do recurso especial. 6. A alteração do valor fixado a título de compensação por danos morais é possível, em recurso especial, nas hipóteses em que a quantia estipulada pelo Tribunal de origem revela-se irrisória ou exagerada. 7. Recurso especial parcialmente provido. (STJ. RESP. 1159242. Rel. Nancy Andrighy. DJ 24/04/2012).
Extrai-se do voto da relatora:
Vê-se hoje nas normas constitucionais a máxima amplitude possível e, em paralelo, a cristalização do entendimento, no âmbito científico, do que já era empiricamente percebido: o cuidado é fundamental para a formação do menor e do adolescente; ganha o debate contornos mais técnicos, pois não se discute mais a mensuração do intangível – o amor – mas, sim, a verificação do cumprimento, descumprimento, ou parcial cumprimento, de uma obrigação legal: cuidar. [...] Alçando-se, no entanto, o cuidado à categoria de obrigação legal supera-se o grande empeço sempre declinado quando se discute o abandono afetivo – a impossibilidade de se obrigar a amar. Aqui não se fala ou se discute o amar e, sim, a imposição biológica e legal de cuidar, que é dever jurídico, corolário da liberdade das pessoas de gerarem ou adotarem filhos. O amor diz respeito à motivação, questão que refoge os lindes legais, situando-se, pela sua subjetividade e impossibilidade de precisa materialização, no universo meta-jurídico da filosofia, da psicologia ou da religião. O cuidado, distintamente, é tisnado por elementos objetivos, distinguindo-se do amar pela possibilidade de verificação e comprovação de seu cumprimento, que exsurge da avaliação de ações concretas: presença; contatos, mesmo que não presenciais; ações voluntárias em favor da prole; comparações entre o tratamento dado aos demais filhos – quando existirem –, entre outras fórmulas possíveis que serão trazidas à apreciação do julgador, pelas partes. Em suma, amar é faculdade, cuidar é dever. A comprovação que essa imposição legal foi descumprida implica, por certo, a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de omissão, pois na hipótese o non facere que atinge um bem juridicamente tutelado, leia-se, o necessário dever de criação, educação e companhia – de cuidado – importa em vulneração da imposição legal.
Por identidade de razões, pode ocorrer o chamado abandono afetivo inverso, aquele praticado pelos filhos em detrimentos dos pais, gerando também responsabilidade civil, pois há constitucionalmente o dever dos filhos de cuidar dos pais na velhice, carência ou enfermidade, previsto no art. 229 da CF, bem como pelo art. 3º do Estatuto do Idoso.
Também pode ocorrer, e infelizmente é muito comum, o abandono afetivo decorrente da devolução do adotando, pelos adotantes, sem motivo juridicamente justificado, durante o trâmite do processo de adoção. Mesmo que o processo de adoção não tenha se findado, não há um direito potestativo aos adotantes em desistir, ao seu livre alvedrio e em qualquer tempo e independente das circunstâncias, acerca de um processo de adoção. Caberá a responsabilidade civil dos adotantes quando desistirem da adoção, devolvendo o adotando, por denúncia vazia, quando já estabelecida a guarda, o estágio de convivência e o convívio filial durante significativo lapso temporal.
A hipótese em que ocorre a devolução do adotando porque não houve adaptação entre os membros da família que estava se formando é comum. Neste caso, necessária uma avaliação da equipe do juízo e, sendo constatada que, de fato, a adaptação não se deu, a devolução ocorrerá, sem que haja nenhuma repercussão para a vida dos adotantes, salvo a sensação de frustração que ocorre com o fim de um relacionamento, o mesmo se dando para o adotando, que será submetido aos necessários acompanhamentos psicossociais. Ressaltamos que só podemos aceitar como “normal” esta devolução do adotando quando o estágio de convivência ainda se encontrar em seu momento inicial. Quando o período de convivência é longo e a devolução do adotando se dá sem motivo ou por algum motivo fútil [...] ou por situação de violência para com o adotando [...] teremos a prática de ato ilícito por parte dos adotantes, na forma do disposto no art. 187 do CC, eis que excederam os limites do direito que tinham, devendo ser civilmente responsabilizados. Com o início do estágio de convivência está sendo iniciada uma família, criando-se expectativas para todos os envolvidos. [...] Já se está em um momento de convivência mais intensa, tanto que é autorizado, mediante guarda, que adotando vá viver na companhia dos adotantes. Com a convivência diária logo se poderá saber se surgirão as condições emocionais para a constituição de uma família, sendo certo que com a passagem de um par de meses será possível saber se a família se formará. Quanto mais tempo passa, mais se forma no adotando o sentimento de amor e carinho e a sensação de estar sendo aceito em um núcleo familiar, passando a sentir a segurança de ter uma família; a passagem do tempo forma, mais e mais, o senso de segurança de estar sendo aceito no novo núcleo familiar. Quando ocorre a devolução do adotando, após longo decurso do tempo, sem motivo justo, está sendo cometida grande violência contra aquele, que está sendo rejeitado mais uma vez (sendo a primeira por sua família natural), ocorrendo abuso do direito por parte dos adotantes, que não estão lidando com uma coisa que não tem mais utilidade, mas com uma pessoa, detentora de sentimentos e expectativas. A devolução destrói o amor próprio do adotando. [...] Não se pode aceitar que haja a devolução ao juízo da infância do adotando, nestas situações, impune, pois este ato violou o direito fundamental do adotante à convivência familiar, bem como foi desrespeitado o princípio da responsabilidade parental (art. 100, parágrafo único, IX do ECA). A responsabilidade parental, a fim de que alcance seus reais efeitos e de fato proteja as crianças e adolescentes, há que ser entendida em um sentido mais amplo. Assim, este princípio deve ser aplicado a todos os que figurem no papel dos pais biológicos, exercendo atributos do poder familiar. Os que exercerem a guarda (mesmo de fato), os tutores e adotantes têm de se submeter a este princípio. A devolução do adotando no curso do estágio de convivência, por si só, já é uma violência para com este. Ficando demonstrado que os adotantes agiram com abuso de direito, está caracterizada a prática de ato ilícito, podendo e devendo haver a responsabilização civil destes. (BORDALLO, Galdino Augusto Coelho. Curso de Direito da Criança e do Adolescente. LumenJuris. 6ª ed. p. 313/314).
A devolução nessas hipóteses configura ato ilícito, pois representa um verdadeiro aniquilamento e desrespeito à dignidade da criança ou adolescente, que foi tratada como objeto, instrumentalizada e coisificada.
A criança não pode ser tratada como coisa só pelo fato de ser ela sem experiência ou sem atividade produtiva, sem maturidade espiritual, ou sem autoridade material. A criança, apesar de seu estado de extrema e concreta dependência, é um ser humano como qualquer outro, é um ser desejante e emotivo como qualquer outro, que sente dor diante da crueldade alheia e revolta por não lhe ser concedida à liberdade que é capaz de administrar sozinha. E é por ser dotada desse desejo e dessa necessidade que a criança, enfim é dotada de dignidade e assim deve ser respeitada (HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Direito e Responsabilidade [Coord. Co-autora]. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 18)
Ressalte-se que o estágio de convivência, previsto no art. 46 do ECA, não pode servir de justificativa legítima para a conduta que, voluntária ou negligente, causa prejuízo emocional ou psicológico (até mesmo material) à criança ou adolescente entregue para fins de adoção, especialmente diante dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, proteção integral, prioridade absoluta, além do princípio da proteção do melhor interesse da criança e adolescente, formadores que são de um verdadeiro estatuto constitucional de proteção infanto-juvenil.
AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. ESTÁGIO DE CONVIVÊNCIA PARA ADOÇÃO TARDIA ESTABELECIDO. CRIANÇA DEVOLVIDA. [...] O estágio de convivência que precede adoção tardia se revela à adaptação da criança à nova família e, não ao contrário, pois as circunstâncias que permeiam a situação fática faz presumir que os pais adotivos estão cientes dos percalços que estarão submetidos. (TJSC, Agravo de Instrumento n. 2010.067127-1, de Concórdia, rel. Des. Guilherme Nunes Born, j. 25-11-2011).
Conforme autorizada doutrina, o estágio de convivência não serve de estágio probatório para os adotantes verificarem se desejam o adotando como filho. O estágio de convivência serve para avaliar se a adoção é o melhor para o infante, para verificar se o menor se adaptou à nova família, e se esta reúne as condições necessárias para bem cuidar do infante. Em outras palavras, o estágio de convivência serve ao menor e não aos adotantes, afinal, o menor é o sujeito vulnerável que merece proteção.
É de se perguntar, então: o estágio de convivência se constitui em um direito instituído em favor dos adotantes, de tal forma a legitimar “devoluções” injustificadas de adotandos e, além disso, com a causação voluntária e/ou negligente de incalculável prejuízo emocional, social e até mesmo material ao adotando? A resposta é “não”, sobretudo se for levado em conta que o Estatuto da Criança e do Adolescente, conforme o próprio título indica, visa à proteção dos direitos e/ou interesses relacionados com a infância e com a juventude. Isto está expresso no art. 1º da Lei n. 8.069 de 1990. Nesse diapasão, é importante destacar ainda o princípio da prioridade absoluta, expressamente reconhecido no art. 227, “caput”, da Carta Magna, o qual faz com que o interesse da criança e do adolescente sobreleve a qualquer outro interesse. Isto significa, portanto, que a falta de maior clareza do legislador, no art. 46 do ECA, não pode servir de pretexto para que adotantes mal-intencionados ludibriem a Justiça e, particularmente, crianças e adolescentes, levando-os, pois, para as suas residências, com o propósito de fazer “uma experiência”: - se aprovada, dão o sinal verde para a Justiça; se reprovada, simplesmente efetuam a “devolução”, sem qualquer escrúpulo ou cuidado. Daí a importância de se definir a natureza jurídica do referido estágio de convivência. Ei-la: lapso avaliatório, judicial, da formação satisfatória do vínculo socioafetivo. Noutras palavras, não se trata de um direito instituído em favor de adotantes, mas de um período de tempo em que, por cautela, quis o legislador que a equipe interprofissional do Juízo avaliasse “a conveniência da constituição do vínculo”, em que se deve atentar para as disposições dos arts. 29 e 43 da Lei n. 8.069 de 1990 [...] Vê-se, claramente, que o estágio de convivência não se constitui em direito instituído em favor dos adotantes, muito menos de forma expressa, o que significa, portanto, que eles não podem invocar o exercício regular de direito – que eles não possuem legitimamente -, de tal forma que, nos termos do art. 188, inciso I, do Código Civil, a sua conduta viesse a ser vista como lícita. (COSTA, Epaminondas da. Estágio de convivência, “devolução” imotivada em processo de adoção de criança e de adolescente e reparação por dano moral e/ou material. Tese aprovada no XVIII Congresso da CONAMP – Associação Nacional dos Membros do Ministério Público. 11/2009).
A jurisprudência mais sensível ao tema assim tem se manifestado:
AÇÃO CIVIL PÚBLICA - INDENIZAÇÃO - DANOS MORAIS E MATERIAIS - ADOÇÃO - DEVOLUÇÃO DO MENOR - RESPONSABILIDADE CIVIL DOS PAIS ADOTIVOS CONFIGURADA. Tendo os pais adotivos abandonado o menor, devolvendo-o ao abrigo, não tendo demonstrado sequer um mínimo de esforço para reaproximarem da criança, patente o dever de indenizar, não só porque o filho foi privado do convívio de seus pais mas, primordialmente, de sua irmã de sangue de quem sente muita saudade. Negligenciando os requeridos na criação e educação do adotado, mormente, por terem ciência de que a adoção somente foi concedida, para possibilitar o convívio irmãos, ferindo, assim, o princípio constitucionalmente assegurado, da dignidade da pessoa humana, cabe-lhes indenizar a criança pelos danos sofridos. (TJMG. Apelação Cível 1.0702.09.568648-2/002, Relator(a): Des.(a) Teresa Cristina da Cunha Peixoto , 8ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 10/11/2011, publicação da súmula em 16/12/2011)