O direito a cidades sustentáveis, sua fundamentalidade e o ativismo judicial

28/07/2015 às 19:59
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O direito a cidades sustentáveis é um direito fundamental, com conteúdo complexo, mas possível de ser implementado pelo Judiciário em caso de omissão dos poderes públicos

O Direito a Cidades Sustentáveis é relativamente recente no ordenamento jurídico brasileiro sob o âmbito legislativo, pois foi positivado apenas em 2001, no Estatuto da Cidade (Lei 10.257/01). A novidade legislativa trouxe várias dúvidas quanto a aplicabilidade deste direito e qual sua posição dentro do ordenamento jurídico pátrio. Este artigo tem o intuito de demonstrar a fundamentabilidade do presente direito e a sua importância para a pessoa humana e sua dignidade. Entretanto, antes de enfrentar a questão de fundo, faz-se necessário o desenvolvimento de alguns conceitos para melhor entendimento do tema.

DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

Por muitos anos, a concepção de desenvolvimento esteve desvinculada da ideia de proteção ambiental. As atividades econômicas e industriais não se preocupavam em conservar os recursos naturais, pois o crescimento da produtividade e a matéria-prima pareciam infinitos. A real, e praticamente única, preocupação era a de maximizar a produção, reduzindo os custos com mão de obra.

A partir da década de 1970, constatou-se que os recursos naturais começaram a ficar cada vez mais escassos, gerando muitos problemas de ordem social, econômica e ambiental. Este fato foi impulsionador de inúmeras discussões em âmbitos local e internacional, chegando até a elaboração de um novo conceito: o desenvolvimento sustentável:

Constata-se que os recursos ambientais não são inesgotáveis, tornando-se inadmissível que as atividades econômicas desenvolvam-se alheias a esse fato. Busca-se com isso a coexistência harmônica entre economia e meio ambiente. Permite-se o desenvolvimento, mas de forma sustentável, planejada, para que os recursos hoje existentes não se esgotem ou tornem-se inócuos. (FIORILLO, 2014, p.50)

A ideia de desenvolvimento sustentável surge dos trabalhos da Comissão Brundtland, sendo divulgado mundialmente pelo relatório denominado de “Nosso Futuro Comum”, de 1987:

O conceito foi cunhado pela Comissão Brundtland no processo preparatório à conferência das Nações Unidas – Rio 92, e começou a ser divulgado, a partir de 1987, pelo relatório conhecido como “Nosso Futuro Comum”. Tal relatório continha as informações coligidas pela Comissão ao longo de três anos de pesquisa e análises, apoiando-se no depoimento de centenas de especialistas de quase todos os países, formando, assim, um cenário mundial do desenvolvimento e seu impacto nos recursos planetários. (CANEPA, 2007, p. 55)

Desta forma, o termo desenvolvimento sustentável consagra-se durante a conferência das Nações Unidas – Rio 92, através da chamada Agenda 21, documento que contém diversas diretrizes e recomendações para as nações adaptarem seus processos de desenvolvimento a modelos sustentáveis.

A concepção de desenvolvimento sustentável materializada no supracitado documento, no entanto, não é de simples interpretação, pois ele apenas afirma ser:

[....]aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem às suas próprias necessidades”, faltando, neste ponto, definir quais imperativos são esses.

Carla Canepa (2007, p. 54 – 60), ao analisar o desenvolvimento sustentável, afirma que o conceito não está devidamente delimitado, estando ainda em processo de construção, sendo alvo de forte disputa teórico-política entre as partes participantes desta construção, como ambientalistas, governos nacionais e internacionais, ONGs, cientistas etc.

A retromencionada autora (2007, p. 57) defende a ideia de que o desenvolvimento sustentável é um processo de mudança e não um simples estado estático, em que deve haver compatibilização da exploração de recursos, orientação do desenvolvimento tecnológico, gerenciamento de investimento e mudanças institucionais.

Apesar de ser um conceito amplo e ainda em construção, o que pesa ao interpretar a expressão desenvolvimento sustentável é a ideia de equilíbrio e preservação do meio ambiente para as atuais e as futuras gerações:

A concepção do desenvolvimento sustentado tem em vista a tentativa de conciliar a preservação dos recursos ambientais e o desenvolvimento econômico. Pretende-se que, sem o esgotamento desnecessário dos recursos ambientais, haja a possibilidade de garantir uma condição de vida mais digna e humana para milhões e milhões de pessoas, cujas atuais condições são humilhantes. Entretanto, desenvolvimento sustentável não é um conceito simples, pois se os recursos ambientais são finitos seria extremamente ingênuo acharmos que poderíamos utilizá-los sem esgotá-los. (ANTUNES, 2005, p.14)

        

Além de previsto na Agenda 21, o desenvolvimento sustentável também se encontra no ordenamento jurídico pátrio, segundo Lucíola Maria de Aquino Cabral (2008, p. 117), como princípio constitucional implícito, resultante da interpretação sistemática advinda principalmente dos arts. 170, 182 e 225, nos quais, neste último dispositivo, a influência do focado princípio é nítida, pois ele dispõe que:

Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

Em suma, o princípio do desenvolvimento sustentável não visa a evitar o desenvolvimento econômico e social das nações; objetiva, sim, a evolução com qualidade de vida:

Devemos lembrar que a ideia principal é assegurar existência digna através de uma vida com qualidade. Com isso, o princípio não objetiva impedir o desenvolvimento econômico. Sabemos que a atividade econômica, na maioria das vezes, representa alguma degradação ambiental. Todavia, o que se procura é minimizá-la, pois pensar de forma contrária significaria dizer que nenhuma indústria que venha a deteriorar o meio ambiente poderá ser instalada, e não é essa a concepção apreendida do texto. O correto é que as atividades sejam desenvolvidas lançando-se mão dos instrumentos existentes adequados para a menor degradação possível. (FIORILLO, 2014, p.52).

A despeito de, inegavelmente, representar um avanço conceitual para fins sociais, econômicos e ecológicos, o desenvolvimento sustentável não está livre de críticas. Faz-se, portanto, necessário um pequeno parêntese para citar, como exemplo dessa posição antagônica, a chamada escola do decrescimento, conceituada da seguinte forma por Serge Latouche (2009, p.4 – 6):

O decrescimento é um slogan político com implicações teóricas, uma ‘palavra-obus’ como diz Paul Ariès, que visa a acabar com o jargão politicamente correto dos drogados do produtivismo [...] A palavra de ordem ‘decrescimento’ tem como principal meta enfatizar fortemente o abandono do objetivo do crescimento ilimitado [...] o decrescimento não é crescimento negativo, oximoro absurdo que traduz bem a dominação do imaginário do crescimento [...] o decrescimento é simplesmente uma bandeira sob a qual reúnem-se aqueles que procederam a uma crítica radical do desenvolvimento e querem desenhar os contornos de um projeto alternativo para uma política do após-desenvolvimento. Sua meta é uma sociedade em que se viverá melhor trabalhando e consumindo menos.

Segundo essa escola de pensamento, existe uma mistificação do termo desenvolvimento sustentável, pois este nunca poderá ser duradouro e de fato sustentável. Desta forma, não haveria como existir crescimento econômico ilimitado se os recursos naturais disponíveis são limitados. Além disso, a quantidade de recursos utilizados pela humanidade atualmente é bem maior que a capacidade de recuperação da biosfera:

O desenvolvimento é uma palavra tóxica, qualquer que seja o adjetivo com que o vistam. Para realizar a quadratura do círculo, o desenvolvimento sustentável agora encontrou seu instrumento privilegiado: os ‘mecanismos limpos de desenvolvimento’, expressão que designa tecnologias poupadoras de energia de carbono, sob o manto da ecoeficiência. Continuamos na diplomacia verbal. As inegáveis e desejáveis perfomances da técnica não questionam a lógica suicida do desenvolvimento. Continua-se a mudar o penso em vez de pensar a mudança... [....] O desenvolvimento sustentável, invocado de forma encantatória em todos os programas políticos, ‘tem como única função’, precisa Hervé Kempf, ‘conservar os lucros e evitar a mudança de hábitos quase sem alterar o rumo’.(LATOUCHE, 2009, p.8 – 10)

Tem-se, portanto, que a crítica feita pela escola do decrescimento, de modo geral, é baseada na falta de mudança de perspectiva em relação às possibilidades do crescimento econômico, sendo a expressão “desenvolvimento sustentável” utilizada de maneira bastante ampla, sem uma maior especificidade, e de maneira a tentar justificar a existência de uma progressão econômica infinita, fato este tido por impossível para a presente teoria.

Insta, por fim, feito o devido parêntese relacionado à escola do decrescimento, afirmar que as cidades, como locus principal da atividade humana, devem também obedecer ao princípio do desenvolvimento sustentável, a ser implementado pela política urbana, de modo a viabilizar o exercício dos direitos fundamentais para a existência de uma boa qualidade de vida, como demonstra Nelson Saule Júnior (apud ALFONSIN, 1999, p.160):

[....] a política de desenvolvimento urbano deve ser destinada a promover o desenvolvimento sustentável, de modo a atender às necessidades essenciais das gerações presentes e futuras. O atendimento das necessidades significa compreender o desenvolvimento urbano como uma política pública que torne efetivos os direitos humanos, de modo a garantir a pessoa humana uma qualidade de vida digna.

Esta preocupação com a saúde dos assentamentos urbanos mundiais foi o foco da conferência Habitat II, realizada em Istambul, em 1996, na qual foi aprovada a chamada Agenda Habitat, que, segundo Edésio Fernandes (2004, p.296), “endossa e expande a Agenda 21 e destaca a importância do processo de urbanização e de temas relacionados, tais como acesso a terra, habitação social, saneamento básico, transporte público e gestão urbana”.

Da Agenda Habitat, podem ser extraídas inúmeras diretrizes para o desenvolvimento urbano sustentável, como o subseguinte:

30 – A qualidade de vida de todos os povos depende, entre outros fatores econômicos, sociais, ambientais e culturais, das condições físicas e espaciais das nossas vilas, cidades pequenas e grandes. A disposição e a estética das cidades, padrões de ocupação do solo, densidade populacional e de construções, transporte e facilidade de acesso de todos a produtos, serviços e amenidades públicas básicos têm um peso crucial nas boas condições de vida dos assentamentos. Isso se torna ainda mais importante para as pessoas vulneráveis e desfavorecidas, muitas das quais enfrentam barreiras no acesso a moradias e na participação na elaboração do futuro dos seus assentamentos. A necessidade das pessoas por comunidades e suas aspirações por bairros e assentamentos com melhores condições devem guiar o processo de projeto, gestão e manutenção de assentamentos humanos. Os objetivos desse esforço incluem proteção à saúde pública, garantia de segurança, educação e integração social, incentivo à igualdade e ao respeito pela diversidade e identidade cultural, maior acessibilidade para pessoas portadoras de deficiências e preservação de prédios e áreas de valor histórico, espiritual, religioso e cultural, respeito às paisagens locais, e cuidado com o meio ambiente local. A preservação de patrimônios naturais e dos assentamentos humanos históricos, incluindo sítios, monumentos e construções, sobretudo aqueles sob a proteção da Convenção da Unesco sobre Patrimônios Históricos Mundiais, deve ser assistida, inclusive através da cooperação internacional. É também crucial que a diversificação espacial e a utilização mista de moradias e serviços sejam promovidas em nível local, de forma a atender à diversidade de necessidades e expectativas. (online)

A aplicação do princípio do desenvolvimento sustentável manifesta-se, na política urbana nacional, pela exigência das cidades sustentáveis. Este preceito foi positivado na lei 10.257/2001, denominada de Estatuto da Cidade, na forma de um direito, que conceitua a cidade sustentável como aquela na qual são garantidos:

[....]o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações.

Nota-se, do exposto, que a sustentabilidade é um conceito recente, ainda em formação, advindo da preocupação com a escassez dos recursos naturais e da necessidade de crescimento econômico e social, de modo a ser aplicado, também, na política urbana dos Estados nacionais, especialmente no que concerne à implantação das cidades sustentáveis.

 PROBLEMÁTICA URBANA

De acordo com a publicação Planning Sustainable Cities: Global Reporton Human Settlements (2009, online), da United Nations Human Settlement Program–agência das Nações Unidas para Assentamentos Urbanos – , até 2050, 70% da população mundial habitará áreas urbanas, fato inédito na história da humanidade e que demanda ações públicas e privadas dos Estados para evitar um colapso da vida nas cidades.

Este crescimento urbano ocorrerá de forma mais acentuada nos continentes africano e asiático, onde ainda há intensa população rural. Já a América do Sul e a América Central, bastante urbanizadas atualmente, sofrerão um forte processo de metropolização, ou seja, inchaço de grandes conurbações e centros urbanos, o que gerará, por não haver o devido planejamento, imensos impactos de ordem econômica, social e ambiental.

O Brasil, segundo dados do IBGE (2010, online), conta com 84,4% de sua população total vivendo em zonas urbanas. A perspectiva, segundo Leila da Costa Ferreira (2004, online), é de que este número chegue a 88% até o ano de 2025. Levando-se em conta que esta porcentagem era de aproximadamente 40% na década de 1940, o crescimento da concentração urbana no território pátrio ocorreu de maneira extremamente rápida e desordenada, acarretando diversos problemas:

As taxas elevadas e crescentes de urbanização observadas no Brasil nas duas últimas décadas, a despeito das taxas de fecundidade terem declinado fortemente, colocam o país no mesmo contexto que caracteriza a América Latina e o mundo: um generalizado e oneroso agravamento dos chamados problemas urbanos, ocasionado: a) pelo seu crescimento desordenado e, por vezes, fisicamente concentrado; b) pela ausência ou carência de planejamento; c) pela demanda não atendida por recursos e serviços de toda ordem; d) pela obsolescência da estrutura física existente; e) pelos padrões ainda atrasados de sua gestão; f) pelas agressões ao ambiente urbano. (Ministério do Meio Ambiente, 2000, p. 41)

Entre os problemas ocasionados por esse processo de crescimento acentuado das populações das cidades, pode-se citar poluição, falta de infraestrutura básica, aumento da criminalidade, dificuldades de locomoção, entre inúmeras outras complicações que tendem a piorar na ausência de medidas públicas e particulares convergentes para a alteração deste quadro caótico:

[...]no caso brasileiro, pelas características históricas, o processo de industrialização e urbanização trouxe para as regiões metropolitanas –e, atualmente, dado o processo de ‘contrametropolização’, vem trazendo para as regiões do interior dos estados – , a ampliação das carências sociais e dos serviços públicos e, ainda, a falência das políticas administrativas. Trouxe também a deterioração ambiental (principalmente dos recursos hídricos) e o estrangulamento da infraestrutura das cidades (principalmente nos setores de saneamento, habitação e transporte). (FERREIRA, 2004, p. 25, online)

A título de exemplo, calha neste momento expor alguns dados concernentes ao saneamento básico nacional.

De acordo com a Pesquisa Nacional de Saneamento Básico, feita pelo IBGE em 2008 (online), dos 5.565 municípios brasileiros, 2.495 não dispõem de rede coletora de esgotamento sanitário. Este dado fica ainda mais preocupante quando levado em conta que, em boa parte das cidades brasileiras onde há serviço de esgoto, este é insuficiente, não atendendo a demanda da crescente população urbana e, principalmente, da imensa malha de moradias irregulares das grandes urbes.

Quanto ao manejo de resíduos sólidos, até 2008, 50,8% dos municípios nacionais, como consta da supracitada pesquisa, destinam estes materiais a vazadouros a céu aberto, mais conhecidos como lixões. Lá, inúmeras pessoas, catadores, fazem do lixo o seu meio de subsistência, entrando em contato com materiais degradados e, muitas vezes, perigosos, correndo o risco de contrair uma série de doenças graves. Em 2010 foi aprovada a lei 12.305/10 (Política Nacional dos Resíduos Sólidos), a qual previa a extinção dos lixões em até 4 anos de sua vigência, fato que, infelizmente ainda não ocorreu e, neste momento (junho de 2015), discute-se uma prorrogação do prazo para a extinção desses vazadouros.

Além disso, no caso dos grandes e até mesmo médios centros urbanos, a situação de locomoção dos habitantes é cada vez mais caótica, com vias de tráfego imensamente congestionadas, serviços de transporte público deficitários e inviabilidade de locomoção segura para pedestres e ciclistas (apesar do recente crescimento do número de ciclovias em grandes cidades brasileiras, como Rio de Janeiro, São Paulo e Fortaleza), configurando este quadro uma verdadeira afronta ao direito de ir e vir.

Utilizando conceito advindo do urbanismo, faz-se necessária a devida reparação dos danos acarretados pelo processo de urbanização através de um processo de urbanificação, que visa a corrigir os problemas advindos daquela atividade:

11. A urbanização gera enormes problemas. Deteriora o ambiente urbano. Provoca a desorganização social, com carência de habitação, desemprego, problemas de higiene e de saneamento básico. Modifica a utilização do solo e transforma a paisagem urbana.

12. A solução desses problemas obtém-se pela intervenção do Poder Público, que procura transformar o meio urbano e criar novas formas urbanas. Dá-se, então, a urbanificação, processo deliberado de correção da urbanização, que é a reurbanização, ou na criação artificial de núcleos urbanos, como as cidades novas da Grã-Bretanha e Brasília. (Silva, 2008, p.27, grifos originais)

Diante deste quadro, vislumbra-se um colapso das urbes brasileiras, configurando como insustentável a presente situação. Desta forma, torna-se imprescindível a aplicação de políticas públicas e de atividades particulares para a devida correção dos problemas advindos da urbanização, devendo ser utilizadas técnicas de urbanificação para chegar a um abrandamento do presente quadro e, quem sabe, a uma desejada sustentabilidade urbana nacional.

A CIDADE COMO MEIO AMBIENTE ARTIFICIAL

A concepção de meio ambiente formada pelo senso comum está relacionada basicamente às noções de fauna e flora. Entretanto, este pensamento mostra-se errôneo, pois o direito ao meio ambiente, previsto na Constituição Brasileira de 1988 envolve outros bens, de natureza cultural, moral, material e psicológica. Além disso, o próprio significado de seu vocábulo expõe este entendimento:

Ocorre que o direito à vida em todas as suas formas, estabelecido pelo art, 225 da Constituição Federal, deve, por força do próprio comando fixado em aludido dispositivo, ser ecologicamente equilibrado, ou seja, o direito constitucional assegurado necessariamente articula a vida relacionada com o meio, com o recinto, com o espaço em que se vive. Daí concluirmos que o meio ambiente ecologicamente equilibrado envolve para a pessoa humana –principalmente destinatário do direito constitucional brasileiro - , sem dúvida alguma, um conjunto de condições morais, psicológicas, culturais e mesmo materiais que envolve uma ou mais pessoas, na clara explicação de Houaiss, o que nos autoriza a concluir que a definição jurídica fixada na Carta Magna de meio ambiente ecologicamente equilibrado envolve necessariamente a pessoa humana com o local onde se vive evidentemente em face de todas as circunstâncias reais adaptadas à relação antes apontada. (FIORILLO, 2005, p. 270)

Tem-se, então, que os espaços construídos, de vivência e realização social das pessoas, necessários a uma saudável qualidade de vida, também fazem parte do conceito de meio ambiente, neste caso, como meio ambiente artificial, como explica Talden Queiroz Farias (online):

O meio ambiente artificial é o construído ou alterado pelo ser humano, sendo constituído pelos edifícios urbanos, que são os espaços públicos fechados, e pelos equipamentos comunitários, que são os espaços públicos abertos, como as ruas, as praças e as áreas verdes. Embora esteja mais relacionado ao conceito de cidade o conceito de meio ambiente artificial abarca também a zona rural, referindo-se simplesmente aos espaços habitáveis, visto que nele os espaços naturais cedem lugar ou se integram às edificações urbanas artificiais.

Desta forma, a partir da atual Constituição nacional, as cidades passam a ter um regramento jurídico ambiental, sendo esta natureza regida mediatamente pelo art. 225 e imediatamente pelos arts. 182 e 183, que tratam da ordem urbanística nacional:

Com a edição da Constituição Federal de 1988, fundamentada em sistema econômico capitalista, que necessariamente tem seus limites impostos pela dignidade da pessoa humana (art. 1º, III e IV, da CF), a cidade –e suas duas realidades, a saber, os estabelecimentos regulares e os estabelecimentos irregulares –passa a ter natureza jurídica ambiental, ou seja, a partir de 1988 a cidade deixa de ser observada pelo plano jurídico com base nos regramentos adaptados tão-somente aos bens privados ou públicos e passa a ser disciplinada em face da estrutura jurídica do bem ambiental (art. 225 da CF) de forma mediata e de forma imediata em decorrência (meio ambiente artificial). Portanto, a cidade, a partir da Constituição Federal de 1988, passa a obedecer a denominada ordem urbanística dentro de parâmetros jurídicos adaptados às necessidades do final do século XX e início do século XXI. (FIORILLO, 2005, p. 269)

Ante o exposto, insta concluir que, na atual ordem constitucional brasileira, as cidades são consideradas bens ambientais, necessárias para desenvolvimento e qualidade de vida do ser humano, pois é nas urbes onde a maior parte da população brasileira vive e mantém relações sociais, fazendo-se, assim, necessária sua tutela no concernente as diretrizes gerais do art. 225 e arts. 182 e 183 da Carta Magna nacional.

CONCEPÇÃO DE CIDADES SUSTENTÁVEIS

Da mesma forma do conceito de desenvolvimento sustentável, é árdua a tarefa de definir o que seria uma cidade sustentável.

A United Nations Human Settlement Program, em sua publicação Sustainable Cities Programme, 1990 2000: A Decade of United Nations Support for Broad-based participatory management of Urban Development (online), afirma que:

Uma cidade sustentável é uma cidade onde os progressos no desenvolvimento social, econômico e físico são feitos para durar. Tem uma fonte duradoura de recursos ambientais dos quais o seu

desenvolvimento depende, utilizando-os apenas a um nível de rendimento sustentável. Uma cidade sustentável mantém uma segurança duradoura diante de riscos ambientais que têm o potencial para ameaçar as conquistas do desenvolvimento, permitindo apenas riscos aceitáveis.

Embora exista o supracitado conceito norteador, elaborado por entidade das Nações Unidas relacionada à melhoria dos assentamentos humanos, esta ideia ainda está em construção, principalmente por não haver, ainda, exemplo concreto de uma cidade sustentável, como afirma Carla Canepa (2007, p. 156):

Não obstante a existência deste conceito-diretriz, vindo de uma instituição internacional que tem como objetivo justamente lutar por assentamentos mais humanos e justos, definir “cidade sustentável” é um grande desafio, especialmente porque não há, ainda, exemplos concretos desta que seria a ‘cidade ideal’. Talvez buscando inspiração em utopistas como Thomas More, Campanella e Bacon, ou Vitrúvio e Leonardo Da Vinci, que acreditavam que cidades ideais criariam sociedades ideais, possamos minimizar a ideia de conflito e dominação da construção das cidades em face do ambiente natural.

Desta forma, pode-se afirmar que, embora já exista uma delineação quanto ao seu conteúdo, caracterizada pelo desenvolvimento urbano com respeito às características e necessidades ambientais do locus, o presente conceito ainda está em processo de formação, existindo, no entanto, diretrizes e estratégias no sentido de alcançar essa pretensa sustentabilidade urbana.

Em estudo realizado pelo Ministério do Meio Ambiente, publicado em Cidades Sustentáveis: subsídios à elaboração da Agenda 21 brasileira (2000, p.16 – 17), foram consolidadas quatro estratégias para alcançar a sustentabilidade urbana das cidades brasileira:

1. Aperfeiçoar a regulamentação do uso e da ocupação do solo urbano e promover o ordenamento do território, contribuindo para a melhoria das condições de vida da população, considerando a promoção da equidade, a eficiência e a qualidade ambiental.

2. Promover o desenvolvimento institucional e o fortalecimento da capacidade de planejamento e de gestão democrática da cidade, incorporando no processo a dimensão ambiental urbana e assegurando a efetiva participação da sociedade.

3. Promover mudanças nos padrões de produção e de consumo da cidade, reduzindo custos e desperdícios e fomentando o desenvolvimento de tecnologias urbanas sustentáveis.

4. Desenvolver e estimular a aplicação de instrumentos econômicos no gerenciamento dos recursos naturais visando à sustentabilidade urbana.

O conceito de cidades sustentáveis, em síntese, busca o equilíbrio saudável e sustentável, sempre atento à qualidade de vida da população. O crescimento das cidades, assim, deve continuamente estar atento aos limites da sustentabilidade ambiental, social e econômica, focando, principalmente, na população das urbes, para que esta possa exercer seus direitos básicos:

O conceito de cidade autossustentável pode ser sintetizado como sendo a cidade que coloca à disposição dos seus cidadãos condições para que estes sobrevivam com dignidade, e onde, principalmente, o município se desenvolva sem ultrapassar os limites da tolerância ecológica. (CABRAL, 2008, p.118)

Assim, tem-se por cidade sustentável aquela que, respeitando características e limites sociais, econômicos e ambientais locais, promove a qualidade de vida de sua população, visando a mantê-la, também, para as gerações vindouras, satisfazendo, desta forma, a dignidade humana.

O DIREITO A CIDADES SUSTENTÁVEIS

Em decorrência da retromencionada problemática, já há algum tempo a questão urbana preocupa população e governantes. Hoje em dia, a legislação brasileira conta com várias normas disciplinadoras da ordem urbana, vinculando tanto Estado quanto particulares para que a cidade possa cumprir, de modo mais efetivo, concreto e satisfatório, suas funções sociais:

A cidade, como espaço onde a vida moderna se desenrola, tem suas funções sociais: fornecer às pessoas moradia, trabalho, saúde, educação, cultura, lazer, transporte etc. Mas, como o espaço da cidade é parcelado, sendo objeto de apropriação tanto privada (terrenos e edificações) como estatal (ruas, praças, equipamentos etc.), suas funções têm de ser cumpridas pelas partes, isto é, pelas propriedades urbanas. A política urbana tem, portanto, a missão de viabilizar o pleno desenvolvimento das funções sociais do todo (a cidade) e das partes (cada propriedade em particular). (SUNDFELD, 2006, p.54, grifo original)

Entre as supracitadas normas urbanísticas, destaca-se a Lei federal nº 10.257, de 10/07/2001, mais conhecida como o Estatuto da Cidade. Este instrumento normativo criou as diretrizes gerais da política urbana brasileira, regulamentando o art. 182 da Constituição Federal, e estabeleceu outras normas de grande importância para a vida em sociedade e organização espacial:

O Estatuto da Cidade, denominação conferida àquela lei pelo parágrafo único de seu art. 1º, estabelece as diretrizes gerais da política urbana, que tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar de seus cidadãos, bem como o equilíbrio ambiental [...] (SILVA, 2010, p.58, grifo original)

 Ressalte-se, no Estatuto da cidade, a previsão, em seu art. 2º, I, do direito a cidades sustentáveis, nos seguintes termos:

Art. 2o –A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais:

I –garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações;

Esta norma positiva no ordenamento jurídico brasileiro a garantia de sustentabilidade urbana, estando este dispositivo, inclusive, de acordo com as quatro funções básicas do urbanismo, consolidadas na Carta de Atenas, firmada durante o Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (CIAM) de 1933, tratando da habitação (direito à terra urbana, infraestrutura, meio ambiente saudável, moradia, serviços públicos), circulação (infraestrutura, transporte), recreação (lazer) e do trabalho.

A respeito deste direito, o Estatuto da Cidade – Guia para Implementação Pelos Municípios e Cidadãos (2002, p. 163), estende um pouco mais a sua já larga amplitude:

O direito a cidades sustentáveis – entendido como o direito aos meios de subsistência,à moradia, ao saneamento, à saúde, à educação, ao transporte público, à alimentação, ao trabalho, ao lazer e à informação. Inclui também o direito à liberdade de organização, o respeito às minorias e a pluralidade étnica, sexual e cultural, o respeito aos imigrantes e o reconhecimento de sua plena cidadania, a preservação da herança histórica e cultural e o direito ao usufruto de um espaço culturalmente rico e diversificado, sem distinções de gênero, nação, raça, linguagem e crenças e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Por ser uma diretriz geral da política urbana nacional, o direito às cidades deve ser respeitado e implementado tanto pela União quanto por Estado e Município. A este último, no entanto, cabe a maior parcela da concretização da referida norma, pois cada cidade tem características, problemas e necessidades próprios, sendo o governo local o mais indicado para a solução dessas situações justamente por conta da proximidade com a problemática em concreta:

Em verdade, as normas urbanísticas municipais são as mais características, porque é nos municípios que se manifesta a atividade urbanística na sua forma mais concreta e dinâmica. Por isso, as competências da União e do Estado esbarram na competência própria que a Constituição reservou aos Municípios, embora estes tenham, por outro lado, que conformar sua atuação urbanística aos ditames, diretrizes e objetivos gerais do desenvolvimento urbano estabelecidos pela União e às regras genéricas de coordenação expedidas pelo Estado. (SILVA, 2010, p. 63)

Esta competência para a implementação da sustentabilidade urbana pelos municípios está prevista na própria Constituição Brasileira, ao afirmar, no art. 182, regulamentado pela lei 10.257/01, que:

[....]a política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público Municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.

O instrumento básico da política de desenvolvimento urbano e, em decorrência, da implementação do direito a cidades sustentáveis, de acordo com o art. 182, § 1º, da CF, é o plano diretor, a ser elaborado pelos municípios com mais de 20.000 habitantes, podendo ser conceituado da seguinte forma:

Plano diretor é um conjunto de normas obrigatórias, elaborado por lei municipal específica, integrando o processo de planejamento municipal, que regula as atividades e os empreendimentos do próprio Poder Público Municipal e das pessoas físicas e jurídicas, de Direito Privado ou Público, a serem levados a efeito no território municipal. (MACHADO, 2010, p. 403)

Necessário, neste momento, falar, sinteticamente, sobre os elementos que compõem a norma em análise, correspondentes a garantia de terra urbana, moradia, saneamento ambiental, infraestrutura urbana, transporte e serviços públicos, trabalho e lazer.

O acesso à moradia e à terra urbana são questões centrais no tocante a sustentabilidade urbana. Devido à falta de planejamento urbano que norteou a política nacional em grande parte de sua história e a ainda grande desigualdade social e exclusão econômica das classes mais pobres, o Brasil conta com um déficit habitacional, de acordo com estudo realizado em 2008 (online) pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento em parceria com o Ministério das Cidades, de 5.572 milhões de domicílios, sendo 83% localizados em áreas urbanas.

Desta forma, boa parte da população de baixa renda opta por ocupar ilegalmente certas áreas das cidades, construindo habitações irregulares e sem infraestrutura:

Conforme ressaltado, ao tratar da Agenda Habitat, o acesso à moradia e à terra urbana é uma questão central na promoção da sustentabilidade urbana. A falta de políticas habitacionais adequadas, conjugada à ausência de oferta formal de moradia à população de baixa renda, fez com que a ocupação ilegal do solo urbano e a proliferação de moradias inadequadas se tornassem o padrão de urbanização, sobretudo em países em desenvolvimento, como o Brasil. Atualmente, até mesmo o mercado imobiliário informal vem se tornando inacessível à população de baixa renda, aprofundando os problemas relacionados ao acesso à moradia e ao solo urbano. (ALVES, 2010, online)

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O direito a cidades sustentáveis, assim, ao assegurar a garantia de moradia e de terra urbana, visa não apenas a evitar essa ocupação ilegal e suas consequências nefastas, mas convalidar e melhorar situações já consolidadas faticamente, o que pode ser feito através de vários instrumentos previstos na legislação urbanística e no Estatuto da Cidade, como as concessões de uso especial para fins de moradia e a usucapião coletiva urbana.

Garantindo o acesso e a regularidade das moradias, o Poder Público poderá intervir de forma a melhorar as condições dessas habitações, satisfazendo um verdadeiro direito fundamental:

O importante é que se compreenda a fundamentalidade do direito de acesso à terra urbana e à moradia como pressuposto à própria caracterização da cidade, pois a moradia é o ponto de referência do cidadão no espaço urbano, é o seu lugar no espaço. Isto revela que a garantia destes direitos é um pressuposto ao resgate dos sentimentos de pertencimento do indivíduo em relação à cidade; é um primeiro passo no resgate da cidadania dos indivíduos social e espacialmente excluídos do urbano. É isto que o Estatuto da Cidade objetiva ao elencar o direito à moradia e à terra urbana como elementares do direito a cidades sustentáveis. (ALVES, 2010, online)

Saneamento ambiental pode ser definido da seguinte forma, de acordo como sítio da Fundação Nacional de Saúde (online):

Saneamento ambiental compreende o conjunto de ações, obras e serviços considerados prioritários em programas de saúde pública. Abrange desde o sistema de abastecimento de água (SAA), o cuidado com a destinação de resíduos e o esgotamento sanitário (ES), as melhorias sanitárias domiciliares (MSD), até obras de drenagem urbana, controle de vetores, roedores e focos de doenças transmissíveis. Inclui também a preocupação com a melhoria das condições de habitação e educação sanitária e ambiental.

Já o conceito de infraestrutura básica é previsto no art. 2º, § 5º, da Lei 6.766/79, elaborada pelo Congresso Nacional, como sendo o conjunto de “[....] equipamentos urbanos de escoamento das águas pluviais, iluminação pública, esgotamento sanitário, abastecimento de água potável, energia elétrica pública e domiciliar e vias de circulação”.

 Assim, nota-se a existência de uma correlação entre os dois conceitos, vindo eles a complementar o direito à moradia e à terra urbana, pois seu principal objetivo é reduzir os choques ao meio ambiente advindos das construções e ocupações humanas. Além disso, infraestrutura básica e saneamento ambiental estão intrinsecamente ligados a questões de saúde pública:

As doenças decorrentes da falta de saneamento são responsáveis por cerca de 65% do total das internações nos hospitais públicos conveniados do país. Pode-se afirmar que os investimentos realizados em saneamento representam recursos economizados em saúde. Estima-se que cada R$ 4, 00 investidos em saneamento significam uma economia de R$ 10, 00 em internações hospitalares. (Ministério do Meio Ambiente, 2000, p. 50)

O direito ao transporte também se configura essencial à sustentabilidade urbana e ao direito de circulação. Cada vez mais o brasileiro convive com trânsito caótico, vias mal-planejadas e cuidadas, transporte público deficitário e poluente, aumento de tempo nos deslocamentos e aumento do uso de transporte individual em detrimento ao coletivo, entre outros problemas, os quais levam a uma queda da qualidade de vida da população, devendo o planejamento urbanístico sempre ficar atento para solucionar problemas viários:

[....] não tem cabimento um planejamento urbanístico que não leve em consideração o problema do sistema viário e, com este, o sistema de transportes. Não se pode planejar o uso do solo urbano sem a devida ordenação dos transportes, que há de ser parte importante da ordenação do solo em geral. E, aqui, o tema sobressai na sua dimensão jurídico-urbanística, enquanto essa ordenação configure a normatização jurídica do sistema. (SILVA, 2008, p. 236)

O Estatuto da Cidade, ao garantir o direito ao transporte como elemento do direito a cidades sustentáveis, visa a garantir não apenas a possibilidade de acesso da população ao deslocamento urbano, mas que essa locomoção seja sustentável:

[....] o objetivo do Estatuto da Cidade, ao elencar o transporte como elemento essencial à sustentabilidade urbana, é enfatizar seu papel na promoção da qualidade de vida do ser humano. A concretização deste papel pode se manifestar de diversas formas: pela adequação do traçado das vias ao fluxo de veículos e pela adoção de sistema de sinais sincronizados que melhorarão o fluxo dos veículos; pela iluminação adequada das vias públicas e padronização das calçadas, de forma que todos possam nelas transitar sem dificuldades e com segurança; pela construção de ciclovias, de forma a viabilizar a utilização segura deste meio de transporte, que é adotado majoritariamente pela população de baixa renda como alternativa de redução de gastos; e, sobretudo, pela melhoria qualitativa e quantitativa dos meios de transporte coletivo, colocando sua utilização como verdadeira alternativa de transporte urbano, e não apenas como necessidade última daqueles que não dispõem de veículo particular. (ALVES, 2010, online)

De acordo com Celso Antônio Pacheco Fiorillo (2002, online), o direito aos serviços públicos constantes no dispositivo em análise tem como essência o subseguinte:

O direito aos serviços públicos estabelecido na Lei n. 10.257/2001assegura a brasileiros e estrangeiros residentes no país sua condição de consumidor em face do Poder Público municipal que, na condição de fornecedor de serviços no âmbito das cidades (rede de esgotos, abastecimento de água, energia elétrica, coleta de águas pluviais, rede telefônica, gás canalizado etc.), está obrigado a garantir serviços adequados, eficientes, seguros e quanto aos essenciais, contínuos.

Nota-se, assim, novamente a relação entre outros direitos já citados no bojo das cidades sustentáveis e a questão dos serviços públicos, servindo estes como modos de integração da população, garantindo, inclusive, seu direito como consumidor ao garantir a continuidade do serviço, sua eficiência e segurança.

Quanto ao direito ao trabalho, está umbilicalmente relacionado à qualidade de vida das pessoas, visto que a ausência de boas condições laborativas pode levar a inúmeras complicações de ordem social e política:

Finalmente, para que o desenvolvimento urbano seja sustentável, é preciso que o trabalho e o emprego dos cidadãos urbanos sejam acessíveis e protegidos. As transformações na estrutura de emprego decorrentes de avanços tecnológicos, o período recessivo da década de 1980 e as conjunturas e crises sistêmicas mundiais que atingem no momento fortemente o Brasil resultaram em desemprego e, de modo menos perceptível, em precarização do emprego. Essa situação tem forte impacto urbano, mormente nas metrópoles, frustrando a expectativa que identifica tais aglomerações como o lócus das oportunidades de trabalho. Ela gera efeitos psicológicos e sociais deletérios (desespero, rompimentos familiares, insegurança, violência), podendo resultar em graves problemas de governabilidade, atingindo a sustentação, atingindo a sustentação do processo contínuo de democratização política. (Ministério do Meio Ambiente, 2000, p.51)

Desta forma, como afirma Maria Júlia Almeida da Silva Alves (2010, online), o Poder Público, ao instituir medidas urbanísticas, deve conjugar, com estas, estratégias de promoção de renda e emprego da população, ajudando a reduzir as desigualdades sociais e pobreza, grandes inimigos da sustentabilidade, procurando garantir, assim, a subsistência digna dos moradores das áreas urbanas.

Por fim, mas não menos importante, há o direito ao lazer que, igualmente aos direitos ao trabalho e à moradia, é um direito social previsto na Constituição Brasileira.

Este direito impõe ao Estado, no âmbito da sustentabilidade urbana, o dever de propiciar, principalmente às camadas menos favorecidas, instrumentos de lazer e interação social:

Assim, na instituição da ordem urbana, deverá o Estado promover a criação de praças, parques públicos, calendário de eventos, tudo de modo a propiciar o implemento de atividades de lazer, per si ou através de parcerias (hoje fartamente previstas em Lei) com a iniciativa privada. (AHMED, 2009, P. 19)

Assim, ao proporcionar meios para o exercício do direito ao lazer, o Poder Público, de acordo com Flávio Ahmed (2009, p. 21), colaborará com a preservação e fomento do meio ambiente cultural das cidades, firmando mais um pilar para a formação da pretendida sustentabilidade das urbes.

Observando os presentes elementos do direito a cidades sustentáveis, nota-se a grande correlação existente entre eles, pois, muitas vezes, o trabalho, para ser sustentável, depende de lazer, o saneamento básico depende de serviços públicos eficientes, a locomoção exige uma infraestrutura básica operante etc.

Tem-se, então, que o direito a cidades sustentáveis é um conceito síntese, onde estão presentes vários elementos umbilicalmente conectados e com o escopo de garantir uma melhor qualidade de vida às populações urbanas. Não se trata, entretanto, de norma com eficácia pro future, pois, segundo seu dispositivo legal, o direito em tela deve ser garantido para as presentes e futuras gerações, exigindo, assim, do Estado e dos particulares, imediatas providências na busca pela sustentabilidade das cidades brasileiras, apresentando, este direito, as seguintes implicações de ordem jurídica:

São três: por um lado, possibilitar a sanção jurídica da inércia do Poder Público (omissão em ordenar o emprego do solo e proteger o patrimônio coletivo); por outro, fornecer parâmetros normativos para controle das orientações seguidas pela política urbana, com isso viabilizando a invalidação das normas e atos a eles contrários; ainda, permitir o bloqueio dos comportamentos privados que agridam o equilíbrio urbano. (SUNDFELD, 2006, P.55)

Como demonstrando, o direito a cidades sustentáveis busca garantir à população urbana melhor qualidade de vida, e, em consequência, realizar a dignidade da pessoa humana, representando um avanço no ordenamento jurídico pátrio. Por tudo isso, nada obsta considerar o presente instituto como um direito fundamental, como será demonstrado mais a frente.      

INSTRUMENTOS DE EFETIVAÇÃO DO ESTATUTO DA CIDADE PARA A FORMATAÇÃO DE UMA CIDADE SUSTENTÁVEL

O direito às cidades sustentáveis, previsto no art. 2º, I, da lei 10.257, não garante por si só o acesso a sustentabilidade urbana, sendo necessários outros instrumentos, previstos, em grande maioria, no Estatuto da Cidade. Ao comentar o presente dispositivo, Carla Canepa (2007, p. 215) afirma o seguinte:

Ao ler o inciso supra, cabe pensar que se somente este fosse colocado plenamente em prática, ter-se-ia a cidade que todos sonham. Mas sabe-se que para alcançar tal aspiração, muito há de ser feito e para isso o ideal seria que houvesse a possibilidade concreta de se utilizarem os instrumentos que o próprio Estatuto propõe.

Pois é fato que o Estatuto oferece, justamente, as ferramentas a serem utilizadas pelo Poder Público, e especialmente pelo Município, para enfrentar os grandes problemas de desigualdade social e territorial das cidades [....].

Desta forma, o Estatuto da Cidade prevê os subseguintes instrumentos para a feitura da política urbana nacional, e, por conseguinte, para o direito a cidades sustentáveis:

Art. 4o Para os fins desta Lei, serão utilizados, entre outros instrumentos:

I –planos nacionais, regionais e estaduais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social;

II –planejamento das regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões;

III –planejamento municipal, em especial:

a) plano diretor;

b) disciplina do parcelamento, do uso e da ocupação do solo;

c) zoneamento ambiental;

d) plano plurianual;

e) diretrizes orçamentárias e orçamento anual;

f) gestão orçamentária participativa;

g) planos, programas e projetos setoriais;

h) planos de desenvolvimento econômico e social;

IV –institutos tributários e financeiros:

a) imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana –IPTU;

b) contribuição de melhoria;

c) incentivos e benefícios fiscais e financeiros;

V –institutos jurídicos e políticos:

a) desapropriação;

b) servidão administrativa;

c) limitações administrativas;

d) tombamento de imóveis ou de mobiliário urbano;

e) instituição de unidades de conservação;

f) instituição de zonas especiais de interesse social;

g) concessão de direito real de uso;

h) concessão de uso especial para fins de moradia;

i) parcelamento, edificação ou utilização compulsórios;

j) usucapião especial de imóvel urbano;

l) direito de superfície;

m) direito de preempção;

n) outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso;

o) transferência do direito de construir;

p) operações urbanas consorciadas;

q) regularização fundiária;

r) assistência técnica e jurídica gratuita para as comunidades e grupos sociais menos favorecidos;

s) referendo popular e plebiscito;

t) demarcação urbanística para fins de regularização fundiária;(Incluído pela Medida Provisória nº 459, de 2009)

u) legitimação de posse. (Incluído pela Medida Provisória nº 459, de 2009)

t) demarcação urbanística para fins de regularização fundiária; (Incluído pela Lei nº 11.977, de 2009)

u) legitimação de posse. (Incluído pela Lei nº 11.977, de 2009)

VI –estudo prévio de impacto ambiental (EIA) e estudo prévio de impacto de vizinhança (EIV).

§ 1o Os instrumentos mencionados neste artigo regem-se pela legislação que lhes é própria, observado o disposto nesta Lei.

§ 2o Nos casos de programas e projetos habitacionais de interesse social, desenvolvidos por órgãos ou entidades da Administração Pública com atuação específica nessa área, a concessão de direito real de uso de imóveis públicos poderá ser contratada coletivamente.

§ 3o Os instrumentos previstos neste artigo que demandam dispêndio de recursos por parte do Poder Público municipal devem ser objeto de controle social, garantida a participação de comunidades, movimentos e entidades da sociedade civil.

Tem-se, do presente artigo, um rol bastante extenso de instrumentos da política urbana nacional que, entretanto, não é taxativo, mas aberto a outros, alguns previstos anteriormente à lei 10.257/2001 e outros posteriores a esta:

A redação do artigo deixa claro que tal relação não é exaustiva ao dizer que eles deverão figurar ‘entre outros instrumentos’ –o que significa um reconhecimento da validade de instrumentos existentes e utilizados antes da edição do Estatuto da Cidade e também que, mesmo agora, novos instrumentos (não previstos nessa relação) poderão vir a ser criados, inclusive por Estado e Municípios. (DALLARI, 2006, P. 72)

Importante notar que há uma maior especificidade e extensão quanto os instrumentos de planejamento de política urbana voltados para os municípios (art. 4º, III), justamente por ser no âmbito local onde a maioria dos problemas urbanísticos se desenvolve e por cada cidade contar com particularidades e necessidades pontuais, cabendo atuação mais próxima para o alcance de melhores e eficazes soluções.

Outros fatores que causam espécie são a riqueza e a substância dos chamados instrumentos jurídicos e políticos, alguns deles já bastante tradicionais (desapropriação, servidão administrativa etc.) e outros introduzidos apenas pela lei 10.257/2001. Os presentes institutos visam a garantir o respeito à função social da propriedade através de comportamentos comissivos e omissivos:

Os institutos jurídicos e políticos acima referidos visam não apenas a vedar comportamentos dos proprietários deletérios aos interesses da coletividade, mas, sim, mais que isso, visam a obter comportamentos positivos, ações, atuações, necessárias à realização da função social da propriedade (DALLARI, 2006, P. 84)

Pertinente, também, foi a criação do Estudo Prévio de Impacto de Vizinhança (EIV), sendo este um verdadeiro Estudo de Impacto Ambiental referente exclusivamente ao meio ambiente urbano.

O presente trabalho não tem por objetivo analisar todos os instrumentos de política urbana previstos no Estatuto da Cidade e, até mesmo, fora dele, de modo que será, no tópico seguinte, analisada apenas a questão do plano diretor, pois boa parte dos citados instrumentos depende do plano diretor para sua devida e eficiente aplicação.

O PLANO DIRETOR

Conforme preceitua o art. 182, § 1º, da Constituição Nacional, o plano diretor “é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana”.

O presente conceito constitucional, apesar de apresentar um norte quanto a definição de plano diretor, mostra-se um tanto inespecífico, carecendo de maior densidade para que sejam demonstradas suas principais características. Desta forma, como preceitua Jacintho Arruda Câmara (2006, p. 324), o presente instituto pode ser definido da seguinte maneira:

[....] o plano diretor é o mais importante instrumento de planificação urbana previsto no Direito Brasileiro, sendo obrigatório para alguns Municípios e facultativo para outros; deve ser aprovado por lei e tem, entre outras prerrogativas, a condição de definir qual a função social a ser atingida pela propriedade urbana e de viabilizar a adoção dos demais instrumentos de implementação da política urbana (parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, IPTU progressivo, desapropriação com pagamento em títulos, direito de preempção, outorga onerosa do direito de construir, operações urbanas consorciadas e transferência do direito de construir).

O retromencionado conceito trata-se de uma comunhão de características previstas em lei e na Constituição de 1988 para o plano diretor: ele é aprovado por lei, de acordo com intelecção feita do art. 182, § 1, CF; é ato condição para a implementação de diversos instrumentos de política urbana (arts. 28, 29, 32, 35, do Estatuto da Cidade, entre outros), além de cumprir a importante função de dar liquidez e precisão ao conceito de função social da propriedade urbana (art. 39, lei 10.257 e art. 182, § 2º, CF).

Apesar de a CF/88 ter previsto a obrigatoriedade do plano diretor apenas para as cidades com mais de 20.000 habitantes, o Estatuto de Cidade (art. 41) ampliou tal rol para também englobar as urbes integrantes de regiões metropolitanas e aglomerações, urbanas; as onde o Poder Público municipal pretenda utilizar os instrumentos previstos no§ 4o do art. 182 da Constituição Federal; as integrantes de áreas de especial interesse turístico e as inseridas na área de influência de empreendimentos ou atividades com significativo impacto ambiental de âmbito regional ou nacional. Além disso, o art. 40, § 2º, da lei 10.257/2001, afirma que o presente instrumento “deverá englobar o território do município como um todo”.

José Afonso da Silva (2008, p. 139), ao analisar a nomenclatura plano diretor, afirma o seguinte:

É plano, porque estabelece os objetivos a serem atingidos, o prazo em que estes devem ser alcançados (ainda que, sendo plano geral, não precise fixar prazo, no que tange às diretrizes básicas), as atividades a serem executadas e quem deve executá-las. É diretor, porque fixa as diretrizes do desenvolvimento urbano do Município.

O multimencionado Estatuto também instituiu o conteúdo mínimo a ser previsto no plano diretor, sob pena de perda de sua natureza em caso de ausência:

Art. 42. O plano diretor deverá conter no mínimo:

I –a delimitação das áreas urbanas onde poderá ser aplicado o parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, considerando a existência de infraestrutura e de demanda para utilização, na forma do art. 5o desta Lei;

II –disposições requeridas pelos arts. 25, 28, 29, 32 e 35 desta Lei;

III –sistema de acompanhamento e controle.

Desta feita, tem-se como primeiro aspecto a ser tratado no plano diretor a questão da delimitação de áreas urbanas onde poderá ser aplicado o parcelamento, edificação ou utilização compulsórios. De acordo com Jacintho Arruda Câmara (2006, p. 332), apesar das presentes medidas serem de aplicação facultativa, a delimitação destas áreas é obrigatória, pois só assim pode ser assegurada a implementação futura do presente instrumento e conferir segurança jurídica a qualquer medida a ser adotada neste sentido.

Logo após, estão as medidas relativas a outros instrumentos de política urbana e, por fim, a disposições a respeito do sistema de controle e acompanhamento. Existe, ainda, disposição no sentido da obrigatoriedade de cidades com mais de 500.000 habitantes elaborarem um plano de transporte urbano integrado, devendo este ser compatível com o plano diretor ou estar previsto dentro do próprio. Por fim, calha referência a recente alteração, introduzida pela lei 12.608/2012, que criou o art. 42-B do Estatuto da Cidade, no sentido da realização de uma série de medidas sustentáveis para a expansão dos perímetros urbanos dos municípios.

José Afonso da Silva (2008, p.143 – 147) trabalha com quatro etapas para a elaboração do plano diretor, iniciando com estudos preliminares, onde seria feita uma avaliação sumária da situação e dos problemas existentes no município. Depois, haveria um diagnóstico, que aprofundaria os estudos preliminares e traria possíveis soluções para os problemas, prevendo as perspectivas de evolução. A terceira fase seria a do plano de diretrizes, estabelecendo, este, a política para solucionar os problemas diagnosticados, bem como os objetivos e diretrizes da organização espacial da cidade. Por fim, restaria a instrumentação do plano, etapa onde seriam elaborados os instrumentos de atuação, de acordo com as fases anteriores, para galgar os objetivos determinados.

O processo de elaboração do plano diretor deve seguir as regras legislativas previstas na lei orgânica do município, devendo ser revisto, no mínimo, a cada 10 anos (art. 40, § 3º, Estatuto da Cidade), além de dever garantir a participação da população em geral e de associações representativas através de audiências públicas, debates, publicidade e acesso quanto aos documentos e informações produzidos (art. 40, § 4o, Lei 10.257):

A população deverá estar inserida em todas as fases do processo de revisão ou de construção do plano direto. Considero que existem duas formas principais de participação popular que deverão ser utilizadas nesse projeto: as audiências públicas e a representação local. A própria legislação, contudo, propõe a utilização de outros meios de participação popular, como plebiscitos. (SILVA, 2008, p. 157 – 158)

Por fim, calha falar sobre as consequências para quem não editar o plano diretor. Segundo Jacintho Arruda Câmara (2006, p. 329 – 330), antes da edição do Estatuto da Cidade, a obrigação de editar o plano diretor era bastante descumprida, pois não havia sanção para este fato.

Contudo, após a edição da lei 10.257/2001, essa situação foi alterada:

A situação foi totalmente modificada com a edição do Estatuto da Cidade. É possível vislumbrar, com a nova lei, pelo menos três categorias distintas de consequências –por assim dizer –sancionatórias que o descumprimento do dever de editar o plano – diretor suscita. Tais consequências podem ser de natureza institucional, funcional ordinária, e, ainda, funcional extraordinária. (CÂMARA, 2006, P. 329)

Ao dissertar sobre o tema, o doutrinador suprarreferido (2006, p. 329 – 330) afirma que as consequências institucionais consistem na impossibilidade de utilização, pelo município, de diversos instrumentos de política urbana presentes no Estatuto da Cidade, pois o plano diretor seria requisito de validade de vários deles, como a outorga onerosa.

Já a sanção funcional ordinária ocorre quando há o descumprimento do dever de editar plano diretor por parte das cidades obrigadas a tanto. Assim, as autoridades responsáveis por essa omissão estariam descumprindo uma obrigação funcional estabelecida em lei, podendo acarretar as sanções previstas nos estatutos jurídicos a que estão vinculados.

Há, ainda, as sanções funcionais extraordinárias, que seriam aquelas previstas pelo Estatuto da Cidade para algumas infrações cometidas pelo Chefe do Executivo Municipal em relação ao plano diretor. Esses atos foram considerados de grande gravidade pelo legislador, de modo que, atualmente, caracterizam atos de improbidade administrativa. Exemplo desse tipo de infração é o fato de o prefeito deixar de garantir os mecanismos previstos no art. 40,§ 4o, da lei 10. 257/2001, referentes a divulgação e participação popular na elaboração do plano diretor.

Como demonstrado, o plano diretor consiste em importantíssimo instrumento para a implantação das diretrizes da política urbana nacional, e, via direta, do direito a cidades sustentáveis, sendo, inclusive, o parâmetro legal para a aferição do princípio da função social da propriedade.

CIDADES SUSTENTÁVEIS COMO DIREITO FUNDAMENTAL E A POSSIBILIDADE DO ATIVISMO JUDICIAL

Segundo George Marmelstein Lima (2007, online), os direitos fundamentais

[....] são pautas ético-políticas, intimamente ligadas à ideia de dignidade da pessoa humana, positivadas no plano constitucional de um determinado país, que, por sua importância axiológica, compõem um ‘sistema de valores’, que fundamenta toda a ordem jurídica.

Desta noção, extraem-se três paradigmas dos direitos fundamentais: eles são normas jurídicas, estão positivados no plano constitucional e possuem íntima ligação com a dignidade da pessoa humana.

Alguma celeuma ainda existe em relação à expressão direitos fundamentais, muitas vezes confundida com direitos humanos, até mesmo pelo próprio legislador pátrio, portanto, faz-se necessário subseguinte esclarecimento:

Em que pese sejam ambos os termos (“direitos humanos” e “direitos fundamentais”) comumente utilizados como sinônimos, a explicação corriqueira e, diga-se de passagem, procedente para a distinção é de que o termo “direitos fundamentais” se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado, ao passo que a expressão “direitos humanos” guardaria relação com os documentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional, e que, portanto, aspiram à validade universal, para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequívoco caráter supranacional (internacional). (SARLET, 2007, p. 35-36)

Desta forma, por serem os direitos fundamentais aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na Constituição de uma determinada ordem jurídica, estes podem ser mais amplos ou menos amplos que os chamados “direitos humanos”, não havendo, assim, necessária identidade entre estes direitos, apesar de haver muitas interseções entre eles:

A positivação dos direitos fundamentais significa a incorporação na ordem jurídica positiva dos direitos considerados ‘naturais’ e ‘inalienáveis’ do indivíduo. Não basta uma qualquer positivação. É necessário assinalar-lhes a dimensão de Fundamental Rights colocados no lugar cimeiro das fontes de direito: as normas constitucionais. Sem essa positivação jurídica, os << direitos do homem são esperanças, aspirações, ideias, impulsos, ou, até, por vezes, mera retórica política >>, mas não protegidos sob a forma de normas (regras e princípios) de direito constitucional (Grundrechtsnormen). Por outras palavras, que pertencem a Cruz Villalon: <<onde não existir constituição não haverá direitos fundamentais. Existirão outras coisas, seguramente mais importantes, direitos humanos, dignidade da pessoa humana [....]. (CANOTILHO, 2010, P. 377)

Em que pese ele estar previsto expressamente apenas no art. 2º, I, da lei 10.257/2001, nomeada de Estatuto da Cidade, o Direito a Cidades sustentáveis é um verdadeiro direito fundamental. O multimencionado direito assume materialidade de um verdadeiro direito fundamental, pois estes não são, na realidade, apenas os previstos taxativamente na Carta Magna, como agora será demonstrado.

A Constituição Brasileira, em seu art. 5º, §2º, prega o seguinte:

Art.5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[....]

§2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

A norma retrocitada revela que a Constituição Brasileira adotou uma concepção materialmente aberta dos direitos fundamentais, não os restringindo ao rol contido no título II, sendo, assim, possível retirar direitos fundamentais de outras partes da Constituição, dos tratados internacionais referentes aos direitos humanos e em decorrência dos princípios adotados pela Carta Magna:

[....] o conceito materialmente aberto de direitos fundamentais consagrado pelo art. 5º, §2º, da nossa Constituição é de uma amplitude ímpar, encerrando expressamente, ao mesmo tempo, a possibilidade de identificação e construção jurisprudencial de direitos materialmente fundamentais não escritos (no sentido de não expressamente positivados), bem como de direitos fundamentais constantes em outras partes do texto constitucional e nos tratados internacionais. (SARLET, 2007, p.98)

José Afonso da Silva (2008, p.182 – 183, grifos originais), admitindo a possibilidade da extensão material ao tratar da classificação dos direitos fundamentais em relação às suas fontes, fez a seguinte análise, referindo-se ao multicitado artigo constitucional:

O critério da fonte leva em conta a circunstância de a Constituição mesma admitir outros direitos e garantias fundamentais não enumerados, quando, no §2º do art. 5º, declara que os direitos e garantias previstos neste artigo não excluem outros decorrentes dos princípios e do regime adotado pela Constituição e dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. Daí, as três fontes dos direitos e garantias: (a) os expressos (art.5º, I a LXXVIII); (b) os decorrentes dos princípios e regime adotados pela Constituição; (c) os decorrentes de tratados e convenções internacionais adotados pelo Brasil.

Desta forma, nota-se, tanto pela literalidade da lei constitucional quanto pelos argumentos dos supracitados doutrinadores, que o Poder Constituinte Originário não optou por um rol taxativo, dando amplitude ao conceito de direitos fundamentais através da chamada cláusula de abertura (art. 5º, § 2º, CF), ou, como prefere J.J. Gomes Canotilho (2010, p. 379), norma com fattispecie aberta. Deste modo, podem os direitos fundamentais, na ordem constitucional brasileira, ser encontrados em tratados internacionais, de maneira implícita e/ou decorrentes dos princípios e regime adotados pela Carta Magna, ou em outras partes da Constituição, formando, assim, o chamado bloco de constitucionalidade.

A despeito disso, o próprio Supremo Tribunal Federal já decidiu, com base na cláusula prevista no art.5º, §2º, da Constituição Federal, pela fundamentalidade do princípio da anterioridade tributária, quando do julgamento da ADIn 939 – 7/DF, ocorrido em 15/12/1993. Esta ação versava, entre outras relevantes matérias, sobre a possibilidade de emenda constitucional criar exceções ao focado princípio, mas o STF julgou pela impossibilidade destas ressalvas, pois a anterioridade tributária seria uma cláusula pétrea, mesmo não se encontrando geograficamente no Título II da CF/88, decorrente da abertura material dos direitos fundamentais.

Devido, então, a esta cláusula de abertura, tem-se que estes direitos fundamentais fora do catálogo e previstos em tratados internacionais devem se sujeitar ao mesmo tratamento jurídico dispensado aos direitos fundamentais formalmente constitucionais:

Assim, os direitos materialmente fundamentais, reconhecidos pela cláusula aberta contida no §2º do art.5º da Constituição Federal, sujeitam-se ao mesmo tratamento jurídico dispensado aos direitos formalmente fundamentais. Ou seja, os direitos fundamentais implícitos (aqueles subentendidos das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais expressas) e decorrentes (aqueles decorrentes do regime e dos princípios que a Constituição adota) e os direitos fundamentais previstos na Constituição, mas fora do catálogo e em tratados internacionais (ou seja, aqueles decorrentes dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte) são direitos fundamentais. (CUNHA JÚNIOR, 2011, p. 656)

Provavelmente, no concernente ao art. 5, §2º, da Carta Magna, a maior polêmica existente envolva a questão da extensão material dos direitos fundamentais para os casos de tratados internacionais firmados pela República nacional.

De acordo com Hidelbrando Accioly (2002, p. 28), tratado é “[....] o ato jurídico por meio do qual se manifesta o acordo de vontades entre duas ou mais pessoas internacionais”.

Ainda segundo o retromencionado jurista, a expressão “tratado” é genérica, servindo para denominar qualquer acordo regido pelo direito internacional:

Em outras palavras, tratado é a expressão genérica. São inúmeras as denominações utilizadas conforme a sua forma, seu conteúdo, o seu objeto ou o seu fim, citando-se as seguintes: convenção, protocolo, convênio, declaração, modus vivendi, ajuste, compromisso etc., além das concordatas, que são os atos sobre assuntos religiosos celebrados pela Santa Sé com Estados que têm cidadãos católicos. (ACCIOLY, 2002, p. 29)

Assim, o multimencionado dispositivo da Carta Magna permite a integração à ordem jurídica constitucional pátria, dentro do chamado “bloco de constitucionalidade”, dos direitos humanos previstos em tratados internacionais firmados pelo Brasil, tornando-se, estes, verdadeiros direitos fundamentais em sua acepção material.

Calha, ainda que brevemente, até por não ser objeto do presente trabalho e por ser assunto de intenso e polêmico debate na doutrina e nos tribunais, expor a problemática do status normativo dos tratados internacionais na ordem jurídica brasileira de acordo com o posicionamento do Supremo Tribunal Federal.

Segundo Flávia Piovesan (2010, p. 51 – 81), a posição do STF em relação à hierarquia dos tratados internacionais é bastante variável no decorrer do tempo, encontrando-se julgados do começo do século XX onde partia-se do primado do Direito das Gentes sobre o direito interno, devendo os instrumentos internacionais terem maior hierarquia que a legislação pátria.

Contudo, depois de várias alternâncias de posicionamento, a partir de 1977, o STF adotou o entendimento de que os tratados internacionais, de qualquer matéria, teriam o status normativo de lei ordinária federal, sendo-lhes aplicado, inclusive, a regra a qual a norma posterior revoga a anterior.

Esta posição, entretanto, sofreu inúmeras críticas, principalmente em relação a questão dos tratados internacionais de direitos humanos e o tratamento diferenciado concedido a estes pelo art. 5, §3º, da Constituição Federal, pois, o STF, ao dar status de lei federal a estas convenções, retiraria a posição privilegiada concedida pelo mencionado dispositivo constitucional, de modo que bastaria a edição de uma simples lei para haver a suplantação de um direito fundamental.

Mais recentemente, embora não de forma definitiva, o STF vem se posicionando de maneira a aceitar a supralegalidade dos tratados internacionais de direitos humanos, como forma de dar maior proteção a estes e maior efetividade ao art. 5, § 2º, da CF.

Exemplo desse novo posicionamento é o caso da proibição da prisão civil por dívidas na hipótese de haver depositário infiel, por força do art. 7º do Pacto de São José da Costa Rica (ratificado pelo Brasil em 1992), que pode ser exemplificado nos julgamentos dos Habeas Corpus 90.171 – 7/SP e 94.702 – 6/GO, sendo, deste último, extraído o seguinte trecho:

[...] o status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela posterior ou anterior ao ato de ratificação.

[...]

Desse modo, na atualidade, a única hipótese de prisão civil, no Direito Brasileiro, é a do devedor de alimentos. O art.5º, §2º, da Carta Magna, expressamente estabeleceu que os direitos e garantias expressos no caput do mesmo dispositivo não excluem outros decorrentes do regime dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. O Pacto de São José da Costa Rica, entendido como um tratado internacional na matéria de direitos humanos, expressamente, só admite, no seu bojo, a possibilidade de prisão civil do devedor de alimentos e, consequentemente, não admite mais a possibilidade de prisão civil do depositário infiel.

Desta forma, pelos julgados mais recentes, o Supremo tem que os tratados internacionais de direitos humanos têm o status de norma supralegal, estando, nas palavras de Valério de Oliveira Mazzuoli (2009, online),“abaixo da Constituição, mas acima de toda a legislação infraconstitucional”.

A presente posição teve como antagonista a tese segundo a qual os direitos humanos previstos em tratados teriam status de norma constitucional (pois o art. 5, § 2º, da CF, não teria feito nenhuma distinção quanto ao status destes direitos) e não meramente supralegal, mas esta acabou vencida, por seis votos a cinco, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 466.343 e em outros recursos subsequentes.

Feita a devida digressão quanto a cláusula de abertura prevista no art. 5, § 2º, da Lei Maior, calha afirmar que, mesmo estando positivado no art.2º, I, do Estatuto da Cidade, o direito às cidades sustentáveis não decorre meramente deste dispositivo. Ele é decorrência de outros princípios constitucionais, como a função social da propriedade, direito à moradia e a garantia de meio ambiente saudável, (visto tratar-se de meio ambiente artificial) todos de intensa relação com a dignidade da pessoa humana (princípio fundamental), de modo que, como outros direitos fundamentais, está apenas explícito infraconstitucionalmente, quando, na verdade, advém da Constituição:

Ainda no que diz a controvérsia em torno da existência de ‘direitos fundamentais legais’ e observadas as razões já colacionadas, também importa registrar que aquilo que para muitos pode ser considerado um direito fundamental na legislação infraconstitucional, em verdade nada mais é – em se cuidando, convém frisar, de direitos fundamentais – do que a explicitação, mediante ato legislativo, de direitos implícitos, desde logo fundados na Constituição. Tal ocorre, por exemplo, com o direito fundamental (constitucional) aos alimentos, consoante, aliás, já reconhecido por alguma doutrina, onde, em última análise, está em causa um direito fundamental a prestações de caráter existencial, que, independentemente de previsão legal –já poderia ser deduzido do direito à vida com dignidade. (SARLET, 2007, p.100)

Este entendimento é, inclusive, o esposado pela Comissão de Desenvolvimento Urbano da Presidência da República, quando da elaboração do Guia para Implementação pelos Municípios e Cidadãos do Estatuto da Cidade:

A primeira diretriz do Estatuto reconhece e qualifica o direito às cidades sustentáveis, que passa a ter vigência como um dos direitos fundamentais da pessoa humana, incluído no conjunto dos direitos humanos. A Constituição brasileira, pelo §2º do artigo 5º, estabelece que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil participe.

O direito à cidade tem como fonte de origem os princípios constitucionais das funções sociais da cidade e da propriedade, norteadores da política urbana. [....] O direito à cidade é um novo direito fundamental positivado, oriundo da fonte legitimadora das normas constitucionais da política urbana, que incorporaram a emenda popular de reforma urbana apresentada na Assembleia Nacional Constituinte, que já apontava a necessidade do reconhecimento constitucional dos direitos urbanos. (ESTATUTO..., 2002, p.32)

Ora, o direito em estudo visa a garantir uma maior integração das pessoas às urbes, diminuindo desigualdades e tendo nítido caráter de justiça social, além de contemplar, em seu seio, todas as funções urbanísticas previstas na Carta de Atenas (habitar, trabalhar, circular e recrear), visando a desenvolvê-las de forma sustentável.

Note-se que dentro do conteúdo do direito a cidades sustentáveis encontram-se incorporados vários outros direitos fundamentais, como o direito a moradia, ao meio ambiente saneado e ao trabalho, de modo que inequívoca a posição do presente direito como uma norma fundamental.

Garantir a presente diretriz da política urbana nacional é também garantir o cumprimento de objetivos fundamentais constitucionais, tornando a sociedade mais livre e justa, reduzindo as desigualdades, trazendo uma qualidade de vida digna para a população, para que todos possam exercer sua cidadania e seus direitos fundamentais da forma mais otimizada possível.

Ante o posto, não restam maiores dúvidas quanto à fundamentalidade do direito a cidades sustentáveis.

Resta, ainda, enquadrar o direito às cidades sustentáveis como um direito fundamental de 3ª dimensão, visto possuir caráter humanista e universal, caracterizando-se, também, como um direito difuso, não sendo direcionado a nenhum destinatário especifico que não o gênero humano:

Os direitos fundamentais da terceira dimensão, também denominados de direitos de fraternidade ou de solidariedade, trazem como nota distintiva o fato de se desprenderem, em princípio, da figura do homem-indivíduo como seu titular, destinando-se à proteção de grupos humanos (família, povo, nação), e caracterizando-se, consequentemente, como direitos de titularidade coletiva ou difusa [....] Dentre os direitos fundamentais da terceira dimensão consensualmente mais citados, cumpre referir os direitos à paz, à autodeterminação dos povos, ao desenvolvimento, ao meio ambiente e qualidade de vida [....]. (SARLET, 2007, p.56)

No mesmo sentido, o Estatuto da Cidade: Guia Para Implementação Pelos Municípios e Cidadãos (2002, p. 32):

O direito à cidade tem como fonte de origem os princípios constitucionais das funções sociais da cidade e da propriedade, norteadores da política urbana. Pertencente à categoria dos direitos difusos, como o direito ao meio ambiente, o direito a cidades sustentáveis preconiza a meta fundamental da República Brasileira para o desenvolvimento urbano : tornar as cidades brasileiras mais justas, humanas, democráticas e sustentáveis.

Ora, o presente direito tem, nitidamente, uma titularidade indeterminável ou indefinida, sendo esta certamente coletiva. Assim, não existe um direito individual subjetivo à cidade, mas, em sendo realizado este direito, cada indivíduo poderá auferi-lo individualmente.

O enquadramento do direito a cidade sustentáveis como direito fundamental leva a várias implicações. Entre elas podemos citar a sujeição das funções legislativa, executiva e judiciária a estes direitos. Segundo Paulo Gustavo Gonet Branco (2012, p. 181-187), a atividade legiferante deve guardar respeito aos direitos fundamentais, visando, quando no processo de restrição, não afetar o seu núcleo essencial (atividade negativa), e deve atuar positivamente na edição de normas que regulamentem estes direitos, gerando a sua omissão a possibilidade de manejo de mandado de injunção ou ação direta de inconstitucionalidade por omissão.

Quanto à sujeição do poder executivo, a edição de seus atos também deve respeitar os direitos fundamentais, mesmo que estes sejam discricionários:

A vinculação da Administração às normas de direitos fundamentais torna nulos os atos praticados com ofensa ao sistema desses direitos. De outra parte, a Administração deve interpretar e aplicar as leis segundo os direitos fundamentais. A atividade discricionária da Administração não pode deixar de respeitar os limites que lhe acenam os direitos fundamentais. Em especial, os direitos fundamentais devem ser considerados na interpretação e aplicação, pelo administrador público, de cláusulas gerais e de conceitos jurídicos indeterminados. (BRANCO, 2012, p.183).

Já em relação ao Judiciário, a defesa dos direitos fundamentais é de sua essência. Deve, desta forma, conferir a maior eficácia possível a estes direitos e, de forma negativa, rejeitar (no modo poder-dever) os preceitos que, de uma maneira ou outra, ofendam estes preceitos constitucionais.

Assim, todas as funções estatais devem respeito ao rol dos direitos fundamentais, entre eles o direito a cidades sustentáveis, devendo haver tanto ações positivas para sua implementação quanto condutas negativas, no sentido de deixar de agir quando a ação possa ofender esses direitos.

Outro ponto importante é relativo a aplicabilidade imediata do direito a cidades sustentáveis. A Constituição Brasileira dispõe, no art. 5º, §1º, que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”.

Analisando o retromencionado parágrafo, Paulo Gustavo Gonet Branco (2012, p.189) expõe o seguinte:

O significado essencial dessa cláusula é ressaltar que as normas que definem direitos fundamentais são normas de caráter preceptivo, e não meramente programático. Explicita-se, além disso, que os direitos fundamentais se fundam na Constituição, e não na lei — com o que se deixa claro que é a lei que deve mover-se no âmbito dos direitos fundamentais, não o contrário. Os direitos fundamentais não são meramente normas matrizes de outras normas, mas são também, e sobretudo, normas diretamente reguladoras de relações jurídicas

Isto, porém, não significa a automaticidade da aplicação de todas as normas de direitos fundamentais, pois há direitos que nitidamente necessitam de uma regulamentação legislativa para alcançar a sua plenitude, de modo que este dispositivo é tratado, por boa parte da doutrina, como um mandado de otimização, devendo sempre buscar-se a máxima concreção possível de um direito fundamental.

Em caso de omissão de algum ente em regular norma necessitada de atuação estatal para alcançar seus objetivos, cabe buscar o suprimento desta omissão no Judiciário.

O direito fundamental a cidades sustentáveis, como visto, é um direito coletivo e dependente tanto de posturas positivas quanto negativas do Estado para alcançar sua máxima efetividade. Entretanto, muitas vezes os poderes públicos acabam por fazer ações que desrespeitam este direito e, ao mesmo tempo, omitir o necessário para sua concreção.

Essas ações e omissões acabam por infringir o direito fundamental a cidades sustentáveis –previsto infralegalmente no art. 2° do Estatuto da Cidade, mas refletindo vários princípios constitucionais – , garantidor de terra urbana, moradia, saneamento ambiental, moradia, transporte e serviços públicos, lazer e infraestrutura urbana para as presentes e futuras gerações, afetando, pela inércia do Legislativo e falta de interesse do Executivo, a qualidade de vida de milhões de indivíduos, reféns de cidades pouco funcionais, poluídas, inseguras e doentes.

Desta feita, devido a esta omissão por parte do executivo em operacionalizar a política nacional urbanística e do legislativo de muitas cidades, por não elaborarem planos diretores, e de ações nocivas a sustentabilidade urbana, faz-se necessária uma postura proativa do Judiciário para que o presente direito fundamental não passe de mais um mito presente na ordem constitucional brasileira:

 Por postura judicial ativa, em matéria ambiental, deve ser entendida a capacidade de o juiz –liberto dos antolhos positivistas que resumem sua atividade, seu raciocínio, aos parâmetros da lógica formal, subserviente ao falso paradigma da segurança jurídica –de utilizar toda indumentária teórico-jurídica, imposta e posta a sua disposição, com a finalidade precípua de salvaguardar, defender e reagir energicamente contra qualquer ameaça ao meio ambiente. Deixar de ser a montesquiana “inanimada boca que pronuncia as palavras da lei”, servo que coxeia atrás da carruagem do sistema, desideologizado, neutro, para assumir a dimensão política de sua atividade, tornar-se lawmaker sem legislar, não se ocultando por detrás de dogmas esclerosados e aceitando as implicações morais e práticas de suas escolhas. (SILVA, 2002, p. 60-61)

Essa atuação ativista do Judiciário, entretanto, está sujeita a inúmeras críticas por parte de alguns juristas, principalmente no que concerne à falta de legitimidade para realizar políticas públicas e à invasão da competência do Legislativo e do Executivo, ferindo, supostamente, a cláusula pétrea da separação de poderes:

O ativismo judicial, associado a uma postura ativa e interventiva dos Tribunais Constitucionais no sentido de realização da Constituição e de concretização dos Direitos Fundamentais, tem sido um dos aspectos mais controversos e discutidos pela Teoria Constitucional contemporânea, especialmente no que tange a sua legitimidade democrática, em face de uma –suposta –violação do princípio da separação dos poderes, pois, ao tentar levar a cabo suas tarefas constitucionais, o Poder Judiciário acaba, muitas vezes, sendo acusado de invadir competências reservadas aos poderes públicos e à discricionariedade administrativa ou legislativa, atuando, assim, de forma positiva, e não meramente negativa, de fiscalização e de controle, como originariamente era sua função. (LEAL, 2011, p. 221 – 222)

Quanto à divisão das funções de poder, calha afirmar não ser mais um dogma estático como na época de Montesquieu. Antigamente, pelo momento histórico, fazia-se necessária essa separação quase que absoluta entre as funções do Estado, sendo o juiz um mero aplicador do texto da lei (labouche de la loi). Atualmente, entretanto, exige-se um maior temperamento nesta abordagem:

Nesse contexto de ‘modernização’, esse velho dogma da sabedoria política teve de flexibilizar-se diante da necessidade imperiosa de ceder espaço para a legislação emanada do Poder Executivo, como as nossas medidas provisórias –que são editadas com força de lei –bem assim para a legislação judicial, fruto da inevitável criatividade de juízes e tribunais, sobretudo das cortes constitucionais, onde é frequente a criação de normas de caráter geral, como as chamadas sentenças aditivas proferidas por esses supertribunais em sede de controle de constitucionalidade. (COELHO, 2009, p. 178)

Entre estas mitigações do princípio da divisão das funções de poder, pode ser citada a teoria dos freios e contrapesos, permitindo que cada um dos Poderes do Estado exerçam atipicamente funções que não lhe são preponderantes, como o caso da edição de medidas provisórias (legislar) pelo Executivo.

Entre estas mitigações do princípio da divisão das funções de poder, pode ser citada a teoria dos freios e contrapesos, permitindo que cada um dos Poderes do Estado exerçam atipicamente funções que não lhe são preponderantes, como o caso da edição de medidas provisórias (legislar) pelo Executivo.

O ativismo judicial surge justamente no momento de crise institucional, quando o legislador não legisla o suficiente para proteger os direitos fundamentais e dar-lhes eficácia mínima, ou quando o executivo não operaciona políticas públicas necessárias para a defesa destes direitos, visto que, além de uma proibição do excesso, deve haver, em matéria de normas fundamentais, uma proibição da proteção insuficiente. Deve, acima de tudo, no Estado Democrático de Direito, ser respeitada a Constituição. O Judiciário, assim, apresenta uma maior dinâmica para apreciar as mudanças sociais, conforme afirma François Rigaux (2000, p. 322): “Entre o legislador e o juiz ata-se uma relação dinâmica que não têm mão única. [....] Sem que as duas funções sejam intercambiáveis, a flexibilidade é maior do lado do poder jurisdicional: [....].”.

Desta forma, o juiz, ao adotar uma postura ativista diante de uma omissão ou ação prejudicial aos direitos fundamentais, está dando vazão ao disposto na Ordem Constitucional Brasileira, e não criando políticas públicas per si. Não podem, então, o Legislativo e o Executivo, sob o argumento de ser de sua competência discricionária, deixar de implementarem as políticas públicas definidas no próprio sistema constitucional pátrio, devendo o Judiciário, excepcionalmente adentrar neste mérito, não ofendendo, esta atitude ativa, o dogma da separação das funções de poder. Se assim o fosse, correr-se-ia o risco de instalar-se uma ditadura da conveniência ao invés de um Estado Democrático de Direito.

Desta forma, o juiz age quando as Funções primariamente competentes para a implementação dos direitos fundamentais não agirem ou agirem mal:

Em outras palavras: apenas quando os demais órgãos públicos falharem em sua missão ou simplesmente forem inertes na adoção de medidas necessárias à proteção e promoção dos direitos fundamentais, será justificável (legítima) uma intervenção do Judiciário, desde que seja possível demonstrar o desacerto do agir ou do não agir desses outros poderes. (MARMELSTEIN, 2008, p. 316)

E foi neste sentido que se pronunciou o Supremo Tribunal Federal:

Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão –por importar em descumprimento dos encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório –mostra-se apta a comprometer a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional. (STF –RE – AGr 410.715/SP –2ª Turma–rel: min. Celso Mello –DJ 03.02.2006).

Repetindo entendimento similar recentemente:

RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. OBRIGAÇÃO DE FAZER. IMPLÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS. POSSIBILIDADE. RECURSO AO QUAL SE NEGA SEGUIMENTO.Relatório 1. Recurso extraordinário interposto com base na al. a do inc. III do art. 102 da Constituição da República contra o seguinte julgado do Tribunal de Justiça da Paraíba: “Apelação Cível. Ação Civil Pública. Inconformismo do Estado da Paraíba. Reforma de escola estadual. Precariedade verificada em relação à segurança e estrutura do imóvel. Vistoria realizada pela promotoria de defesa dos direitos da educação do Ministério Público. Risco à incolumidade física dos alunos e professores que frequentam a instituição de ensino. Ausência de violação ao princípio da separação dos poderes. Princípio da reserva do possível afastado. Apelação. Desprovimento”. 2. O Recorrente alega ter o Tribunal de origem contrariado os arts.  e 165 daConstituição da República. Argumenta ser “a gerência de recursos públicos e a realização de políticas públicas tarefa que incumbe exclusivamente à Administração Pública, não podendo ser suprida na via eleita pelo Ministério Público, não possuindo a Lei da Ação Civil Pública o escopo de ensejar a quebra da independência entre os poderes” (fl. 255). Apreciada a matéria trazida na espécie, DECIDO. 3. Razão jurídica não assiste ao Recorrente. O Desembargador Relator do caso no Tribunal de Justiça da Paraíba afirmou: “Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própriaConstituição, sejam estas implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão – por importar em descumprimento dos encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatário – mostra-se apta a comprometer a eficácia e a integralidade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional. (…) No caso em tela, o Estado deve implementar infraestrutura necessária às instituições de ensino, com a devida segurança em quaisquer situações, tornando a escola um ambiente seguro e agradável, para fruição de discentes e servidores públicos. In casu, é incontroverso que a escola estadual Luiz Gonzaga de Oliveira encontra-se em situação precária, devendo ser efetuados todos os serviços elencados na inicial, para que sejam prevenidos eventuais desastres” (grifos nossos). O acórdão recorrido baseou-se em situação de fato específica, comprovada nos autos como se tem da decisão recorrida, pela qual se assegura o cumprimento pelo ente estatal do seu dever de conferir segurança aos usuários de prédios públicos,garantindo-se a incolumidade daqueles que poderiam se ver em situação de precariedade e risco. A decisão não avança sobre as competências dos Poderes Legislativo e Executivo, pondo-se em harmonia com a jurisprudência deste Supremo Tribunal, assentada em ser possível intervenção excepcional do Poder Judiciário na adoção de providências necessárias de ser determinadas aos entes administrativos estatais, máxime quando se cuidar, como na espécie, de práticas específicas, garantidoras do direito constitucional fundamental à educação e à segurança pública, impossível de ser usufruída pela ausência de dotação das condições materiais imprescindíveis ao desempenho do serviço pela omissão da entidade recorrente, consoante atestado pelas instâncias precedentes: “EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONVERSÃO EM AGRAVO REGIMENTAL. ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL. INTERVENÇÃO EXCEPCIONAL DO PODER JUDICIÁRIO NA IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS: POSSIBILIDADE. PRECEDENTES. AGRAVO REGIMENTAL AO QUAL SE NEGA PROVIMENTO” (RE 700.227-ED, de minha relatoria, Segunda Turma, DJe 31.5.2013). “Agravo regimental no agravo de instrumento. Constitucional. Ação civil pública. Obrigação de fazer. Implementação de políticas públicas. Possibilidade. Violação do princípio da separação dos poderes. Não ocorrência. Precedentes. 1. O Poder Judiciário, em situações excepcionais, pode determinar que a Administração Pública adote medidas assecuratórias de direitos constitucionalmente reconhecidos como essenciais, sem que isso configure violação do princípio da separação de poderes. 2. Agravo regimental não provido” (AI 708.667-AgR, Relator o Ministro Dias Toffolpi, Primeira Turma, DJe 10.4.2012). “AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS. DETERIORAÇÃO DAS INSTALAÇÕES DE INSTITUIÇÃO PÚBLICA DE ENSINO. CONSTRUÇÃO DE NOVA ESCOLA. POSSIBILIDADE. INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES. GARANTIA DO DIREITO À EDUCAÇÃO BÁSICA. PRECEDENTES. As duas Turmas do Supremo Tribunal Federal possuem entendimento de que é possível ao Judiciário, em situações excepcionais, determinar ao Poder Executivo a implementação de políticas públicas para garantir direitos constitucionalmente assegurados, a exemplo do direito ao acesso à educação básica, sem que isso implique ofensa ao princípio da separação dos Poderes. Precedentes. Agravo regimental a que se nega provimento” (ARE 761.127-AgR, Relator o Ministro Roberto Barroso, Primeira Turma, DJe 18.8.2014). Nada há a prover quanto às alegações do Recorrente. 4. Pelo exposto, nego seguimento a este recurso extraordinário (caput do art. 557do Código de Processo Civil e § 1º do art. 21 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal). (STF – RE 850215 PB–rel: min. Camen Lúcia –DJ 04.12.14).

O dano ambiental e o dano urbanístico têm como característica, de forma geral, a sua grande dificuldade de reparação efetiva, fazendo necessária uma pronta atuação a fim de evitar ou reprimir a eminente ou presente lesão, de modo que, ante a ausência de atuação (ou necessária omissão) calha ao Judiciário (depois de provocado) preservar a ordem e evitar ofensa ao núcleo fundamental do direito a cidades sustentáveis.  

Conclusão

Ante o exposto, tem-se que o direito a cidades sustentáveis é um direito fundamental por estar intrinsicamente ligado à qualidade de vida e a dignidade dos seres humanos. Ele está previsto implicitamente na Constituição brasileira, mas positivado em lei (Estatuto da Cidade). Seu conceito é uma síntese de vários fatores definidos pela ciência do urbanismo como fundamentais para a vida nas urbes e seu principal instrumento de efetivação é o plano diretor.

Por ser um direito fundamental, todos os entes estatais devem obediência a norma das cidades sustentáveis, devendo implementá-lo e garantir o seu núcleo mínimo e, ao mesmo tempo, deixar de atuar quanto este núcleo puder ser ferido de morte.

Em caso de omissão ou ação do Poder Público no sentido de afetar negativamente o multireferido direito, calha buscar o Judiciário, que pode, e deve, atuar de maneira ativa para defendê-lo.   

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Sobre o autor
Lucas Campos Jereissati

Advogado. bacharel em direito pela Unifor (Universidade de Fortaleza). Bacharel em jornalismo pela UFC (Universidade Federal do Ceará). Especialista em Direito Processual pela FA7 (Faculdade 7 de Setembro). Mestrando em Ordem Jurídica Constitucional pela UFC (Universidade Federal do Ceará).

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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