1. Introdução
Nos casos em que estejam presentes tanto o direito de propriedade intelectual, quanto o direito da concorrência, é possível que surja, entre as duas frentes, um conflito. Tal conflito verifica-se nas situações em que os “exclusivos” (bens protegidos pela propriedade intelectual) são objeto de práticas abusivas, lesivas ao mercado, ou seja, nas ocasiões em que o titular de direitos de propriedade intelectual abusa da proteção jurídica concedida ao bem, prejudicando, assim, a livre concorrência.
Segundo PAULA FORGIONI, “essa discussão – embora possua seus aspectos técnicos – é eminentemente política, pois relacionada aos interesses comerciais dos países. Normalmente, as nações exportadoras de propriedade industrial tendem a defender proteção mais intensa dos exclusivos, enquanto as importadoras preferem interpretação que tome em conta interesses outros que não apenas os dos titulares dos direitos”.[1]
2. Interface entre Propriedade Intelectual e Direito da Concorrência
A propriedade intelectual traduz-se, em apertada síntese, na atribuição de proteção especial a determinadas descobertas, criações e inovações. Referida proteção pode ser vista como o monopólio detido pelo titular dos direitos de propriedade intelectual no que toca ao uso, fruição e disposição do bem imaterial protegido.
Ocorre que tal exclusividade, apesar de garantir ao titular do bem protegido um retorno econômico privilegiado, afronta, não raro, a livre concorrência, podendo causar consideráveis impactos no mercado, porquanto não estimula, por exemplo, a redução de preços ou o aumento de qualidade do produto, diante da inexistência de competição em determinado seguimento.
Eis, então, a preocupação existente com relação aos efeitos da proteção concedida pelo direito de propriedade intelectual a determinados bens, uma vez que tem o condão de alterar o funcionamento do mercado, a título exemplificativo, quando os adquirentes dos exclusivos não têm outra alternativa a não ser sujeitar-se aos preços de monopólio. Sobre o tema, explica também PAULA FORGIONI:
“Em suma: de uma parte, a garantia à propriedade intelectual estimula o desenvolvimento tecnológico, de outra, porém, é capaz de gerar situação propensa ao abuso, especialmente em ambientes nos quais a força concorrencial é arrefecida pela outorga da exclusividade”.[2]
Destarte, o desafio com o qual nos deparamos na atualidade é buscar o equilíbrio entre os direitos de propriedade intelectual (e os interesses dos sujeitos de tais direitos) e o estímulo à livre concorrência e ao desenvolvimento econômico do país.
É fato que tanto a propriedade intelectual, quanto a livre concorrência estão previstas na Constituição e protegidas por meio de legislação específica (Leis 9.279/96 e 12.529/11).
O art. 5º, XXIX, da CF, determina que "a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como a proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e outros signos distintos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País".No que toca à livre concorrência, estabelece a Carta Magna, em seu art. 173, §4, que “A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário de lucros".
A possibilidade de surgimento de um conflito entre as duas disposições normativas supratranscritas, como já mencionado, é evidente.
Enquanto o princípio da livre concorrência é, em regra, contra a exclusividade, ao passo que visa evitar a “dominação dos mercados” e a “eliminação da concorrência”, exclusividade é justamente o que o art. 5º, XXIX, da CF, garante aos “autores de inventos industriais”, no que diz respeito ao uso e à exploração econômica do bem protegido.
Sobre o conflito ora posto, aponta, com muita propriedade, o Professor TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JR.:
“No jogo do mercado, o princípio da livre concorrência não admite, em tese, a exclusividade. Não se trata, porém, de uma incompatibilidade absoluta, mas apenas na medida em que a exclusividade engendra situações monopolísticas na economia de mercado livre. É exatamente esta circunstância que se choca com os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência. E, neste ponto, os privilégios concedidos pelo direito industrial, com respaldo na Constituição, cruzam-se com os impedimentos exigidos pelas leis antitruste, igualmente respaldadas no texto constitucional”.[3]
Portanto, nas situações em que presentes, concomitantemente, questões relacionadas a estas duas áreas, o que se deve buscar é a interpretação do direito de propriedade industrial sem que haja infração às normas de direito concorrencial, de forma que exista um equilíbrio entre o interesse público e o interesse do agente econômico privado.
2.1 Equilíbrio entre as duas frentes – Inexistência de incompatibilidade absoluta entre propriedade intelectual e direito da concorrência
De fato, não se trata de incompatibilidade absoluta entre as duas áreas do direito aqui analisadas.
Não é verdade que o direito de propriedade intelectual prejudica, necessariamente e em todos os casos, a concorrência. O que se verifica, como se verá a seguir, é que a proteção concedida aos “exclusivos” deve ser interpretada em consonância com o direito concorrencial.
PAULA FORGIONI ensina, nesse sentido:
“No caso brasileiro, ninguém ousaria negar que a proteção da propriedade intelectual visa ao desenvolvimento nacional, especialmente considerando os termos incisivos do art. 5º, XXIX, da CF. Entretanto, para que se dê a concreção desse preceito constitucional, é preciso encarar a concessão de exclusivos como instrumento concorrencial. Os direitos de propriedade intelectual não são protegidos para beneficiar o agente econômico, mas para fomentar as inovações e o desenvolvimento, permitindo que o titular desfrute de uma ferramenta de conquista de mercado, da qual seus competidores não dispõem”[4].
Analisando o tema sob esta ótica, verifica-se que a proteção das criações, ao invés de prejudicar a concorrência, pode, ao contrário, estimular um ambiente competitivo entre as empresas.
Os exclusivos não são, portanto, protegidos única e exclusivamente para beneficiar o titular dos direitos de propriedade intelectual, como pode se pensar num primeiro momento, mas também como instrumento de estímulo e incentivo ao desenvolvimento tecnológico e competição entre as empresas (processo denominado “destruição criativa”).
Cabe, aqui, trazer as considerações do ilustre Professor CALIXTO SALOMÃO sobre a função social dos direitos de propriedade intelectual:
“Monopólios devem ser admitidos na menor extensão possível e mesmo quando admitidos é de ser reconhecida sua função social. A essa luz, a função econômico jurídica dos institutos de direito industrial muda substancialmente de figura”. [5]
Sobre o assunto, esclarece, também, PAULA FORGIONI:
“Nesse prisma tanto a livre concorrência como a concessão de direitos de propriedade intelectual colocam-se como elementos de proteção da coletividade, de busca do bem-estar (...)”.[6]
Pode-se, portanto, concluir que a harmonização entre as duas disciplinas não só é possível, como é ideal.
O que se deve, contudo, evitar, é o abuso dos direitos de propriedade intelectual, de modo que tais garantias não causem prejuízos concorrenciais e tenham uma função social, não apenas beneficiando os particulares a quem foram concedidas.
Vale lembrar, nesse passo, que os direitos de propriedade intelectual não são considerados fins em si mesmos, mas instrumentos utilizados no atingimento de objetivos maiores, tais como o desenvolvimento econômico e tecnológico do país.
Nessa esteira, sobre a necessidade de repressão dos comportamentos abusivos envolvendo propriedade intelectual, leciona o Professor TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JR.:
“É preciso, pois, cuidar para que o desenvolvimento econômico ou técnico do sistema não seja comprometido por comportamentos dos agentes que, sem ser abusivos, podem levar a distorções, como o impedimento do afluxo de recursos a certos setores ou o bloqueio da possibilidade de expansão de concorrentes.Neste sentido, a meu ver, a Constituição, que declara o mercado interno como patrimônio nacional (art. 219), exige do Estado, como agente normativo e regulador da atividade econômica (art. 174), o exercício, na forma da lei, da função fiscalizadora. A lei, no caso que estamos examinando, deve cuidar de prescrições de natureza regulativa (ajustadora) cujo escopo é o eficiente funcionamento do mercado”.[7]
Portanto, não obstante possa e deva, num cenário ideal, ser positivo para a concorrência, o direito de propriedade intelectual pode acabar por conceder aos seus titulares significativo aumento do poder de mercado, com potencial possibilidade de distorção da concorrência. Isto porque nem sempre os players de determinado seguimento encontram-se nas mesmas condições de competição (“neck-to-neck competition”).
Fazendo menção à HOVENKAMP, PAULA FORGIONI pontifica em sua obra: “Quando se trata de inovação, progresso e propriedade industrial, é pertinente a observação de Hovenkamp, ‘patents and copyrights sometimes constitue formidable barriers to entry’. A proteção excessiva aos exclusivos pode retardar ou mesmo dizimar a inovação”.[8].
O que se deve buscar sempre, a nosso ver, é a harmonização entre as duas disciplinas, o equilíbrio na aplicação conjunta dos direitos de propriedade intelectual e concorrencial, levando-se em conta, sobretudo, o fato de não ser o direito de propriedade intelectual um fim em si mesmo, devendo ser interpretado de forma a estimular a livre concorrência e o desenvolvimento econômico do país.
2.2 Lei antitruste no Brasil e propriedade intelectual
Buscando reprimir possíveis práticas anticoncorrenciais – e aqui se incluem os conflitos entre propriedade intelectual e concorrência -, o legislador brasileiro, ao editar a Lei Antitruste e a Lei de Propriedade Intelectual, preocupou-se em tratar das infrações da ordem econômica e do abuso do direito .
Estabelece o art. 36, caput, da Lei Antitruste brasileira:
“Art. 36. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados:
I - limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa;
II - dominar mercado relevante de bens ou serviços;
III - aumentar arbitrariamente os lucros; e
IV - exercer de forma abusiva posição dominante”.
Assim, o abuso dos exclusivos, por exemplo, pode caracterizar infração da ordem econômica, a ensejar a aplicação do referido dispositivo legal, na medida em que prejudique a concorrência, cause o fechamento do mercado, resulte no aumento arbitrário de lucros ou configure abuso de posição dominante.
Ainda, especificamente com relação a patentes, o art. 38 da Lei Antitruste prevê como punição a ser imposta àqueles que cometerem infração da ordem econômica a possibilidade de o CADE recomendar aos órgãos públicos competentes “seja concedida licença compulsória de direito de propriedade intelectual de titularidade do infrator, quando a infração estiver relacionada ao uso desse direito”.
Afora a penalidade específica acima referida, aplicável a infrações envolvendo patentes, todas as penas aplicáveis às infrações da ordem econômica (arts. 37 e 38 da Lei Antitruste), a saber, multas, proibição de contratar com instituições financeiras oficiais, de participar de licitação etc., aplicam-se também às infrações cometidas mediante abuso dos direitos de propriedade intelectual.
Por fim, a própria lei de PI, em seu art. 68, prevê a possibilidade do titular de direitos de propriedade intelectual ter patente compulsoriamente licenciada, se dela se utilizar abusivamente, ou se, por meio dela, praticar abuso de poder econômico:
“Art. 68. O titular ficará sujeito a ter a patente licenciada compulsoriamente se exercer os direitos dela decorrentes de forma abusiva, ou por meio dela praticar abuso de poder econômico, comprovado nos termos da lei, por decisão administrativa ou judicial”.
Nota-se, portanto, que a punição às práticas abusivas relacionadas aos direitos de propriedade intelectual encontra previsão tanto na lei antitruste, quanto na lei de propriedade intelectual brasileiras.
O legislador concedeu, assim, aos julgadores, instrumentos para coibir o abuso de exclusivos, visando a garantir que o direito de propriedade intelectual seja sempre interpretado de acordo com os objetivos econômicos do país e sem que haja prejuízos ao ambiente concorrencial.
3. Casuística
A título exemplificativo, vale mencionar brevemente o caso que, atualmente, melhor retrata a problemática ora estudada – de possível conflito entre propriedade intelectual e concorrência. Trata-se do processo administrativo, instaurado a pedido da ANFAPE – Associação Nacional dos Fabricantes de Autopeças, em curso perante o CADE[9], em que se busca apurar eventual prática abusiva por parte das montadoras Ford, Fiat e Volkswagen, no que diz respeito ao uso do desenho industrial de algumas das autopeças por elas originalmente produzidas.
Segundo a ANFAPE, tais montadoras estariam abusando dos direitos de propriedade intelectual que possuem sobre o desenho de peças automotivas que criaram e produzem, buscando eliminar a concorrência no setor de reposição de peças visuais dos veículos, tais como para-choques, retrovisores, lanternas etc.
A ANFAPE alega que, se garantida a produção exclusiva das autopeças pelas montadoras, além dos prejuízos que sofrerão os fabricantes independentes, prejudicado também será o consumidor, que ficará sujeito aos preços impostos pela Ford, Fiat e Volkswagen e não mais terá a opção de comprar peças mais baratas, se assim o preferir.
O caso ainda está pendente de julgamento pelo órgão administrativo.
4. Conclusão
A conclusão a que se chega, neste breve estudo, portanto, é a de que a propriedade intelectual, desde que controlados e punidos os abusos praticados por meio da exploração econômica dos bens por ela protegidos, não causa prejuízos à concorrência e ao bom funcionamento do mercado.
Nesse sentido, PAULA FORGIONI encerra o capítulo de seu livro que dedica à matéria que é também objeto deste estudo:
“Em conclusão, os abusos dos direitos de propriedade intelectual são vedados por nosso ordenamento jurídico, aplicando-se-lhes as disposições referentes à Lei Antitruste. Os direitos de que gozam os titulares dos exclusivos somente podem ser exercidos nos limites de sua função econômica e social, ou seja, como instrumentos concorrenciais, sob pena de configurar infração à ordem econômica”.[10]
Assim, o direito de propriedade intelectual, tendo em vista seu caráter instrumental, deve não só defender os interesses dos agentes econômicos que dele se beneficiam, mas também ser interpretado e aplicado de forma a atingir os objetivos econômicos e de desenvolvimento do país.
5. Bibliografia
FORGIONI, Paula. Os fundamentos do antitruste. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2013.
SALOMÃO FILHO, Calixto. Direito industrial, direito concorrencial e interesse público. Disponível em: http://www2.cjf.jus.br/ojs2/index.php/revcej/article/view/732/912. Acesso em 15.11.2013.
FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Propriedade Industrial e Defesa da Concorrência. Disponível em: http://www.terciosampaioferrazjr.com.br/?q=/publicacoes-cientificas/96. Acesso em 15.11.2013.
www.cade.gov.br
www.anfape.org.br
Notas
[1] Os fundamentos do antitruste. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, p. 313, 2013.
[2] Ob. cit., p. 316.
[3] Propriedade Industrial e Defesa da Concorrência. Disponível em: http://www.terciosampaioferrazjr.com.br/?q=/publicacoes-cientificas/96
[4]Ob. cit. , p. 318.
[5] Direito industrial, direito concorrencial e interesse público. Disponível em: http://www2.cjf.jus.br/ojs2/index.php/revcej/article/view/732/912
[6] Ob. cit., p.319.
[7] Ob. cit.
[8] Ob. cit., p. 321.
[9] Averiguação Preliminar n° 080012.002673/2.007-51.
[10] Ob. cit., p. 328.