Aspectos relevantes acerca da (in)constitucionalidade da Lei Complementar 97

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4.ASPECTOS CONTROVERTIDOS DA LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL

Mais uma vez convém destacar o que dispõe o texto legal, notadamente a Lei Complementar, que se refere ao emprego das Forças Armadas na Garantia da Lei e da Ordem.

Art. 15. [...]

§ 2o A atuação das Forças Armadas, na garantia da lei e da ordem, por iniciativa de quaisquer dos poderes constitucionais, ocorrerá de acordo com as diretrizes baixadas em ato do Presidente da República, após esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, relacionados no art. 144 da Constituição Federal.

            Atribuindo-se a competência de segurança pública aos Estados e estes não sendo capazes de cumprir esta finalidade, convém, para a manutenção da federação, a intervenção da União para manutenção da ordem pública. É bem verdade que esta é uma decisão muito mais política do que jurídica, o que não é objeto a ser apreciado, sendo relevante, nesta abordagem, realizar um exercício de hermenêutica para dar concretude ao texto da Constituição, levando-se em consideração a realidade histórica. [18] A realidade mostra que a situação da segurança pública no nosso país é grave e merece um esforço das autoridades para uma adoção de políticas que vão além de uma maior destinação de recursos. Para tanto, a relação cooperativa que o constituinte idealizou para atender a estas demandas.

                A respeito da interpretação da Constituição a respeito e da legislação infraconstitucional, é legítimo que os militares o façam na condição, como referido por Peter Häberle, de pré-interpretes (Vorinterpreten) do complexo normativo constitucional. Aliás, segundo o próprio Häberle, não existe norma jurídica, senão norma interpretada (Es gibt keine Rechtsnormen, es gibt nur interpretierte Rechtsnormen). [19]

            Desta forma, o texto da legislação infraconstitucional deve ser interpretado em conformidade com a Constituição. Não se pode adotar o emprego de tropa federal em uma situação de garantia da lei e da ordem (que por si só se mostra grave diante da incapacidade do Estado-membro) sem realizá-la dentro de balizas normativas que definam amplitude, prazo e espaço físico.

            Todavia, antes de explorar a interpretação de forma mais esmiuçada, cabe destacar aspectos conceituais da técnica denominada “interpretação conforme a constituição”. Esta prática desenvolveu-se na doutrina e na jurisprudência constitucional alemãs e buscam dar sentido às normas infraconstitucionais para que estas empreendem maior efetividade aos princípios constitucionais. Vale-se, também, para preservar a validade de determinadas normas suspeitas de inconstitucionalidade. Realiza-se, simultaneamente, a interpretação da norma e o seu controle de constitucionalidade. [20]

            É evidente que o quadro normativo que integra o ordenamento jurídico brasileiro vislumbra a atuação das Forças Armadas na Garantia da Lei e da Ordem dentro de um quadro de tamanha gravidade que as forças estaduais se mostram incapazes de garantir a ordem pública. As atuações no Rio de Janeiro vão muito além da mera atuação como força de segurança pública. Os serviços públicos mais elementares, como coleta de lixo, fornecimento de energia elétrica, de água e captação de esgoto, por muito tempo não foi disponibilizado pelo Poder Público às populações das favelas. Ou seja, a complexidade da atuação merece ainda mais o respaldo da intervenção, por parte da União, no Estado federado para que os instrumentos de segurança (e também de cidadania) sejam utilizados e ofereçam resultados à população.

            Neste rumo, a norma prevista no artigo 15, § 2º, da Lei Complementar 97, deve ser interpretada conforme a Constituição. Ou seja, não se pode glosar a norma em razão de sua (suposta) inconstitucionalidade. Mas a sua interpretação deve levar em consideração a Constituição que prevê a excepcionalidade da intervenção federal, o que mereceria o controle da jurisdição, seja do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça.

            Relevante destacar que o artigo 15, § 7º, estabelece como sendo competência da Justiça Militar as infrações penais que ocorrerem dentro de um contexto de garantia da lei e da ordem, tamanha a relevância da matéria. Sobre esta matéria, tramita no Supremo Tribunal Federal uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 5032), cujo relator é o Ministro Marco Aurélio, na qual o Procurador-Geral da República questiona a ampliação da competência da Justiça Militar. Os fundamentos que o Ministério Público traz ao debate é que a jurisdição penal militar deve ser restrita e pontual.

            Em decisão no caso Durand y Ugarte vs. Perú, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, cuja jurisdição o Brasil se submete, assentou que a jurisdição castrense cabe somente para julgamento de militares. Eis parte do aresto:

117. Num Estado Democrático de Direito, a jurisdição penal militar deve ter um alcance restritivo, excepcional e estar voltada à proteção de interesses jurídicos especiais, vinculados com as funções que a lei confere às forças militares. Assim, deve ser excluído do âmbito da jurisdição militar o julgamento de civis e só deve julgar militares pelo cometimento de delitos que por sua própria natureza atentem contra bens jurídicos próprios da ordem militar. (Tradução livre) [21]

            Outros casos sobre apreciação da Corte Interamericana de Direitos Humanos podem ser citados. No caso brasileiro, em função do status constitucional (ou supralegal) atribuído aos tratados internacionais sobre direitos humanos, estes também devem ser levados em consideração no momento de se estabelecer uma interpretação da norma legal. No entanto, quando são estabelecidas situações excepcionais (e a intervenção federal é uma delas) voltadas à defesa do Estado Democrático e da ordem pública, fica evidente que os fundamentos para o emprego de tropa federal e a ação da jurisdição militar apresentam-se mais robustos e sólidos.

            Portanto, não há que se falar em inconstitucionalidade dos dispositivos da Lei Complementar 97, mas de que estes devem ser interpretados conforme a constituição a fim de darem uma maior efetividade e legitimidade e o que facilitaria os planejamentos e as ações propiciadas por uma unidade de comando. Não se está aviando uma impossibilidade de atuação em operações de garantia da lei e da ordem, mas, sim, buscando saídas que estejam de acordo com o modelo federativo e dentro de um contexto de proteção de direitos e garantias fundamentais.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

            Fica patente na presente exposição que a missão das Forças Armadas, por imperativo constitucional, constitui um plexo de atribuições que se voltam precipuamente para as atividades de defesa do Estado brasileiro, seja externa ou internamente. Ademais, as instituições militares vêm, ao longo do tempo, desempenhando suas missões com excelência, o que é reconhecido pela sociedade como um todo. Mas não cabe realizar uma análise política da temática, mas interpretar os diferentes diplomas legais a partir da Constituição da República que possam subsidiar e conferir maior legitimidade a ações de garantia da lei e da ordem.

            É incontroversa a situação grave pela qual passa o país na área de segurança pública, o que leva as autoridades a repensar o modelo de gestão e as práticas de combate à criminalidade. Contudo, nunca é demais destacar que o emprego das tropas federais não pode ser uma regra, mas medida de cunho excepcional, a atuar de forma pontual e temporária diante de uma incapacidade das forças policiais. Desta forma, sob uma perspectiva jurídica, as operações de garantia da lei e da ordem devem receber uma especial atenção de modo a preservar a higidez do modelo federativo e garantir a intangibilidade dos direitos fundamentais.

            A interpretação das normas infraconstitucionais que tratam do preparo e emprego das Forças Armadas, notadamente os pontos a respeito da garantia da lei e da ordem, devem ser lidos e interpretados sob a ótica da atribuição de autonomia e estabelecimento de competências por parte do constituinte. A Constituição implementa um sistema de repartição de competências entre os diversos entes e estabelece mecanismos voltados à preservação desta estrutura.

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            Vislumbra-se da leitura do texto constitucional que o próprio sistema propicia mecanismos aptos a salvaguardar as estruturas de Estado como a Federação constituída pela União de Estados e Municípios. Para tanto, diante do comprometimento da ordem pública e da garantia da incolumidade, fica patente que a saída mais adequada sob o ponto de vista jurídico é o instituto da intervenção federal para atuação de forma episódica e pontual. É bem verdade que tal medida, em razão de seu caráter excepcional, traz consequências importantes de cunho político e entre as relações entre os entes federados. Aliás, as decisões do Supremo Tribunal Federal revelam esta preocupação.

            Todavia, reitera-se que a análise deste texto se adstringe a aspectos jurídicos, descabendo qualquer tratativa política. O que se busca é fomentar o debate para uma melhoria da atuação das instituições militares nas referidas operações, que resguardadas pelo manto da intervenção, teriam facilitadas suas ações e planejamentos. As ideias que são apresentadas se prestam a uma submissão e a um debate na busca do melhor argumento. Tem-se um “mundo vivido”, que é apresentado pela linguagem relacionando-se pragmaticamente com um mundo objetivo, com um mundo social e com um mundo subjetivo. [22]

            Diante de todos os argumentos expostos, não se pode considerar, de forma peremptória, que o emprego das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem se reveste de flagrante inconstitucionalidade. Mas certamente o emprego deve ser judicioso, medicante intervenção da União e com mecanismos que confiram jurisdição própria à Justiça Militar, de conformidade com a Constituição e com os acordos internacionais os quais o Brasil é signatário.


REFERÊNCIAS

ANDERSON, George. Federalismo: uma introdução. Trad. Ewandro Magalhães Jr, Fátima Guerreiro. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009.

BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). A Constituição e o Supremo. 4. ed. Brasília: Secretaria de Documentação, 2011.

CHAGAS, Magno Guedes. Federalismo no Brasil: o poder constituinte decorrente na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2006.

HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional – a sociedade aberta dos interprétes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1997.

HABERMAS, Jürgen. Teoria do agir comunicativo: sobre a crítica da razão funcionalista. Vol. 2. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1991.

MONTESQUIEU, Barão de. Do espírito das leis. São Paulo: Martin Claret, 2007.

REVERBEL, Carlos Eduardo Dieder. O federalismo numa visão tridimensional do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.

SILVA, José Afonso da. Direito constitucional positivo. 15. ed. rev. São Paulo: Malheiros Editores, 1998.

VARGAS, Denise. Manual de direito constitucional.  São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

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