Desconstruindo mitos: a polêmica 17ª vara criminal de Alagoas

08/08/2015 às 14:36
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O processo e o julgamento colegiado em primeiro grau de jurisdição de crimes praticados por organizações criminosa, a ADI 4.414/AL do Supremo Tribunal Federal, e o peculiar “microssistema” Alagoano de “combate” (judicial?!) à Criminalidade.

1. Pequeno Escorço do Problema

Em princípio, apenas para ambientar nosso estudo, cumpre mencionar que desde fevereiro de 2014 (dois mil e quatorze), o Estado de Alagoas vem passando por um momento de intenso debate (jurídico e social) acerca de um projeto de Lei Estadual que tenciona reformatar uma vara com competência para “processar e julgar os crimes praticados por organização criminosa” (até aí, nada demais).

Nesta intelecção, resta trazer de logo à tona que a referida unidade jurisdicional existe desde 2007 (dois mil e sete), e foi regulamentada por outra Lei Estadual (6.806/07), objeto de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade junto ao Supremo Tribunal Federal (ADI 4.414/AL).

Em síntese apertada, pois, objetivava o malfado diploma legal estadual, em observância a uma recomendação originalmente publicada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), criar, no Poder Judiciário Estadual de Alagoas, uma unidade jurisdicional coletiva (de 1º grau) para o julgamento de crimes (supostamente) praticados por organizações criminosas.

De original, pois, regulamentava a instituição de um juízo formado por 5 (cinco) magistrados, atuantes na instância de piso, que teria competência para julgar qualquer ilícito praticado em todo o território de Alagoas que versasse sobre crime organizado.

Ocorre que, em março de 2007 (dois mil e sete), quando a supramencionada lei (alagoana) entrou em vigor, os crimes praticados por organizações criminosas, no âmbito federal, eram apenas regulados pela Convenção de Palermo [1] e pela lei 9.034/95 que, com uma amplitude abissal, descreviam como grupo criminoso organizado aquele cuja estrutura fosse formada por “[…] três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas [naquela] Convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material”.

Indubitavelmente, pois, tal regulamentação deprecava a edição de novo diploma legal, com um conceito mais restrito, mais inteligível, principalmente em decorrência do princípio da taxatividade penal (nullum crimen, nulla poena sine lege certa).

Alheios à essa discussão, o Poder Judiciário, a Assembleia Legislativa e o Governo do Estado de Alagoas (em 2007) fizeram aprovar (com uma celeridade nunca antes vista) uma Lei (de âmbito estadual), regulamentando tal unidade jurisdicional com a finalidade de processar e julgar crimes praticados pelas supostas “organizações criminosas”.

Apenas para se ter uma ideia, defendia a respectiva lei a possibilidade daquela unidade jurisdicional: a) impor sigilo absoluto (como regra) a todas as demandas em curso naquela vara (independentemente de análise de conveniência/necessidade); b) delegar atos de instrução (ou execução) a outras unidades jurisdicionais de mesmo grau; c) decidir casos urgentes, impondo medidas inclusive segregativas, mesmo quando não fossem competentes para tal, remetendo, logo em seguida, ao juízo respectivo; d) avocar procedimentos já em curso em outras varas, prévios à regulamentação da referida lei; entre outros.

Mas nada era mais alegórico do que a definição, por meio de lei estadual, do que seria “crime organizado” (com conceito diverso do que exposto na legislação federal afeta à espécie), a mitigação da competência constitucional do Tribunal do Júri em favor da referida vara, e a designação aleatória dos magistrados que integrariam o referido juízo, por simples escolha (discricionária) pelo Presidente do Tribunal de Justiça, ouvido o Pleno (para mandatos bienais).

Enfim, o enredo que já era substancialmente esperado teve o resultado óbvio: o Supremo Tribunal Federal julgou procedente em parte a demanda presente na ADI 4.414/AL para, nas precisas palavras do Min. LUIZ FUX (relator), declarar a inconstitucionalidade de inúmeros dispositivos da referida lei, bem como a nulidade, com redução de texto, de alguns outros e conferir interpretação conforme à Constituição no que restou.

Por óbvio, a norma estadual atentara contra a Constituição, porque permitia (principalmente) a nomeação de magistrado para a titularidade de Vara por meio de simples indicação e nomeação, de forma política, pelo Presidente do Tribunal, com a aprovação do Pleno (afastando-se os critérios constitucionais e dando margem a um paulatino enfraquecimento da instituição). Esse desvio antijurídico foi devidamente combatido pelo Supremo Tribunal Federal, no exercício de sua função de guarda da Carta Magna, de nossa Lex legum.

Não há como se negar, pois, que para que se cumprisse o comando constitucional do juiz natural, inserto no art. 5º, LIII e XXXVII, seria necessário, nas precisas palavras de FERRAJOLI, cujos ensinamentos se invocam, excluir “qualquer escolha post factum do juiz ou colegiado a que as causas são confiadas”, de modo a se afastar o “perigo de prejudiciais condicionamentos dos processos através da designação hierárquica dos magistrados competentes para apreciá-los”. [2]

Mais a mais, na referida ADI (4.414/AL), o Supremo Tribunal Federal foi além, e tornou ainda mais claro o (que já era) evidente: por se tratar de questão procedimental, a fonte normativa legítima para a regulamentação de órgão jurisdicional colegiado (de primeiro grau) seria a União (art. 24, XI da CF), a quem se reservaria, nas matérias de competência concorrente, a edição de normas gerais, enquanto ao ente federativo estadual, portanto, só haveria disponibilidade para legislar, na hipótese de omissão ou para “suplementar” o édito federal (resguardas as peculiaridades regionais que fizessem necessárias normatividades complementares, mas não contrárias à legislação federal).

Por isso, conforme precedentes do próprio Pretório Excelso, “ao conceder-se aos entes federados o poder de regular o procedimento de uma matéria [competência concorrente], baseando-se em peculiaridades próprias, está a possibilitar-se que novas e exitosas experiências sejam formuladas. Os Estados passam a ser partícipes importantes no desenvolvimento do direito nacional e a atuar ativamente na construção de possíveis experiências que poderão ser adotadas por outros entes ou em todo território federal” [3].

Entretanto, tal poder regulatório não é ilimitado; na lição do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes [4], os Estados-membros e o Distrito Federal podem exercer, com relação às normas gerais, competência meramente suplementar, ou seja, para “preencher claros”, “suprir lacunas”.

Por isso, quão nítida a lição por ele ressalvada, de que “não há falar em preenchimento de lacuna, quando o que os Estados ou o Distrito Federal fazem é transgredir lei federal já existente [grifos nossos]” [5], afirmando ainda que, in verbis:

Na falta completa da lei com normas gerais, o Estado pode legislar amplamente, suprindo a inexistência do diploma federal. [Nada obstante,] se a União vier a editar a norma geral faltante, fica suspensa a eficácia da lei estadual, no que contrariar o alvitre federal. Opera-se, então, um bloqueio de competência, uma vez que o Estado não mais poderá legislar sobre normas gerais, como lhe era dado até ali. Caberá ao Estado, depois disso, minudenciar a legislação expedida pelo Congresso Nacional [grifos nossos].

É o mesmo que afirma o mestre JOSÉ AFONSO DA SILVA [6], para quem a inexistência de lei federal em matéria de competência concorrente autorizaria os Estados a exercer a “competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades”, mas a “superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário”.

In claris cessat interpretatio.

Sem dúvida, até a data do julgamento daquela ação concentrada perante o Supremo, havia evidente lacuna na legislação federal. Por isso, pertinente a advertência do Ministro FUX, na fundamentação da ADI 4.414 de que, já que a União, que teria o “dever, imposto pela Constituição, de velar pela independência judicial, em matéria de organizações criminosas”, deixou transcorrer in albis tal imperioso normativo, poderiam então os Estados, eventualmente, suprir tal lacuna, já que a “a composição colegiada do órgão jurisdicional [seria] fator que desestimula e dificulta a ação de meliantes, dando conforto e segurança aos componentes do juízo para decidir de acordo com o direito”.

Entretanto, apenas 54 (cinquenta e quatro) dias depois do julgamento da REFERIDA Ação Declaratória de Inconstitucionalidade, o Congresso Nacional fez editar (finalmente) a lei 12.694, isto em 24 (vinte e quatro) de julho do ano de 2012 (dois mil e doze). Tal diploma legal dispôs, de forma taxativa, “sobre o processo e o julgamento colegiado em primeiro grau de jurisdição de crimes praticados por organizações criminosa”, fazendo cessar a anterior omissão mencionada na ADI 4.414/AL.

Isto é, o referido permissivo normativo que antes, autorizava o Estado de Alagoas, segundo decidiu o Supremo Tribunal Federal, a editar norma procedimental instituindo de forma primária, um órgão colegiado para os fins atinentes na lei, deixou de existir com a entrada em vigor da respectiva lei federal.

A partir daquela data, 24 (vinte e quatro) de julho de 2012 [7], a Lei do Estado de Alagoas, de número 6.806/07, que apesar de inúmeras irregularidades tinha sido declarada constitucional (ADI 4.414/AL) exatamente no ponto em que disciplinava matéria concernente à competência concorrente (para formação de um juízo coletivo de primeiro grau), em razão do hiato de regulamentação pelo Congresso Nacional, obtivera, neste particular, sua eficácia suspensa, perdendo sua aplicabilidade [8], graças à superveniência do referido “bloqueio de competência”.[9]

Curiosamente, e aqui reitero o receio que temos na bondade dos bons, ao contrário do que pareceria razoável, mesmo depois do julgamento da ADI 4.414/AL e da entrada em vigor da Lei 12.694/12, a 17ª Vara Criminal da Comarca da Capital de Alagoas (já mencionada) continuou em pleno “funcionamento”; foram recebidos novos processos, determinadas medidas cautelares segregativas e/ou cerceadoras de direitos fundamentais, bem como sentenças condenatórias foram impostas.

Mas não foi só, o Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas, com fito de dar legitimidade ao contínuo das atividades da unidade jurisdicional referida, editou inclusive uma Portaria, isto em 13 julho de 2012 (dois mil e doze), ré-designando, frise-se, aleatoriamente, os mesmos cinco juízes até então responsáveis pela referida unidade jurisdicional, para atuar precariamente naquele juízo, até “[…] que os cargos de juízes titulares […] fossem efetivamente criados”, utilizando-se de uma construção jurídica neologística de “juízes substitutos temporários” (apenas para informação, tal situação ainda perdura até hoje).

Independentemente de qualquer discussão sobre a possibilidade jurídica do Colendo Tribunal Alagoano proceder daquela forma, a partir do fatídico 24 (vinte e quatro) de julho de 2012 (ou 22 de outubro [10]), sequer por meio de Lei poderia o Estado de Alagoas tratar da referida matéria transgredindo a Lei federal já existente (12.694/12); ocorre que tal situação jurídica peculiar curiosamente perenizou-se.

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2. A Nova Lei Estadual: Síndrome do “Eu Continuo a Mesma, mas os meus Cabelos”

É daí que nossa problemática se “inicia”: em fevereiro de 2014 (dois mil e quatorze), empós ter sido tornado público um decisum proferido pelo STF no Recurso Extraordinário de número 667442/AL, julgado em 20 (vinte) de junho de 2013 (dois mil e treze), que teve a Relatoria do Ministro RICARDO LEWANDOWSKI (hoje Presidente do STF), em que se decidiu, in verbis, que o referido juízo seria manifestamente incompetente (ratione materiae) e, declarados nulos, incidenter tantum, todos os atos decisórios emanados da referida vara coletiva [11], finalmente, encaminhou-se um anteprojeto de lei à Assembleia Legislativa Alagoana com fim de “resolver”, de uma vez por todas, tal imbróglio.

No entanto, com o posterior conhecimento do conteúdo do referido projeto de diploma legal estadual, verificou-se que a respectiva “anomia” jurídica encontrar-se-ia longe (muito longe) de qualquer resolução.

Como se sabe, a Lei Federal n. 12.694/12, ao disciplinar os “[…] processos ou procedimentos que tenham por objeto crimes praticados por organizações criminosas”, estabeleceu que somente o juiz natural, originalmente competente, poderia, em cada caso, decidir “pela formação [ou não] de colegiado para a prática de qualquer ato processual”; ou seja, não existiria um órgão, previamente concebido de forma coletiva mas, quando presentes “motivos e as circunstâncias que [acarretassem] risco à [] integridade física” do magistrado competente, somente ele, poderia, “em decisão fundamentada, da qual [deveria ser] dado conhecimento ao órgão correcional”, instaurar o respectivo colegiado.

Neste ponto, importa colecionar (desde já), que nos filiamos ao posicionamento de ALEXANDRE MORAIS DA ROSA e RICARDO CONOLLY [12], para quem tal dispositivo legal, da forma como previsto na Lei Federal, parece reconhecer no magistrado natural um “receio e talvez ‘medo’ em subscrever sozinho as decisões judiciais”, e que tal disposição  “[…] beira a covardia, até porque o exercício da função judicial na esfera penal pressupõe o enfrentamento de questões violentas”. No entanto, esta não é a discussão que, nos estreitos limites deste estudo, ousa-se travar.

Por outro lado, com estrema clareza, a lei de regência ainda afirma, textual e cabalmente, que o respectivo colegiado deve ter apenas 3 (três) magistrados, sendo composto do titular, juiz natural do processo, e mais “2 (dois) outros juízes escolhidos por sorteio eletrônico dentre aqueles de competência criminal em exercício no primeiro grau de jurisdição”; isto, para tentar salvaguardar os mesmíssimos critérios elencados pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI 4.414/AL, quando se declarou inconstitucional eventual escolha arbitrária dos membros daquela unidade jurisdicional (ou seja, a impessoalidade e imparcialidade do juízo).

Preservar-se-ia, pois, desta forma, com dada objetividade, a necessária transparência (como método) na escolha dos magistrados que integrariam o colegiado para a realização dos atos indicados, bem como se evitariam escolhas políticas e discricionárias do órgão judicante, em desrespeito à Lei Orgânica da Magistratura, e à Constituição da República Federativa do Brasil.

Por óbvio, como já fora exaustivamente demonstrado acima, o permissivo legal que antes autorizava os Tribunais Estaduais, no âmbito de suas competências, a regulamentar a composição do referido colegiado não poderia nunca, sob pena de pecha de inconstitucionalidade, em razão do “bloqueio constitucional” operado, contrariar as normas gerais estabelecidas na Lei Federal de n. 12.694/12.

Ao que parece, entretanto, parafraseando a icônica frase do ator Clive Brook no filme “O retorno de Sherlock Holmes” de 1929, nem tudo era tão “elementar, meu caro Watson” e o anteprojeto de lei em questão muito distanciava-se do que se esperava dele; por óbvio, trataremos apenas das questões mais sediciosas.

3. O “Microssistema” Judicial Alagoano de “Combate” (Judicial?!) à Criminalidade (O Anteprojeto de Lei)

Pois bem, dizia-se que o juízo então “recriado” teria, automaticamente, “titularidade coletiva” e que seria composto de três juízes de direito que seriam alocados naquela unidade pelos critérios de remoção, promoção ou permuta previstos na lex legum (art. 93, incisos II e VIII-A da CF).

De plano, advirta-se, logo em seu primeiro artigo, contraria-se a disposição presente na Lei Federal 12.694/12, tencionando criar, em Alagoas, uma estrutura procedimental completamente dissociada da regulamentação geral presente no diploma em referência, em que o juízo coletivo em caso de crime organizado é regra (e não exceção).

Com dizia Geraldo Vandré, “pra não dizer que não falei das flores”, basta lembrar, que o art. 1º, §3º da Lei 12.694/12, adverte, explícita e inequivocamente, que “a competência do colegiado limita-se ao ato para o qual foi convocado”, ou seja, trata-se de uma construção jurídica excepcional, específica para a realização de “ato processual” e que se encerra com a realização do mesmo.

Não é só.

Em curiosa redação, dispôs-se que a competência da referida vara prevaleceria “sobre as demais varas especializadas” existentes, ressalvando-se apenas a competência constitucional “atribuída ao Juízo da Infância e da Juventude e do Tribunal de Júri”; que, ao olhar perfunctório, parece revogar em parte (implicitamente), por meio de Lei Estadual, o Código de Processo Penal, no que disciplina as regras da prevalência em matéria de competência (v.g. do art. 78 do CPP).

Estender-se-ia, pois, em virtude da respectiva proposição, por meio de Lei Estadual, um status de “jurisdição especial” para à Vara, inferior ao “Juízo de Infância e da Juventude e do Tribunal do Júri”, mas superior “hierarquicamente” às demais unidades jurisdicionais de Alagoas.

Nesta peculiar estrutura, em casos de conexão ou continência entre processos em curso em diferentes unidades jurisdicionais, a competência da 17ª Vara preponderaria, por exemplo, mesmo que cominada pena mais grave (in abstracto) em ação com processamento em qualquer outra Vara do Estado de Alagoas (salvo o Júri e o Juízo da infância).

No entanto, calha afirmar, mesmo sendo óbvio, que tal dispositivo trata de matéria nitidamente processual (e não procedimental), cuja competência é privativa da União (art. 22, I da CF). Tal questão circunstancial, inclusive, fora devidamente abordada quando do julgamento da ADI 4.414/AL, advertindo-se in verbis que “oregramento da prevalência entre juízos a princípio igualmente competentes deve figurar em Lei Federal(rectius, nacional) [grifos nossos]”.[13]

Vamos adiante.

Abordando o mecanismo para tornar públicas as decisões da vara, a Lei Estadual inova mais uma vez. Apesar de permitir um juízo coletivo como regra (o que per si é antijurídico), procede casuisticamente à construção de algumas mitigações a este paradigma.

Nesta intelecção, salienta-se que “despachos de mero expediente” e, de forma mais estarrecedora, as audiências de instrução, podem ser efetivadas por “um só dos magistrados”, excetuando-se, como que garantindo o que não se pode excluir, a “prolação de sentenças e atos decisórios, quando, então, a participação dos demais [é] obrigatória”; nesta senda, difícil decidir por onde começar quando para objurgar tal instituto.

Preliminarmente, sabe-se, o art. 399 §2º do CPP, modificado em 2008 pela lei 11.719, trouxe para a legislação penal o princípio da identidade física do juiz (como sói citar de sua redação inalterada: “§ 2o  O juiz que presidiu a instrução deverá proferir a sentença”).

Ora, se o CPP dispõe que deve haver identidade entre o juiz que presidiu a instrução e aquele que proferirá a sentença, como compatibilizar o permissivo trazido no referido projeto de que a audiência de instrução possa ser realizada com a presença de um único magistrado, se a sentença, deve, obrigatoriamente, ser proferida por todos?!

Tal idiossincrasia é intransponível.

Pior. Contrapondo-se o referido dispositivo com o regramento previsto na Lei Federal n. 12.694/12, erige-se indisfarçável antinomia. Explico.

Diz a lei que a formação do colegiado dá-se, exclusivamente, para a prática de “ato processual” e que, a competência do colegiado “limita-se ao ato para o qual foi convocado”. Ora, se a realização do respectivo ato denotava a necessidade da constituição de um órgão colegiado, como então compreender-se a atuação isolada de apenas um deles. Mais a mais, o §6º do art. 1º da referida lei é claríssimo ao dispor que todas as decisões do colegiado serão “devidamente fundamentadas e firmadas, sem exceção, por todos os seus integrantes […]”.

Diante de tudo que fora visto (e do que ficou implícito), esperava-se do legislativo alagoano que tal anteprojeto de lei proposto pelo Tribunal de Justiça local fosse devidamente rejeitado; mas, o enleio supramencionado tomou proporções ainda mais acentuadas.

Em meio a uma grande discussão jurídica e social inflamada pelos veículos de comunicação locais, que erigiram a vara vergastada à condição de epítome do “combate à criminalidade” no Estado (ignorando, por completo, a natureza da judicatura como garante de direitos fundamentais na persecução criminal), a Assembleia Legislativa de Alagoas (ALE) aprovou o texto do anteprojeto de lei acima mencionado, mas com emendas, modificando o texto originalmente proposto pelo TJ/AL. Outra “novela” então se iniciou.

4. Considerações sobre um Pseudo-Impasse

Em resumo, pois, olvidando-se dos reais problemas jurídicos afetos àquela unidade jurisdicional, a ALE/AL resolveu então “restringir” a atuação da Vara, incluindo alguns parágrafos ao artigo que tratava da sua competência em razão da matéria (art. 2º) e modificando seu caput, para fazer referência ao suposto corte por eles firmado.

Pois bem, para os Deputados de Alagoas, a 17a vara criminal (unidade jurisdicional criada para lidar com organizações criminosas) não deveria ter competência ampla para o julgamento de crimes praticados por organizações criminosas e, por isso, criaram um rol de ilícitos penais (arts. 155, 157, 158, 159, 180 e 288-A do Código Penal e arts. 33 e 39 da Lei 11.343/06) nos quais seria lícita sua atuação.

Além da referida restrição de competência, a ALE também aprovou emenda no sentido de retirar uma suposta “competência exclusiva” da supramencionada vara para lidar com organizações criminosas em todo território alagoano, o que, na prática, não teria qualquer efeito (para além do fora alardeado na imprensa).

Ocorre que, independentemente da referida modificação de proposta legislativa oriunda do Tribunal de Justiça, o Governador do Estado de Alagoas sancionou o referido projeto de lei, mas com vetos, restabelecendo (em parte) o texto do anteprojeto de lei da forma como proposto pelo Judiciário.

Ao final do imbróglio político, o resultado foi a publicação de uma nova Lei Estadual (de n. 7.677/15), que continua disciplinando a existência de uma vara com titularidade coletiva (como regra), e que, no artigo que trata de sua competência, tem-se um hiato conceitual ao se fazer referência a um parágrafo outrora vetado. Ou seja, a competência da referida vara agora cinge-se, segundo o diploma legal referido, ao processamento e julgamento dos crimes definidos em um §3º que não existe, mas “praticados por organização criminosa”.

Que fique claro. Não haveria qualquer oposição constitucional à criação, no Estado de Alagoas, de uma vara com competência para o processo e julgamento de crimes praticados por organizações criminosas. Isto porque, como cediço, trata-se de matéria inserida no âmbito de discricionariedade do legislador estadual para tratar de sua organização judiciaria (art. 125 da Constituição).

Desta forma, caberia à Assembleia Legislativa de Alagoas, mediante proposição do Poder Judiciário, julgar a conveniência (e oportunidade) da criação de uma unidade jurisdicional especializada para o julgamento de delitos cometidos por organizações criminosas

Entretanto, como ficou claro da redação da ADI 4.414/AL, que já tratou com proficiência da temática suso referida, não é lícito ao legislador estadual, a pretexto de definir a competência da Vara especializada, “imiscuir-se na esfera privativa da União para legislar sobre regras de prevalência entre juízos (arts. 78 e 79 do CPP), matéria de caráter processual (art. 22, I, CRFB)”.

Mais a mais, quanto à composição do respectivo órgão jurisdicional, por se inserir na chamada competência legislativa concorrente para versar sobre procedimentos em matéria processual, havia, quando do julgamento da ADI 4.414/AL, lacuna que permitia aos Estados-membros, no exercício da competência estabelecida pelo art. 24, §3º da Constituição, dispor, mediante Lei acerca da matéria.

Nada obstante, com a entrada em vigor, ainda em 2012 (dois mil e doze), da Lei Federal de n. 12.694, operou-se o que se denominou de “bloqueio de competência”, que suspenderia a eficácia de Lei Estadual que contrariasse o alvitre federal. Tal bloqueio impede o Estado de legislar transgredindo Lei Federal já existente.

Ora, se a respectiva lei impõe a existência de um juízo coletivo apenas quando, excepcionalmente, o juiz natural decidir pela sua formação, por meio de decisão fundamentada e para a realização de ato específico, nunca poderia uma Lei Estadual disciplinar, em matéria de competência concorrente, em clara transgressão à Lei Federal, a formação de um colegiado como regra.

Mas não só. Já que a independência dos juízes, nos casos relativos a organizações criminosas, “injunção constitucional, na forma do art. 5º, XXXVII e LIII” da CF, já se encontra adequadamente preservada pela legislação federal, caberia aos estados-membros apenas minudenciar o respectivo diploma, suprindo-lhe eventuais lacunas.

Neste ponto, vale lembrar, a Lei 12.694/12 é claríssima ao dispor que eventual colegiado deve ser formado pelo juiz do processo e por 2 (dois) outros juízes escolhidos por sorteio eletrônico dentre aqueles de competência criminal em exercício no primeiro grau de jurisdição. Tal previsão, por óbvio, permite a existência de vários colegiados diferentes, para a prática de atos que demandassem a convocação dos demais magistrados, quando comprovados motivos e circunstâncias (reais) que acarretassem risco à integridade física do juiz natural.

Entretanto, se já não bastassem todas as idiossincrasias já mencionadas, o Supremo Tribunal Federal decidiu, quando do julgamento da ADI 4.414/AL em maio de 2012, que todos “os processos pendentes sem prolação de sentenças”, ainda em curso na referida vara, “[deveriam ser] assumidos por juízes […] designados na forma da Constituição Federal, com observância dos critérios apriorísticos, objetivos e impessoais, e fixado o prazo de 90 (noventa) dias para provimento das vagas de juízes da 17ª Vara Criminal de Maceió/AL”.

Assim, a partir da respectiva sessão de julgamento no Supremo, não cabia mais a 17ª Vara da Comarca de Maceió/AL realizar qualquer julgamento, visto que estaria em cabal e manifesta afronta à autoridade do Supremo Tribunal Federal.

Nada obstante, em inobediência ao supramencionado comando da Corte Maior de nosso país, não houve, por parte do judiciário alagoano, a remessa dos processos que ainda estavam em curso para outros juízos (nos moldes da ratio essendi presente no r. decisum proferido pelo STF), e pior, foram recebidos novos processos, e determinadas medidas cautelares segregativas e/ou cerceadoras de direitos fundamentais.

Mais a mais, é importante que se consigne que, desde a decisão supramencionada, sequer a composição (quinária) da referida vara foi alterada, permanecendo in albis o comando esculpido na declaração de inconstitucionalidade ventilada, e violentada a autoridade daquele Supremo Tribunal Federal. Pior, deu-se, em Alagoas, completamente ignorada, a entrada em vigor da Lei 12.694/12.

Em julho de 2015 (dois mil e quinze), pois, em Alagoas, há unidade jurisdicional que atua “no combate ao crime organizado”, estruturada por 5 (cinco) juízes, escolhidos discricionariamente pelo Presidente do Tribunal de Justiça (ouvido o órgão plenário), exercendo função “substituta temporária” desde 2012 (dois mil e doze), decidindo a vida e impondo restrições a direitos fundamentais quase que “a granel”.

Com isso, para além de defenestrada a independência da magistratura, definida por FERRAJOLI [14] como a exterioridade do juiz ao sistema político e em geral a todo sistema de poderes, que depende da existência de garantias orgânicas que escudem suas funções institucionais, contra ameaças externas ou internas de ingerência indevida, deteriora-se o princípio do juiz natural e o devido processo legal.

Neste processo de “celebrização” da legislação, em que o direito penal (e processual penal) dirige-se exclusivamente a determinado quadro de expectativas sociais [15], olvida-se do caráter essencial e básico dos direitos fundamentais como limites e vínculos instransponíveis a todos os poderes.[16]  É por isso que as garantias processuais constituem (ou deveriam constituir) limites destinados a circunscrever o alcance de todas as intervenções jurisdicionais [17], e não meros vetores, rechaçados a uma ordem secundária de valores.

5. Conclusão

Por fim, parafraseando BADARÓ, compreendemos que a atipicidade dos atos praticados em desrespeito ao modelo previsto em lei gera per si sua ineficácia, sob pena de “se admitir que o legislador estabeleceu […] formalidade absolutamente inútil”.[18] Neste caso, com a entrada em vigor da lei 12.694/12, todos os atos emanados do referido órgão jurisdicional, praticados em evidente violação de princípios constitucionais padecem de insanável nulidade e, o quanto antes, devem ser reconhecidos como tal, sob pena de se perenizarem a insegurança e a incerteza jurídica como método.

Independentemente de qualquer discussão acerca da conveniência do modus escolhido pelo Estado de Alagoas para disciplinar sua organização judiciária, é primordial que se minudencie a legislação expedida pelo Congresso Nacional e se respeite a distribuição das competências constitucionais, evitando-se assim, paradigmaticamente, que possam coexistir em nossa democracia, “ordens jurídicas” conflitantes e díspares.

Ainda mais relevante é impedir que, sob qualquer forma de manipulação discursiva, possa se legitimar, eventualmente, a escolha política, ad hoc e post factum, do juiz ou colegiado a quem se confia o poder jurisdicional. Respeitando-se o direito fundamental ao “juiz-pessoa”, predeterminado na Lei, “que exige que a composição do órgão judicial venha determinada pelo direito positivo, calcada em parâmetros que assegurem sua independência e imparcialidade”. [19]

Notas e Referências:

[1] Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (Decreto Federal nº 5.015, de 12 de março de 2004).

[2] FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón: Teoría del Garantismo Penal (Prólogo de Norberto Bobbio). Madrid: Editorial Trotta, 1995, p. 545.

[3] STF – ADI 2.922, rel. min. Gilmar Mendes, julgamento em 3-4-2014, Plenário, DJE de 30-10-2014.

[4] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014,

[5] MENDES; BRANCO, Curso de Direito Constitucional, op. cit., p. 884.

[6] SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 9ª ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 281.

[7] Apesar de sua publicação ter sido no dia 24 (vinte e quatro) de julho de 2012, ela só entrou em vigor em 22 (vinte e dois) de outubro de 2012. Ainda assim, já servia de indicativo, de prisma a ser observado.

[8] SILVA, Comentário Contextual à Constituição, op. cit., p. 281.

[9] MENDES; BRANCO, Curso de Direito Constitucional, op. cit., p. 885.

[10] Ver nota de n. 7.

[11] Isto porque são “[…]vícios passíveis de nulidades absolutas as violações aos princípios fundamentais do processo penal, tais como o do juiz natural, o do contraditório e da ampla defesa, o da imparcialidade do juiz, a exigência de motivação das sentenças judiciais etc., implicando todos eles a nulidade de absoluta do processo […]”. OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 19. ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2015, p. 907.

[12] ROSA, Alexandre Morais da; CONOLLY, Ricardo. Juiz sem Rosto e com Medo: a questão da Lei no 12.694/2012. [S.I.]: Empório do Direito, 2015. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/juiz-sem-rosto-e-com-medo-a-questao-da-lei-no-12-6942012-por-alexandre-morais-da-rosa-e-ricardo-conolly/>. Acesso em: 5 de julho de 2015.

[13] STF, ADI 4.414/AL.

[14] FERRAJOLI, Derecho y Razón: Teoría del Garantismo Penal (Prólogo de Norberto Bobbio), op. cit., p. 534.

[15] MARTINS, Rui Cunha. A hora dos cadáveres adiados: corrupção, expectativa e processo penal. São Paulo: Atlas, 2013, p. 32.

[16] FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantías. La ley del más débil. 1ª ed. Madrid: Trotta, 1999, p. 39.

[17] IBÁÑEZ, Perfecto Andrés. Las Garantías del Imputado en el Proceso PenalRevista Mexicana de Justicia (Reforma Judicial), julio-diciembre, p. 111, 2005.

[18] BADARÓ, Gustavo Henrique. Direito Processual Penal (tomo II). Rio de Janeiro: Elsevier, 2007, p. 189 e 190.

[19] ADI 4.414/AL, STF.

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Sobre o autor
Thiago Mota

Mestrando em Teoria e Dogmática do Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Especialista em Direito Processual pela Escola Superior da Magistratura de Alagoas. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Professor de Direito Penal e Processual Penal. Advogado Criminalista.

Informações sobre o texto

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